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Avanços e deslocamentos: o par político-cultural, a crítica à concepção idealizada

1. Bases teóricas da ‘construção democrática’: pressupostos e escopo da pesquisa

1.1. Avanços e deslocamentos: o par político-cultural, a crítica à concepção idealizada

heterogêneo e conflituoso.

O último quarto do século passado foi marcado por processos de abertura política e transição democrática transcorridos, paralela e desigualmente, em vários países do globo, desde o Leste europeu, passando por casos mediterrâneos, até parte significativa da América Latina. Considerar esse cenário político como uma realidade unívoca, algo como uma grande (e quiçá derradeira) 'onda de democratização', ou esquadrinhá-lo em seu ritmo e entraves internos, em registro comparativo amplo e conceitualmente minimalista, foram duas das várias formas pelas quais os teóricos se debruçaram sobre tais processos. Neste percurso, frente a desenvolvimentos institucionais e sociais incertos que contornavam cada caso, e se utilizando dos discursos e paradoxos ali gestados, se deram diversas redescobertas e reconstruções teóricas, tal como foi o caso da noção de sociedade civil e também da teoria política normativa. No rol de interpretações situadas na intersecção de Teoria Política e Sociologia Histórica, e voltadas para a explicação dos processos de democratização, em especial, dos casos latino- americanos, situa-se a chave interpretativa da chamada aqui 'construção democrática'. A discussão que segue, que é o ponto de partida para a formulação das hipóteses de pesquisa sobre a interação feministas-Estado no Paraguai, deve apresentar quatro idéias-força – i) redefinição do par político-cultural; ii) crítica à concepção idealizada de sociedade civil; iii) a afirmação de seu caráter internamente heterogêneo; e iv) a postulação de sua conflitualidade constitutiva. Como veremos, a articulação destas ideias diferencia a chave da construção democrática tanto das correntes teóricas que tomam a ação dos movimentos sociais como objeto privilegiado de interpretação, quanto das interpretações predominantes sobre democracia no campo da Ciência Política3.

É incontestável a posição já ocupada pelas análises da chamada ‘transitologia’ no espaço das interpretações sobre os processos de democratização. Foi em uma sorte de interlocução virtual com estas análises, sintetizadas em ‘Transições do Regime Autoritário’ (O’DONNELL & SCHIMITTER, 1988), e certamente também com outros desdobramentos desenvolvidos a partir delas, que se deram os primeiros delineamentos da chave de interpretação da construção democrática. Em linhas gerais, a ênfase dada pelos teóricos da

3 Além de três trabalhos que sintetizam fundamentalmente o que estou chamando aqui de ‘construção democrática’ (ALVAREZ et al, 2000; DAGNINO, 2002; DAGNINO et al, 2007), referências que compartilham, parcialmente ou não, do mesmo conjunto de pressuspotos podem ser encontrados em KUNRATH SILVA (2006), ALBUQUERQUE (2004) e TEIXEIRA (2003).

transição estava voltada aos ‘cálculos dos atores relevantes’ no jogo político das elites, de seus ‘pactos’, bem como à institucionalidade e à estabilidade democráticas. A concepção minimalista de democracia e a concepção decisionista – ou ‘estatista’, tal como a denomina Lechner (1988, p.21) – de política, ambas caras à razão transitológica, foram alvo de várias críticas que, dentre outras questões, apontavam para a grave negligência a respeito do desempenho de atores que, embora não decidissem em plano institucional, foram instituintes dos rumos assumidos pela democratização e dos níveis em que ela se deu4. Neste sentido, é significativo o uso de noções tais como ‘nova cidadania’ (DAGNINO, 1994) e ‘políticas culturais’ (ALVAREZ, DAGNINO & ESCOBAR, 2000), que pretendem frisar, além e aquém da institucionalidade, as transformações demandadas e impelidas por sujeitos coletivos, nomeadamente, pelos movimentos sociais no nível da sociabilidade pública e cotidiano dos laços sociais.

Mas não somente isso. Mesmo quando a ‘cultura política’ foi reconhecida, em viés neotoquevilleano, como um componente estruturante dos processos de democratização, a noção de cultura implicada nesse tipo de raciocínio – qual seja, “a cultura política favorece ou pode favorecer a institucionalização, ou prejudicá-la” (DIAMOND, HARTLYN & LINZ, 1999, p.39) – foi criticada por ter sido fortemente desligada da Política pois, resumida a “comportamentos e orientações psicológicas”, ela se esvazia de um potencial político robusto (ALVAREZ, DAGNINO & ESCOBAR, 2000, p.31).

