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CAPÍTULO 2 A AVALIAÇÃO DE DOCUMENTOS E O CONTEXTO BRASILEIRO 44

2.2 Avaliar para eliminar ou para preservar: tendências mundiais 64

A avaliação de documentos tem como objetivos principais garantir a preservação e boas condições de guarda dos registros documentais considerados de valor para a guarda permanente e garantir a eficácia administrativa e a economia, mediante a eliminação de documentos desnecessários. Esses dois aspectos estão estreitamente relacionados e devem ser igualmente considerados nos processos avaliativos. Teorias da avaliação em todo o mundo vêm discutindo esses aspectos, ora dando destaque a um ou outro aspecto.

Em relação às teorias e práticas de avaliação desenvolvidas na Alemanha, o canadense Carol Couture destaca seu foco na conservação. Segundo esse autor, enquanto a Inglaterra avalia para eliminar, a Alemanha avalia para conservar. Os arquivistas deste último país que, segundo ele, é um dos pioneiros na preocupação com a valoração de documentos, preocupam-se mais com o interesse patrimonial e com a preservação em longo prazo. Em relação à Inglaterra, o mesmo autor aponta o fato de que os arquivistas parecem deixar todo o trabalho de valoração para o gestor. Essa prática avaliativa talvez se deva à influência das ideias do arquivista Hillary Jenkinson, (COUTURE, 2003).

Já Theodore Schellenberg menciona a importância da avaliação dos documentos públicos modernos tendo em vista a necessidade de redução da documentação a um volume administrável. Em trecho especialmente curioso, faz menção às possíveis destinações de um documento, sua eliminação (inferno) ou guarda permanente (céu), conforme se pode ver a seguir:

A administração de arquivos preocupa-se, assim, com todo o período de vida da maioria dos documentos. Luta para limitar a sua criação e, por esse motivo, vemos defensores do “controle da natalidade” no campo da

administração de arquivos correntes como se encontram no campo da genética humana. Exerce um controle parcial sobre o uso corrente dos documentos e ajuda a determinar os que devem ser destinados ao “inferno” do incinerador, ao “céu” de um arquivo permanente, ou ao “limbo” de um depósito temporário. (SCHELLENBERG, 2006, p. 68, grifos nossos).

Essa ideia de céu e inferno é bastante interessante e está associada à ideia da morte do documento ao final do ciclo de vida. Os documentos, após cumprirem suas funções primeiras, as razões de sua criação, seriam eliminados, queimando no “fogo do inferno”, caso não merecessem adentrar a terceira idade, ou seja, serem destinados ao “céu” do arquivo permanente. O arquivo permanente seria o lugar do tratamento diferenciado para os “eleitos”, uma pequena parcela da documentação que faria jus a um depósito com condições de guarda dignas.

Ainda na mesma obra, Schellenberg define o termo “destinação” (disposition) como tudo que se pratica em relação aos documentos para determinar o seu destino final. Para definir a destinação de um documento, o autor reforça que nada poderia substituir um trabalho cuidadoso de análise. Não existem, portanto, fórmulas rápidas para a realização dessa tarefa (SCHELLENBERG, 2006, p. 131), ao contrário do esperado por muitos administradores. Schellenberg trata ainda da necessidade de identificação correta e classificação dos documentos a serem destruídos, além de destacar que a forma da destruição deve garantir que as informações neles contidas sejam eliminadas, a fim de evitar a divulgação de dados que possam prejudicar aos interesses do governo ou de pessoas.

