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2. Herança stronista: sobre a tríade Partido-Estado-Forças Armadas e a vocação

2.1. Interpretações do regime (1954-89)

Desde a Guerra da Tríplice Aliança (1865-70), a história paraguaia está permeada por sucessivos combates internos e externos como, por exemplo, a Guerra do Chaco, contra a Bolívia (1932-35), da qual o Paraguai saiu vitorioso, porém internamente destruído. Junto de tais combates, a alternância no poder entre Partido Colorado e Partido Liberal não significou, em nenhum momento desde 1870 até 1989, o estabelecimento de um regime proto ou semidemocrático uma vez que, na maior parte das vezes, os estamentos militares (variando de acordo com o tom no espectro ideológico, Liberais-azul e Colorados-vermelho43) se revezavam de forma violenta e autoritária no governo paraguaio (LEWIS, 1980). Em 1947, entretanto, uma violenta guerra civil, iniciada com a organização de liberais e comunistas contra o Partido Colorado então no poder, marcaria definitivamente a dominação roja, dando início ao período do 'terror colorado'. Segundo Lewis, durante este período, devido à “busca casa por casa aos

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Os nomes oficiais desses partidos são Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), o Partido Liberal, e Associação Nacional Republicana (ANR), o arquiconhecido Partido Colorado, ao qual correspondem os termos coloradismo e também oficialismo.

opositores”, 80% dos militares de oposição abandonaram as Forças Armadas e milhares de civis fugiram para a Argentina, “levando com eles a última esperança de democracia” (LEWIS, 1980, p.78).

Se levarmos em conta apenas este sucinto panorama, o regime de Stroessner aparece como caudatário de uma história política notadamente caracterizada pelo autoristarismo, pelo envolvimento em guerras, bem como pela militarização do Estado e da sociedade. Frente a esse contexto de alta instabilidade, o stronismo impressiona por sua longevidade. Alfredo Stroessner seria, em 1954, o oitavo presidente em apenas sete anos, e seria, supostamente, mais um dentre tantos outros ditadores que, em breve, daria lugar a outro golpe e a outra facção colorada. Como observa Lewis, em fins dos anos 1950, nenhum dos grupos internos ao coloradismo pretendia que Stroessner se mantivesse na presidência por mais tempo. Dado significativo disso é a observação de um historiador estadunidense, segundo a qual: “embora o General Stroessner tenha sido capaz de se manter no poder durante o período pesquisado, houve tentativas de tirá-lo a força em 1955, 1956 e 1957” (STOKES, 1964, p.128). Como se sabe, no entanto, Stroessner permaneceu no poder até o fim da década de 1980. Esse sucesso ditatorial, especialmente em um dicionário histórico-político que desconhecia o verbete ‘estabilidade’, se deu “graças, não apenas à repressão, mas (...) à sua habilidade política para fazer uma série de alianças com o bloco político-econômico e militar, bem como, [para fazer] o refinamento dos mecanismos de controle que serviam para desmobilizar e cooptar partes da sociedade civil” (LAMBERT, 1997a, p.3). Tais mecanismos e alianças estão, por sua vez, subsumidos à forte e complexa simbiose entre Partido, Estado e Forças Armadas, tríade cujo centro real e simbólico foi ocupado pelo general.

Em sua primeira década e meia de existência, o stronismo logrou com notório sucesso extirpar via repressão seus opositores político-partidários. De acordo com a maior parte da historiografia do Paraguai, o regime autoritário, relativamente às práticas repressivas, pode ser dividido em três fases distintas (LEWIS, 1980, p.332-34): a primeira, até 1963, foi sua fase mais violenta, dado que ali se iniciara a limpeza política, com formas agudas de perseguição e extermíniodos opositores civis e militares, quer fossem externos ou internos ao Partido Colorado; a segunda, cristalizada na Constituição de 1967, marcada por uma estratégia desmobilizadora de ‘incluir’, ao menos formalmente, a oposição nas eleições para o Parlamento; e a terceira fase, iniciada na segunda metade dos anos setenta, as tensões sociais voltaram a aumentar, pois, no bojo da exclusão produzida pela política econômica voltada para o capital estrangeiro e para a construção de Itaipu – o ‘milagre brasileiro do Paraguai’ (HILL,

1993) –, frações organizadas do campesinato foram violentamente reprimidas (LARA CASTRO, 1985).