Reside aí um duplo ponto de referência da construção democrática: a afirmação do caráter reciprocamente constitutivo das esferas cultural e política, e, além disso, o reconhecimento da dupla mutação da política, como esfera de prática política (institucional) e como o político (instituinte)5. Por um lado, ao voltar-se àqueles grupos sociais cujas formas de protesto se orientam contra formas de opressão e desrespeito sistematicamente re-produzidas – tais como, por exemplo, o racismo ou o sexismo –, ou ignoradas enquanto tais, o referencial de análise não precisa e tampouco deve separar o que é meramente ‘cultural’ daquilo que seria suposta e propriamente ‘político’. A ideia aqui é afirmar a reciprocidade entre esferas cultural e política, evitando reificar e, mais uma vez, privatizar aquelas formas de protesto sob o rótulo de

4 É certo que a complexidade e variedade interna da ‘transitologia’ e da ‘consolidalogia’ não se resumem ao minimalismo ou ao decisionismo, mas eles cumprem função inescapável no raciocínio de tais autores devido, sobretudo, à posição dada às instituições e aos atores políticos, assim designados. Mesmo se se considerasse os desdobramentos posteriores a Transitions from the Authoritarian Rule, que levaram esse grupo de autores a se perguntar sobre os predicativos das então recém reconstruídas democracias, isto é, sobre os “tipos de democracia” (WHITEHEAD, 1993, p.313), seus ‘dilemas’ continuaram a ser pensados a partir do pressuposto do mínimo procedural de Dahl, com inflexões internas, é verdade, mas sempre restritos àquela lógica de interpretação que resume democracia a democracia política. Para os ‘dilemas da democratização’, ver KARL (1990).

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A discussão em torno da Política e do político tem hoje longas data e bibliografia. Sua diferenciação na língua inglesa é bastante clara – Politics e political – e tem na reflexão de Mouffe (2005) uma versão clara e radical. Em francês e em espanhol, C. Lefort e E. Lechner são, respectivamente, duas das principais referências dessa diferenciação.

pré-políticas ou, pior, de apolíticas, porque culturais6. Trata-se, portanto, de reconhecer a constelação de valores operante na e a partir da esfera político-pública, bem como o efeito de hierarquização advindo das representações culturalmente difundidas.

Por outro lado, pensar nos termos da construção democrática significa pensar a política em sua duplicidade: como prática institucionalizada em aparatos público-estatais (a política), e como regime, no sentido dado por Lefort, isto é, como modo de instituição da sociedade e de disposição das formas de vida (o político). Em direção oposta à transitologia, o referencial aqui proposto e endossado reconhece que “ignorar ‘o político’ significa amputar a política e reduzir o fenômeno político a suas formas visíveis” (LECHNER, 2004, p.14). Assim, a disputa política nos termos da construção democrática não se encerra nos atores e limites da institucionalidade democrática – sem dela prescindir, é evidente–, e aponta para a atuação de sujeitos e movimentos sociais cujo potencial democratizante encerrado em suas ‘bandeiras’ tanto denuncia a existência de distintos níveis de democratização, quanto exige, no domínio analítico, categorias suficientemente plásticas para dar conta de tais processos (GECD, 2000).

Se a redefinição do par político-cultural foi, ainda que virtualmente, concebida em oposição à teorização da chamada consolidalogia, a crítica da concepção idealizada de sociedade civil, por sua vez, se deu no bojo das interpretações realizadas por autores que, ao lado dos teóricos da construção democrática, enfatizavam o papel desempenhado pelos atores civis nos rumos da democratização. De fins da década de 1970 até fins do século passado, apesar da diversidade de matrizes interpretativas terem sido a marca característica do debate em torno dos movimentos sociais7 e, depois, da sua correlata e silenciosa substituição pela ‘nova sociedade civil’, o tom de análise vigente neste campo de interpretações ficou fortemente marcado por uma aposta política cuja tradução, em termos teóricos, implicava em um ‘registro acentuadamente normativo’ com demasiadas perdas em plano heurístico (GURZA LAVALLE, 2003; GURZA LAVALLE et al, 2004). Nos termos da revisão e da inflexão interna ao debate, a crítica da sociedade civil se compõe de dois elementos, que embora sejam analiticamente separados, estão fortemente atrelados: trata-se de reavaliar os limites da chamada leitura ‘autonomista’ da atuação dos movimentos sociais – e, nela, o uso cruzado de adjetivos tais

