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Movimentos feministas e Estados sulamericanos: paralelos e dilemas

1. Bases teóricas da ‘construção democrática’: pressupostos e escopo da pesquisa

1.2. Movimentos feministas e Estados sulamericanos: paralelos e dilemas

Vimos no tópico anterior que, do ponto de vista daquilo que chamamos de construção democrática, a análise das relações entre atores civis e sistema político não precisa reatualizar algumas das polarizações analíticas que marcaram o campo das interpretações das democratizações sulamericanas pelo menos desde os anos 1980. Vimos também que a relação entre atrizes feministas e Estado encarnou de modo exemplar alguns dilemas então lidos em termos de uma exclusão recíproca: articulação ou autonomia, absorção ou cooptação, álibi ou conquista, na excelente expressão de VARGAS & SCHUMAHER (1993). Nesta seção, vamos nos dedicar brevemente a alguns dos dilemas que atravessaram a experiência de militância feminista nos processos de construção democrática, incluindo-se aí as fases que na literatura transitológica são chamadas de liberalização e transição, ou seja, partindo dos momentos

derradeiros dos governos militares sulamericanos. Menos do que se dedicar a uma exegese de cada caso, esta breve revisão levanta pontos comuns entre os casos já cobertos e analisados pela literatura sobre a performance feminista em contextos democratizantes do último quartel do século XX24. Dispostos lado a lado, os exemplos em tela podem iluminar com maior precisão o uso aqui feito de noções como movimento feminista e ‘gênero’ e, ainda, no cotejo com as análises que dão vazão a eles, tornar mais evidentes alguns dos pressupostos já esquadrinhados.

Em termos gerais, parece haver um relativo consenso quanto ao papel politicamente relevante e à natureza altamente conflituosa e internamente diferenciada dos feminismos sulamericanos nos processos de democratização (STERNBACH et al, 1992; ALVAREZ, 1998; ALVAREZ et al, 2003). Dizer que a luta feminista foi e é politicamente relevante significa reconhecer que as formas de mobilização e os temas que serviram de alvo de politização e publicização do movimento feminista por toda a região, reorganizaram o papel atribuído às mulheres, e por elas ocupado, seja no imaginário de gênero, nos laços cotidianos entre homens e mulheres, seja ainda no espaço de luta e de transformação propriamente jurídicas.

Por outro lado, dizer que o feminismo é altamente conflituoso e internamente diferenciado significa corroborar tanto o pressuposto da heterogeneidade caro ao registro da construção democrática, quanto à tendência segundo a qual “[o feminismo] se constitui hoje em um campo amplo, heterogêneo, policêntrico, multifacetado e polifônico” (ALVAREZ, 1998, p.265). Nestes termos, todo e qualquer movimento feminista é composto por diversas e divergentes vozes feministas. Ou seja, o feminismo, como a maior parte dos chamados ‘novos movimentos sociais’, é empiricamente composto por um sistema de ações e relações, de grupos, organizações e articuladoras, de instituições e individualidades, no qual uma identidade coletiva é compartilhada – neste caso, a identidade feminista. Para os fins desta tese, no entanto, trata-se menos de inquirir cada um e todo elemento constitutivo dessa vasta rede, que pode ir desde uma pessoa interpelada pelos discursos de tal ou qual organização civil até instrumentos internacionais de denúncia de violação dos direitos humanos das mulheres, e

24 As duas fontes que serviram de base para esta revisão foram: “Sociedad Civil, Esfera Pública y Democratización en América Latina”, organizado por PANFICHI (2002), e “Historia de las Mujeres en España y América Latina”, quarto volume, coordenado por GOMEZ-FERRER, CANO, BARRANCOS, LAVRIN (2006). O caso argentino é abordado por CARMEN FEIJOO (2002, p.177-210), e, em conjunto com o caso uruguaio, por GIL (2006, p.881-902). O caso chileno é brilhantemente analisado por BARRIG (2002, p.578-609), por RÍOS (2002, p.297-330), e, em conjunto com o caso peruano, por IGLESIAS (2006, p.923-945). Uma análise focada na ‘participação política das mulheres’ nos casos colombiano e venezuelano pode ser vista em DUEÑAS-VARGAS (2006, p.597-618). As ‘cinco viagens’ do feminismo colombiano são abordadas em WILLS (2002, p.411-448). Os ‘feminismos à brasileira’ são analisados por RAGO (2006, p.863-880) e são também objeto de análise de ALVAREZ (1990), PINTO (2003), COSTA (2005). Em tempo, devido à perspicácia e à sua ênfase na relação entre Estado e feministas, inseri o exame do feminismo mexicano elaborado por LAMAS (2006) no conjunto desta revisão.

mais de entender as fronteiras delineadas por essa forma de identificação e os contextos nos quais essa identidade entra em questão ou em disputa.