Ponto central na performance stronista é o incessante recurso à legalidade. Discursos públicos, constituições e mesmo eleições, com repetidas vitórias altissonantes de Stroessner, faziam constante e orgulhosa referência à ordem legal e à ‘democracia’ – ‘democracia gua’u’, como dizem no Paraguai, algo entre de mentira e de brincadeira, em guarani. “[Os] partidos gozam de garantias máximas (...). Os direitos cidadãos funcionam com regularidade (...). As liberdades e direitos consagrados pela Constituição têm ampla vigência (...). Nessas condições”, acreditava o ditador, “é possível afirmar que nossa democracia é uma das mais efetivas do continente” (STROESSNER, 1966, p.121-123)44. Esse tipo de evocação à

democracia e a realização de supostas eleições foram alcunhadas de ‘ritualização da política’ (ARDITI, 1992). Por um lado, por meio desse tipo de ritual o regime stronista desmobilizava a oposição político-partidária, visto que cooptava partes importantes do opositor histórico ao coloradismo, o Partido Liberal. Reside aí uma das mais eficazes estratégias do regime: a 'participação' autorizada dos setores brandos da oposição: “[Após] uma fase inicial de política não-competitiva monopartidária (1954-62), Stroessner permitiu um sistema pluripartidário rigidamente controlado com atividade política limitada dada a partidos de oposição selecionados” (LAMBERT, 1997a, p.12). Por meio da suposta tolerância partidária, o regime de Stroessner desmobilizava a esquerda, dividindo-a entre legais/ilegais, entre brandos/radicais e, em especial, separando aqueles que participam do jogo político, aceitando-o em suas regras, daqueles taxados de irregulares ou abstencionistas que se negavam a jogá-lo (ARDIT, 1992). Assim, a repressão propriamente político-partidária, apesar de apresentar altos e baixos em seus níveis de violência, esteve fortemente alicerçada na sua capacidade de 'incluir' a oposição em um jogo cujas regras autoritárias estavam já dadas.

Por outro lado, o uso ritual das eleições também proporcionava uma fachada democrática à comunidade internacional e aos Estados Unidos, em especial. Como viria a ser o caso nos autoritarismos ulteriores do Cone Sul, o regime stronista teve no apoio militar e técnico estadunidense, isto é, na ‘Doutrina de Segurança Nacional’ e na luta contra o ‘inimigo comunista’, um de seus principais suportes de natureza material e ideológica (YORE, 1992; MORAES, 2000). No âmbito das práticas repressivas, no entanto, o regime paraguaio, tal como

sus hermanos sudamericanos, criava de forma algo obscura e arbitrária seus ‘inimigos’ a serem

44 Todos os discursos citados foram retirados dos terceiros e quarto tomos da coleção ‘Mensajes y discursos del Excelentíssimo Señor Presidente de la Republica del Paraguay General del Ejército Don Alfredo Stroessner’ (PARAGUAY, 1981). Os discursos advêm de eventos corriqueiros no exercício da função presidencial, como viagens internacionais, homenagens oficiais, festas natalinas, recepções no Lyons Club, conversas com a imprensa ou com o Parlamento.

perseguidos e eliminados. Foi, em geral, neste registro ideológico do anticomunismo, legalmente amparadas pelo Estado de sítio (Art.79) e, dentro dele, pela ‘Defesa da democracia’ (lei n.294/1955), que se davam as formas de repressão e violência contra setores mobilizados na sociedade civil45.

Eficaz instrumento de perseguição e repressão do regime autoritário paraguaio foi a chamada “Operação Condor”, designação dada à aliança entre os governos militares de Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, forjado em meados da década de 1970. O ‘Condor’ tinha como objetivo perseguir, encontrar e extirpar os ’inimigos’ nas fronteiras entre esses mesmos países46. Bem ao modo da vigilância totalitária, o repertório logístico-burocrático desse dispositivo repressivo compreendia “sede, arquivos, pastas, funcionários, chefes, subchefes, cargos, promoções (...) tudo girando em torno da coleta de dados para a realização de novas prisões e assassinatos, para o aniquilamento do ‘inimigo’ (SANTOS, 1998, p.28-29). No Paraguai, o ‘Condor’ era parte da polícia política stronista, cuja descoberta posterior de documentos e dados foi alcunhada por ativistas pró-Direitos Humanos como os ‘Archivos del

Terror’ (BOCCIA, GONZÁLEZ e PALAU, 1994; NICKSON, 1995). O acesso parcial a tais

documentos (e, portanto, ao nome das pessoas perseguidas, fichadas ou presas pela polícia stronista) está atualmente disponível na rede mundial de computadores, e uma breve mirada aí pode dizer bastante da influência da Operação Condor sobre o saber policial paraguaio47: as buscas para os anos “1973”, “1974” e “1975” apresentam, respectivamente, 544, 570 e 862 documentos; daí em diante, quando o ‘Condor’ é institucionalizado secretamente no Paraguai, o número de arquivos coletados por ano passa a girar ao redor de dois mil casos nos Archivos. Ainda que eficaz, a repressão não foi o único meio pelo qual o regime logrou se reproduzir por tempo tão longo. Paralelamente às práticas repressivas, se desenrolou o chamado ‘pacto cívico-militar’, tal como é amplamente conhecido na historiografia paraguaia, que levou a um duplo processo: à partidarização do Exército e à militarização do partido oficialista. Tal processo submeteu e subverteu o partido e, principalmente, deslocou o jogo das lealdades pessoais e políticas do Partido e da instituição armada para a pessoa do ditador (YORE, 1992, p.95-ss)48. Estavam dadas, assim, as condições nas quais operavam, por um

45 Em seu comentário ‘A tirania Stroessner’, Paulo Sérgio Pinheiro satiriza e sintetiza bem esse misturado e monstruoso estado de sítio democrático: “Lá o Poder Executivo pode dissolver o Parlamento quantas vezes quiser e governar com decretos-leis (que sonho). O presidente da República pode ser reeleito indefinidamente (que beleza). O estado de sítio pode ser declarado somente pelo presidente da República” (PINHEIRO, 1987)

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Para um panorama mais detalhado do sistema administrativo-repressivo paraguaio ao tempo da ditadura de Stroessner, veja SANTOS (1998).