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A afirmação da reciprocidade entre tais esferas leva, ainda, a outro problema: o uso reificado ou idealizado da própria noção de cultura. Conforme Benhabib (2006), discursos progressistas e conservadores dividem premissas epistemológicas ‘imperfeitas’ que representam a Cultura como um todo ‘coerente’, ‘fechado’ e acabado. Se se pretende politizar a cultura, é necessário sua des-fetichização analítica e considerá-la como uma arena de representações e de constantes criações simbólicas, e também, como espaço de negociações e disputas entre aquelas representações.

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A vasta bibliografia brasileira dessa problemática tem como pontos de referência SADER (1988), PAOLI (1995) e CARDOSO (1994). Veja-se também e especialmente SADER e PAOLI (1986).

como ‘emancipatório’ e ‘espontâneo’, por exemplo – e por outro lado, de relativizar a celebração de um suposto caráter inerentemente virtuoso da sociedade civil.

Quanto à crítica da leitura autonomista, é notório que parte da produção teórica dos anos 1980 sobre os ‘novos movimentos sociais’ pretendia sublinhar a ‘novidade’ desses atores com olhos voltados para sua gênese e disposição autônomas em relação ao Estado e, não raro, contra ele. Enfatizar a autonomia e elogiar, por exemplo, a mobilização de ‘grupos de base’ não foi de todo um equívoco. Isso porque esse tipo de ação de deu em um contexto cujos marcadores cidadãos estiveram historicamente ou sob controle estatal, a exemplo da noção de ‘cidadania regulada’, ou limitados pela herança do militarismo. Mais do que mero elogio, essa disposição cognitiva autonomista expressava a capacidade e a vontade intelectuais de reconhecer o estatuto político daquelas formas de mobilização (PAOLI, 1995). No entanto, o uso reificado da noção de autonomia entendida como negação da relação com o sistema político, especialmente no contexto pós-transição, levou a uma polarização desnecessária do e no debate – autonomia versus institucionalização (TATAGIBA, 2007). Tal polaridade interessa em particular à compreensão da luta feminista, pois em quase todos os casos sul-americanos, no contexto de democracia em construção das décadas de 1980 e 90, os feminismos passaram por intensos e contraditórios processos de profissionalização, de ‘ONGuização’ e, especialmente, de institucionalização estatal (ALVAREZ, 1999; 2000). O impasse político delineado nos 1980 e explicitado na década seguinte consistia em definir se a articulação com o aparato estatal era, afinal, positiva ou negativa e via sua problematização enclausurada a termos altamente excludentes – articulação ou autonomia, absorção ou cooptação (VARGAS & SCHUMAHER, 1993). Entretanto, tendo visto que tal polarização disjuntiva é desnecessária, menos do que optar por um dos lados da contenda, partindo do registro da construção democrática, a questão passa a ser a compreensão do quê entra em questão quando atrizes civis e estatais estabelecem contato, como se dão tais formas de contato. Nestes termos, a ‘autonomia’ é por nós tomada como categoria nativa, quer dizer, não como categoria de análise, pois ela foi e é objeto de disputa em praticamente todos os feminismos latinoamericanos8. Como veremos no próximo tópico, ela compõe a segunda parte de nossa hipótese de pesquisa, relativamente aos efeitos das interações sócio-estatais para as organizações feministas e para sua ‘autonomia’.

Uma das raízes dessa visão ‘autonomista’ pode ser situada na influência da vertente européia da teoria dos ‘novos movimentos sociais’ sobre a reflexão latino-americana e, em

8 Cf. “A questão sempre contenciosa da autonomia agora viria [ao longo da década de 1990] girar em torno de um novo eixo: o engajamento cada vez maior de algumas feministas em instituições políticas nacionais e internacionais” (ALVAREZ et al, 2003, p.550).

específico, na produção de Alain Touraine, cuja ênfase no caráter puramente cultural da luta dos movimentos teve como efeito teórico desligá-los da política institucional9. Em sentido diferente deste, e bastante afim ao da revisão crítica da chamada construção democrática, o trabalho de autores como Sidney Tarrow, Charles Tilly e Theda Skocpol também tem sublinhado as continuidades empíricas nas quais se enredam e se entrelaçam atores civis e estatais. A despeito da variedade de caminhos e exemplos históricos tomada por esses autores, suas análises coincidem naquilo que diz respeito à ‘interseção’, no belo termo de Skocpol (1999, p.354), entre formas de ação coletiva e estruturas político-institucionais. Na medida em que não parte de uma visão autonomista dos movimentos, a contribuição desses autores para nossa tese deve ser adiante explicitada nas categorias-chave e nas hipóteses.