A inspiração da qual se parte aqui é a diferenciação proposta por Melucci, por ele denominada de “decomposição analítica”25, entre o caráter empírico do movimento entendido como sistema de ações e relações e sua definição analítica assentada numa forma específica de identificação coletiva, assentada nas suas fronteiras identitárias significativas.

Quanto a esse ponto, o feminismo é um movimento social em sua acepção clássica e ao mesmo tempo uma forma de identificação e de autoidentificação, sendo estas duas últimas o aspecto que interessam mais de perto para nossa pesquisa. A escolha do feminismo como um marcador de fronteira identitária importa especialmente para evitar um tipo de raciocínio comum nos estudos de movimentos sociais segundo o qual o movimento é definido, antes de tudo, a partir de sua visibilidade. Neste sentido, os movimentos tendem a ser concebidos por seu repertório público de ação como, por exemplo, ocupações, protestos de rua ou conflitos com forças de segurança. Contudo, ao concentrar-se na visibilidade e na concretude empírica da ação coletiva, essa chave interpretativa acaba por decretar o refreamento dos movimentos sociais (com seus vários nomes correlatos: retrocesso, derrota, desmobilização26) e também da militância feminista, dado que tal chave não vê onde, concreta e positivamente, estaria o movimento: “O que aconteceu com aquelas 20 mil mulheres que, em 1989, lotaram o estádio Santa Laura para comemorar o 8 de março e celebrar o retorno da democracia?”, se indaga ao falar do movimento feminista chileno M. Ríos (2002, p. 309).

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Cf. Melucci (2001). As asserções do italiano quanto à distinção propriamente analítica para os estudos de movimentos sociais tendem a se coadunar com nosso quadro teórico mais amplo, pois Melucci foi um dos primeiros teóricos a apontar para um duplo fato: o que é denominado geralmente de ‘movimento’ não é naturalmente homogêneo e nem unificado, e, daí, o fato de quantias significativas de energia e recursos serem investidas na manutenção da imagem homogênea e pacificada do movimento. Para o que nos interessa, vamos nos inspirar em uma das “dimensões analíticas básicas” por ele proposta, a ‘solidariedade’(1989, p.57) e renomeá-la com a alcunha de ‘unidade de sentido’, para, mais adiante, enfatizar a significação compartilhada entre aquelas mulheres em cujas formas de mobilização, desde fins do regime autoritário paraguaio, ‘feminista’ aparece como uma distinção identitária autorreferenciada.

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Impossível não perceber os eixos do debate que vêm atravessando as análises sobre os feminismos sulamericanos, em particular, quanto à adjudicação do seu êxito – político, virtual, simbólico (na pior acepção do termo), difuso, póstumo... M. Barrig, por exemplo, parece ironizar algumas análises nostálgicas: “Onde está o

Movimento, se perguntam recentes artigos e estudos, ainda sujeitos ao mar lilás e às flores brancas do 08 de março

(...); o Movimento já não é mais a agregação de grupos e pessoas, contesta uma feminista estadunidense, é só um discurso” (BARRIG, 2002, p.578); nessa mesmo registro, “[a] efervescência da mobilização feminista teve vida curta. (...) Na América Latina, o ciclo de consciência de gênero e ativismo foi rapidamente revertido quando regimes eleitos se acomodaram em um modelo de transição seguro”(MONTECINOS, 2003, p.363). Em sentido oposto, “[é] comum ouvir entre amigos”, diz Ana Alice Costa sobre o caso brasileiro, “que o movimento feminista acabou. Acredito que essa é também uma afirmação comum em muitos outros países, em especial da América Latina. Eu sempre respondo: o feminismo enquanto movimento social nunca esteve tão vivo, tão mobilizado, tão atuante como nesse inicio de século, de milênio. Talvez tenha mudado de cara, já não ‘queima sutiã’, raramente faz passeata e panfletagem, o que não significa dizer que tenha perdido sua radicalidade, abandonado suas lutas, se acomodado com as conquistas obtidas ou mesmo se institucionalizado” (COSTA, 2005). Já autoras como C. Pinto e S. Alvarez falam persuasivamente em ‘difusão’ ou ‘multiplicidade’ de discursos e identidades feministas.