2.2.1 Os atores no processo de avaliação

Em relação à destinação, Schellenberg apresenta os profissionais envolvidos nesse processo, segundo ele: os arquivistas, os funcionários executivos, além de possíveis consultorias de historiadores ou de técnicos da área da documentação avaliada. Na época em que foi proposta, tais ideias contrariavam às que circulavam no Manual of Archive Administration, publicado em 1992 por H. Jenkison. Por isso mesmo, esse último, nas resenhas que fez do livro de Schellenberg, foi francamente contrário a essa inovação (TSCHAN, 2002). O arquivista britânico advoga o maior distanciamento possível do arquivista (archivist) nos processos avaliativos. A avaliação, segundo Jenkinson, deve ser conduzida pelos produtores dos documentos, cabendo ao arquivista certa passividade,

entendida como uma forma de neutralidade.Sua metodologia ficou conhecida como avaliação tácita. Ele acredita que a influência do arquivista e do historiador na definição do que deve ter guarda permanente é prejudicial à imparcialidade. Segundo ele, somente o administrador seria capaz de definir o que preservar de acordo com as funções a que os documentos se referem, pois a avaliação deriva da necessidade do produtor e não de um futuro uso para pesquisa. Os registros (records23) são preservados pelas necessidades dos produtores e então se transformam em arquivos (archives24).

Em relação à atuação dos historiadores no processo de avaliação, Jenkinson acredita que a interferência desse profissional no processo de avaliação é prejudicial, pois será direcionada para seus próprios interesses de pesquisa. No que diz respeito ao arquivista (archivist), Jenkinson demonstra saber da prática corrente de participação desse profissional na avaliação, porém acredita ser essa uma tarefa que só deve ser realizada quando inevitável, seu papel seria muito mais um guardião de documentos. Para ele, caberia ao arquivista muito mais a tarefa de orientar no recolhimento e na adoção de calendários de conservação do que a participação direta na seleção de documentos. Essa divergência de análise é apresentada por Reto Tchan em artigo que compara as posições de Jenkinson e Shellenberg e algumas modernas tendências do campo da avaliação (TSCHAN, 2002).

Ainda em relação aos profissionais envolvidos na avaliação, a macroavalição assegura que os arquivistas (archivists), são os profissionais designados por lei e aceitos pelo costume para construir a memória coletiva de uma sociedade. Esse papel não deve ser exercido nem pelos pesquisadores nem pelos produtores dos documentos. (COOK, 2003). Já a estratégia documentaldá lugar central a um grupo de assessores que irá dirigir e monitorar tal estratégica, cabendo, porém, ao arquivista a seleção.

Como se vê, a recepção dos modelos de avaliação varia de um país a outro. A razão disso talvez decorra de diferentes tradições administrativas e/ou de uma maior ou menor propensão à inovação nessa área. (FALCONE, 2006, p. 27).

A partir da leitura dos diferentes modelos de avaliação construídos ao longo do tempo, fica claro que tais debates são feitos a partir da perspectiva dos arquivos permanentes, conforme apresentado anteriormente (COUTURE, 2003). A perspectiva quase sempre adotada é centrada nos critérios de seleção dos registros que serão deixados para as gerações

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Record é o termo em inglês utilizado para designar documentos nas fases corrente e intermediária. Em algumas referências utilizaremos o termo em inglês para clarear o uso que está sendo feito.

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futuras, não havendo um aprofundamento na literatura quanto aos valores primários dos documentos.

Também se percebe que as referidas metodologias estão inscritas em cronologias diferenciadas: a análise funcional foi esboçada na década de 1950, enquanto a estratégia documental foi elaborada nos anos 1970, ao passo que a macroavaliação surge a partir de 1990. A passagem ou a adesão a cada uma dessas metodologias decorre de diferentes motivações: a macroavaliação, por exemplo, procurou preservar os registros documentais de “transações desprovidas de poder” (DURANTI, 1996, p. 155), tendo em vista as limitações da análise funcional que privilegia a avaliação a partir da importância hierárquica do criador do documento. A estratégia documental, por sua vez, surge no contexto de formação ou multiplicação de fenômenos sociais pouco institucionalizados: como no acima citado evento esportivo ou então em relação às minorias, propondo até mesmo que o arquivista se encarregasse da criação de registros (gravações sonoras ou vídeos, por exemplo).