Ao lado da revisão e da relativização da ‘autonomia’, se situa a crítica àqueles autores que na década de 1990 reproduziram uma noção demasiado defensiva de sociedade civil e cuja série de exigências morais projetadas sobre os atores civis os enraizava em um mundo que prescrevia sua separação virtuosa com relação ao sistema político-burocrático – que deveria ser, no máximo, comunicativamente influenciado (GURZA, 2003). Tal como observa esse autor, os ditames prescritos pela razão comunicativa não apenas se baseavam em uma concepção demasiado idealizada da ‘nova sociedade civil’, como implicavam em uma forte exclusão das formas reais de associação dificilmente enquadráveis nos consensos morais tributários daquela razão. Exatamente para esse mesmo foco, embora não voltada para as implicações da teorização habermasiana, aponta a observação do GECD segundo o qual “as manifestações e organizações coletivas podem problematizar as injustiças e problemas da sociedade, assim como podem reforçá-los através de mecanismos de reprodução de relações de dominação existentes” (GECD, 2000, p.39).

Assim, frente às críticas da autonomia e da separação virtuosa, e tendo reconhecido que as práticas dos atores civis, apenas porque civis, não estão imunes a matrizes de cunho autoritário ou conservador, a chave interpretativa da construção democrática demanda um tipo de raciocínio mais relacional e processual, e menos substantivo. Ao invés de afirmar uma separação tout court entre atores civis e autoridades, trata-se de observar, em institucionalidades e mesmo sociabilidades de níveis variados, o trânsito daqueles atores, os modos de aproximação e interlocução estabelecidos entre essas partes, bem como os projetos de cunho democratizante ou não aí em circulação e disputa.

Ao questionamento da celebração dos atores civis corresponde outra demanda teórica, a saber, o reconhecimento da heterogeneidade interna à sociedade civil, tanto no que diz

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respeito à variedade de matrizes discursivas (mais, ou menos, democráticas, mais, ou menos, autoritárias) ali disponíveis, bem como aos objetos de tematização pública, aos vários níveis associativos e formatos organizacionais de tal ou qual movimento social. “A sociedade civil se expressa empiricamente como uma densa rede de movimentos sociais e associações de caráter diversificado” (DAGNINO et al, 2007, p.32). Este ponto de partida, por um lado, desloca a consagrada e maniqueísta visão que opunha movimentos sociais a Estado, ator que não encarna necessariamente o Mal (DAGNINO, 2002). Por outro, ele impõe a necessidade de uma análise que, face à impossibilidade de falar de uma unificada e coerente Sociedade Civil e face à impossibilidade de tratar de atores civis em uníssono (GECD, 2000), se volte para a circulação de projetos na sua multiplicidade interna – relativamente aos sujeitos, às suas estratégias, a seus níveis de ação ou estilos de argumentação e mobilização. A ideia aqui é enfatizar o desempenho de um conjunto heterogêneo de tais sujeitos em suas diferentes e divergentes performances e disputas (GECD, 2000, p.32-ss).

No registro da construção democrática se evidencia, também, a ênfase dada à conflitualidade dos processos através dos quais diferentes formas de injustiça social são tematizadas e combatidas. Falar em discursos e sujeitos reivindicatórios se torna, assim, falar de um espaço que “não é uma família ou uma ‘aldeia global’, mas um terreno de luta” (ALVAREZ, DAGNINO & ESCOBAR, 2000, p.39). Com efeito, o reconhecimento do papel constitutivo do conflito nesse e desse terreno é corolário das inflexões anteriormente levantadas: se não é possível falar em uma só e coerente ‘Sociedade Civil’, se seus atores coletivos não partem de matrizes exclusiva ou necessariamente democráticas, se a relação deles com o Estado ultrapassa aquela fórmula absolutizante da ‘autonomia’ ou de ‘separação virtuosa’, então o conflito se torna uma dimensão inescapável e estruturante dos processos pelos quais diferentes sujeitos e projetos políticos tentam se fazer instituir nos sentidos assumidos pela democratização. Assim, em nossa chave de leitura, o emprego mesmo da conflitualidade – seja quando negada, eufemizada, negociada ou explicitada – se torna marcador privilegiado para a compreensão de tais processos de democratização e, em especial, de seus limites.