Nosso caminho é outro: ao invés de ficar refém desses ou de outros marcadores de visibilidade, esta tese busca entender como ambos, o feminismo como unidade de sentido e o predicado ‘feminista’ como forma de identificação, se originaram e se difundiram no Paraguai, para, a partir daí, iluminar suas principais vozes e múltiplas faces, bem como os efeitos e dilemas advindos da interação de suas portadoras com a institucionalidade política daquele país.

Vale notar desde já que a existência de um movimento feminista no Paraguai é, para algumas de suas ativistas, alvo de controvérsia: em entrevista a feminista de longa data na militância e atual Ministra da Secretaria da Mulher, Gloria Rubin, hesita: “É muito perigoso

responder” – contesta ela à questão ‘como vai o movimento’ – “creio que não há um movimento feminista, tem pequenos grupos, movimentos... (...) pessoas, grupos, ONG, dentro dos partidos há uma ou outra individualidades, e atividades concretas como os Encontros Feministas que acontecem todos os anos” (RUBIN, 2008, p.18-19) 27. Mesmo que de forma oblíqua, tal

depoimento evidencia a idealização projetada, não sobre o feminismo, mas sobre a ideia de movimento, pois afinal o que faltaria nessa lista para a caracterização de um movimento feminista? Se ficássemos apenas com os dados que Gloria Rubin nos passa – pessoas, grupos, encontros, frações partidárias – e se fosse possível distinguir aí as fronteiras identitárias que fazem deles uma unidade de sentido, já teríamos conteúdo empírico mais que suficiente para a delimitação de um movimento tal como analiticamente o havíamos definido. Essa ideia de que não há feminismo no Paraguai é também reproduzida pela educadora feminista de uma ONG de Assunção ligada a desenvolvimento rural, Elizabeth Duré, que diz:

“É possível nomear e assumir a existência de um movimento feminista no Paraguai? Em sua concepção com espaço que integra militantes e mulheres comprometidas com ideias feministas, [sim,] é possível. Mas, para além da CMP, uma expressão organizativa, com propostas feministas, reconhecida em sua luta pelos direitos das mulheres (...), não foi concebido um espaço de militância do pensamento feminista (...).

Em espaços políticos tradicionais, como os Partidos Colorado e PLRA [Liberal], também se encontram, sobretudo, mulheres com sensibilidade de gênero e algumas mulheres feministas. Elas conseguiram avançar em certas conquistas, como a cota de participação (...). Novos espaços políticos como Encontro Nacional, País Solidário, Pátria Querida, postulam claramente a igualdade de direitos entre mulheres e homens.

(...)

Quanto as correntes feministas, no Paraguai não se distinguiram correntes fortes como aquelas que apareceram no âmbito mundial. (...) O feminismo institucionalizado foi o que mais força teve nos últimos anos” (DURÉ, 2005, p.53-54) (Grifo meu).

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RUBIN, Glória. Entrevista concedida a Joana Maria Pedro e Cristina Scheibe Wolff (2008). Posição quase igual à de Gloria Rubin pode ser vista em ‘Hacia una presencia diferente’, obra na qual as pesquisadoras da Area Mujer do CDE (Centro de Documentação e Estudos) mesmo depois de falar de ‘adscrição feminista’, ‘ações impulsionadas por feministas’, ‘organizações de mulheres feministas’ e ‘influência’ destas últimas, ainda insistiam na ‘inexistência de um movimento feminista’ (CDE, 1992, p.70-ss; p.108-ss).

O destaque na citação de Duré serve para lembrar que nossa hipótese de pesquisa, relativamente à incorporação estatal da ‘perspectiva de gênero’, tem algum alcance. Mas, diferentemente do que se pode imaginar, esse trecho no qual se vêem difusão de ideias feministas e grupos orientados por tais ideias, com ênfase nos partidos políticos, não leva a autora à constatação de um feminismo paraguaio: “Resumindo, o feminismo teve presença em diferentes núcleos e espaços políticos a partir da proposta de mulheres feministas, mas não se pode afirmar a existência de um movimento feminista no Paraguai” (DURÉ, 2005, p.54). Em sentido oposto a esse, como veremos o feminismo paraguaio não apenas tem uma gênese a partir da qual esses ‘espaços políticos’ citados por Duré puderam identificar-se com o discurso feminista, como ele também está atravessado por faces e vozes feministas que tanto ultrapassam quanto interpelam o ‘feminismo institucionalizado’ no Estado paraguaio.