São estes, então, os pressupostos básicos que devem nos acompanhar ao longo da tese: o reconhecimento do par político-cultural, a crítica à concepção idealizada da sociedade civil, o reconhecimento de sua heterogeneidade, bem como a afirmação de seus conflitos constitutivos. Embora tenham nascido dos debates travados direta ou virtualmente com outras chaves de interpretação, esses pressupostos foram herdados de uma gama muito diversa de fontes e inspirações teóricas. Neste ponto refiro-me especificamente a Jurgen Habermas, a

Claude Lefort e, sobretudo, a Antonio Gramsci10, e à disposição cognitiva comum e implicada em parte importante de suas obras, a saber, a afirmação do caráter histórico do fenômeno democrático, isto é, do seu caráter essencialmente contingente, disputado e conquistado. De certo modo, a expressão ‘construção democrática’ encerra essa disposição, pois uma construção pressupõe sujeitos historicamente constituídos e ativamente situados em dinâmicas de embate e de debate. Neste sentido, “[o] esforço analítico e político mais produtivo”, dizem DAGNINO et al, “[seria] identificar a disputa política, que insiste em se repor continuamente no interior desse processo [de democratização]. (...) [seria r]econhecer e expor a permanência dessa disputa, examinar de modo detido suas características” (2007, p.60). Enraizada nas bases teóricas acima delineadas, nossa chave de leitura pretende observar as faces dessa ‘disputa política’ – na qual o termo política não se resume às instituições políticas –, a partir do caso da reconstrução da série de interações mantidas por organizações feministas com o Estado paraguaio desde o fim do último autoritarismo no país, o ‘stronismo’. Contudo, para fazer adequadamente essa reconstrução (ou seja, considerando-se aqueles pressupostos e mantendo a idéia de que a democratização é um processo contingente e disputado), são necessários instrumentos de análise suficientemente plásticos e abertos para dar conta da historicidade e da complexidade envolvidas nos processos através dos quais o feminismo paraguaio surgiu e passou a fazer parte das disputas políticas travadas no contexto pós- ditatorial paraguaio. Vamos, então, a esses instrumentos, bem como aos objetivos e hipóteses de pesquisa que deles se nutrem.

1.1.1. ‘Del otro lado de la vereda’: objetivos, categorias e hipóteses de pesquisa

Afirmei no tópico inicial que as reflexões e inflexões elaboradas pelos autores da chamada construção democrática servem como pontos de partida para o enquadramento teórico de nosso caso empírico, qual seja, a performance das organizações do movimento feminista em suas múltiplas e tendencialmente contínuas relações com o Estado paraguaio no contexto pós- ditatorial. A observação dessas interações se enraíza nas inflexões já levantadas – a crítica da separação artificial entre cultura e política, a crítica da sociedade civil, de sua autonomia imaculada e do suposto de que seus atores seriam essencial ou necessariamente democráticos e ainda homogêneos.

A partir desses pressupostos, nosso objetivo central de investigação consiste em:

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Sobre a influência destes e de outros autores sobre os estudos de movimentos sociais na América Latina, veja-se GOHN (2000).

compreender quais são os efeitos, em diferentes níveis, produzidos pela interação mais ou menos contínua ao longo do período selecionado entre as organizações do movimento feminista e a institucionalidade política paraguaia.

No final deste capítulo, ao tratar da pesquisa de campo, da coleta e do tratamento dos dados empíricos, apresento em grandes linhas as organizações do movimento feminista paraguaio selecionadas para análise, de modo a encarar a controversa tarefa de oferecer uma definição conceitual de ‘movimento social’. Antes disso, contudo, me atenho a três noções centrais em nossa tese: projeto político, ‘vitrine’ de exposição dos movimentos e oportunidade política.

A primeira noção-chave de nossa tese é ‘projeto político’. No registro da construção democrática, ela é tomada como o “conjunto de crenças, interesses, concepções de mundo, representações do que deve ser a vida em sociedade, que orientam a ação política dos diferentes sujeitos” (DAGNINO, OLVERA, PANFICHI, 2006, p.38). A noção não apenas encerra