Voltando ao quadro mais amplo dos feminismos sulamericanos, instiga o forte paralelismo encontrado entre eles. Trajetórias coletivas, coalizões, estratégias, dilemas, disputas e divisões internas ao movimento, as imagens e argumentos levantados pelas feministas, suas tensões com os partidos, seus conflitos geracionais, os processos de profissionalização e ‘ONGuização’, a tendência a operar dentro daquilo que S. Alvarez e outras cunharam como a ‘lógica da advocacy’ – tudo isso, apenas para citar de forma telegráfica, atravessa a quase totalidade dos exemplos da militância feminista nos países da América do Sul.

Marca comum entre as análises pode ser vista no destaque dado às chamadas ‘feministas históricas’, definidas como uma geração de militantes “predominantemente brancas, de classe média e com formação universitária” (ALVAREZ, 2002, p.395)28. Na maior parte dos

casos, a performance das ‘pioneiras’, ou ‘fundadoras’ como também são chamadas, se deu ainda sob um clima político autoritário, mas, a despeito de serem reconhecidas por seu empenho e investimento iniciais nas formas e espaços de articulação feminista, elas são, em geral, alvo de dura crítica. Em diferentes contextos, as ‘históricas’ são acusadas de terem acionado o ‘feministômetro’, que serviria como um teste de veracidade de quem é ou não feminista, são acusadas de monopolizar espaços de recrutamento de novas gerações de feministas e, ainda, de controlar de forma autoritária a orientação assumida pelas suas organizações na relação mantida com outros atores, em especial, com os governos nacionais29.

28 Para definições muito próximas a essa, com ênfase respectivamente no perfil ‘intelectual’ e ‘profissionalizado’ das históricas, ver RAGO (2006, p.866) e GROSSI (1998, p.5).

29 Para uma crítica às ‘históricas’ chilenas, ver RÍOS (2002, p.322-ss). Para uma crítica feita pelas próprias ‘históricas’, no caso colombiano, ver WILLS (2002, p.422). Em nota, S. Alvarez et al citam como as ‘históricas’ foram descritas: “aquelas fundadoras do feminismo que se apropriaram dele para si próprias, e que empregam categorias

De frente para esse mar de críticas, do ponto de vista de nossa tese, vale apenas reconhecer a posição de centralidade ocupada pela geração das ‘históricas’ na vanguarda do movimento, em quase todos os casos sulamericanos e também no Paraguai, para então perscrutar as batalhas e as aporias advindas do exercício de tal liderança.

Outro traço importante na militância feminista sulamericana são as divisões que lhe compõem internamente, bem como aquelas caudatárias de divisões sociais mais amplas. No rol do primeiro grupo de divisões, a mais elementar oposição foi autônomas versus institucionalizadas que, no bojo da profissionalização da militância e da incorporação estatal da chamada ‘perspectiva de gênero’, se transformou, dando lugar às demais formas de divisão. Outros dois pares que repetidamente surgem nas análises são vistos no embate entre ‘feministas e políticas’ e também entre ‘militante versus técnica’, cujos ‘muros imaginários’30

parecem ter sido erodidos sob influência da Conferência Mundial da Mulher em 1995 e ainda, na recorrente oposição entre ‘políticas e intelectuais’ que traz à baila a tensão provocada pela aproximação com os atores partidários.

Já no grupo de divisões mais amplas entram marcadores sociais como raça, classe, pertencimento étnico e orientação sexual, que por caminhos específicos levam a um mesmo dilema: o difícil ponto de equilíbrio, necessário para a formulação de argumentos e reivindicações, entre o reconhecimento da desigualdade de poder e de recursos existente entre as mulheres e a construção de pontes entre elas ou mesmo de uma unidade forjada em torno delas31. A mobilização das feministas negras no Brasil e a contestação das identidades indígena e campesina no caso chileno, mexicano, boliviano e peruano, ilustram de forma nítida como as clivagens sociais atravessam irremediavelmente a luta feminista. No recorte de classe (cuja dinâmica de reprodução empírica não é de modo algum exterior às formas étnico-raciais de diferenciação social32), sobressai na literatura a já consagrada divisão entre movimento de mulheres e movimento feminista, que conjuntamente designam o que vem sendo chamado de movimento amplo de mulheres. Tendendo a variar conjunturalmente, as relações entre as duas partes não são alvo de rotulação fixa e o ponto distintivo entre ambas está tanto nas suas

que não apenas são obsoletas como também discriminatórias contra as mulheres que estão chegando no movimento” (GARGALLO apud ALVAREZ et al, 2003, p.549).

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Termo de Wills (2002, p.421). 31

Cabe notar que a construção de pontes e de uma unidade é uma necessidade mesmo para aquelas mulheres que partilham um mesmo discurso ou disposições sociais e orientações políticas próximas ou comuns. Como observa Lamas (2006, p.903) em tom crítico e autocrítico, a unidade pressuposta entre as feministas, denominada por ela de

mujerismo, é altamente nociva ao movimento, pois tal unidade é e deve ser sempre construída e negociada.

32 Ou, na síntese de Nancy Sternbach e outras, “[Black] and Indian feminists in Latin America argued that race, like class, is constitutive of gender consciousness and oppression and that their interests as women were not identical to those of white or mestiza Latin American women; that is, that one's lived experience of gender encompasses class and/or race specific dimensions”(STERNBACH et al, 1992, p.426).

origens de classe quanto, mais especialmente, na natureza dos objetos de tematização e dos argumentos levantados em torno de tais objetos. Em contextos autoritários, a exemplo do Brasil de meados dos anos 1970, a reivindicação por melhores condições de vida e de moradia e o acionamento de imagens que colam papeis familiares à mulher, chamada de ‘maternidade militante’ (ALVAREZ, 1990, p.50-51), contrastava fortemente com o discurso feminista, de base universitária e intelectualizada, mais voltado para questões voltadas ao uso do corpo, à intimidade ou à igualdade entre homens e mulheres.

Com o restabelecimento de regimes políticos democráticos, embora não seja desprovida de tensões, a relação entre os dois tipos de movimento parece cada vez mais caminhar na direção de diálogos e de pontes recíprocas. Isso é tanto mais verdade se considerados os processos de ONGuização e profissionalização de parte das organizações feministas, que passou a atuar como ‘especialistas de gênero’ e, ao mesmo tempo, passou a ver as mulheres das camadas populares como alvo, de modo a operar a partir de uma identidade híbrida simultaneamente ‘profissional-movimentista’33.

Aqui cabe uma ressalva com relação ao uso da noção de gênero e matizar em que registro a utilizamos. Embora no debate brasileiro tal noção tenha como marco fundamental a tradução do texto de Joan Scott, o gênero entendido como categoria que designa o caráter sociocultural das diferenças sexuais e das desigualdades a elas ligadas, teve seus antecedentes teóricos e históricos (NICHOLSON, 2000; FLAX, 1991), cuja recompilação exaustiva, seja em função da superação da ideia (politizada, porém reificada) de ‘mulher’ ou da crítica aos limites da noção de patriarcado, não seria frutífera nos limites deste trabalho. Caudatário dos argumentos feministas da segunda onda, o gênero enfatiza o fato de que as diferenças sexuais não são nem fixas, nem essenciais, nem biológicas. Além disso, a noção permite identificar as instituições e formas através das quais a divisão sexual do trabalho organiza a realidade social, com base em representações sobre os mundos público e privado e em posições (sexuadas) de sujeito supostamente a eles correlatas.

Contudo, a noção de gênero no todo desta tese não deve ser tomada em sentido analítico, mas antes em registro empírico, ou seja, tal como ela é entendida e empregada pelas organizações pesquisadas e pelos documentos forjados nos laços e aproximações entre elas e a institucionalidade estatal. Em registro positivo, irão aparecer ideias como ‘perspectiva’, ‘padrões’ ou ‘dinâmicas de gênero’. Certamente, essas formas empíricas de uso e significação não estão descoladas de diferentes níveis da acepção mais teórico-acadêmica da noção, em especial, nos casos em que falas e argumentos das feministas paraguaias enfatizam o caráter

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não-natural da diferença sexual34. Não se trata, portanto, de uma análise de gênero e tampouco de tomá-la como noção autoevidente; trata-se, antes, de uma análise dos usos do ‘gênero’, das funções político-culturais por ele desempenhadas nos projetos e discursos, nas relações e embates entre atrizes, instituições e atores perscrutados.

Essa diferenciação entre o uso analítico do gênero e a inquirição do seu sentido empírico é tanto mais importante se observarmos que os anos 1990, em praticamente todos os países latinoamericanos, foram marcados pela incorporação estatal da chamada ‘perspectiva’ ou ‘agenda de gênero’. Essa incorporação, por um lado, foi produto daquela forma híbrida de mobilização das feministas que, desde meados dos anos 1980, situadas entre o movimento de mulheres e o ativismo profissionalizado, se inseriram em aparatos político-públicos e, com elas, trouxeram uma série de discursos feministas. Em diferentes casos nacionais, os órgãos