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Veja-se www.aladin0.wrlc.org/gsdl/collect/terror/terror_s.shtml.

48 Mais uma vez, P.S. Pinheiro sintetiza: “O partido do governo é mais que uma parte da opinião pública: é realmente um órgão estatal que sem nenhum disfarce se acha financiado por contribuições do setor público. A administração do Estado é uma verdadeira tesouraria para os descontos destinados ao partido. Configurando de fato um sistema de

lado, a unificação partidária ‘granítica’, na qual os desleais eram punidos com perseguição e repressão e, por outro lado, a institucionalização da corrupção que, embora tivesse permeado a estrutura político-burocrática como um todo, serviu como moeda de troca em torno da qual os militares fiéis a Stroessner barganhavam seu apoio ao regime. Neste sentido, a garantia de sobrevivência hierárquica e, sobretudo, econômica das elites civil e militar extrapolava os limites de uso da gestão pública, por meio de sua participação autorizada e privada no mercado, tanto quanto, pelo envolvimento direto no contrabando de armas, de drogas ou de mercadorias legais ou não (NICKSON, 1997, p.24).

Para além dos estamentos militares, o regime stronista logrou pacificar e cooptar frações importantes da sociedade civil por meio da oferta seletiva de toda sorte de prebendas como, por exemplo, cargos, serviços, contratos e favores – cuja distribuição a uma clientela de indivíduos e grupos particulares teve como efeito a produção de laços de dependência em relação ao Estado e ao partido simultaneamente. Quer dizer, o acesso às prebendas estatais de variados naipes tinha como condição primeira e inegociável uma forma de lealdade traduzida no alistamento quase compulsório ao coloradismo49. Daí que, em uma realidade social que praticamente desconhecia a estruturação do mercado como uma esfera (suposta ou realmente) autônoma, a disputa em torno das posições-chave disponíveis ligadas ao aparelho estatal passasse necessariamente por um tipo de profissão de fé para com o partido ou com a figura do ditador. Tal distribuição prebendária era organizada pelo partido e mediada pelos aparatos político-burocráticos, favorecendo alguns poucos atores que, a exemplo da nascente e corrupta burguesia rotulada no Paraguai de ‘Barões de Itaipu’, superfaturavam contratos públicos nacionais e internacionais (MASI, 1989). Através dessa forma de clientelismo, o stronismo operava o que Arditi chamou de ‘consenso passivo cúmplice’, que

“[operou] habilmente para desincentivar resistências. A corrupção via contrabando, a obtenção fraudulenta de licitações, o superfaturamento do orçamento de obras públicas (...), as comissões pagas a gestores e intermediários (...) e as prebendas a quem detinha altos cargos [tudo isso] criava um ‘esprit de corps’ muito especial entre eles, fosse para acrescentar ou para proteger seus privilégios. Diante da ausência de contrapesos sociais, o controle do aparato estatal e do orçamento público por parte do Partido Colorado tornou possível distribuir favores que permitiam manter o poder de caudilhos e afirmar sua lealdade ao líder e ao partido, mas também gerava o agradecimento dos beneficiários de escassos recursos e lhes dava uma via de ascensão social” (ARDITI, 1992, p.37)

Somado à institucionalização da corrupção, o crescimento econômico característico da década de 1970 contribuiu tanto para afiançar a moeda de troca do regime (apoio-por-lucro),

partido único. Como o partido, o Exército paraguaio afirma sua lealdade aos interesses das cliques que convém ao governo” (PINHEIRO, 1987).

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Digo quase compulsório porque, menos que uma regra propriamente normatizada pelo coloradismo, o alistamento era uma prática que, com as décadas, se tornou um costume partidário-estatal.

quanto para legitimá-lo mais ampla e posteriormente. Neste sentido, o Paraguai, não só experimentou nessa década níveis de desenvolvimento econômico nunca antes vistos por sua população, especialmente se comparado aos níveis de miséria da primeira metade do século passado, mas, teve também um dos maiores índices de crescimento da América Latina (HILL, 1993). Entretanto, embora tenha composto a posteriori uma das fontes de legitimação do regime, o 'milagre econômico' à paraguaia não constitui por si só uma base do regime autoritário. Isso porque esse desenvolvimento é indissociável da estrutura e do aparelhamento político-burocrático no interior do qual ele ganhou vida. Ou, em outras palavras – tal como é possível entrever por meio do mote clássico do regime 'Paz, Trabajo y Bienestar con

Stroessner' –, na medida em que crescimento econômico se articula, empírica e politicamente,

ao sistema prebendário e corruptivo, sua lógica obedece necessariamente àquela base tripartite do autoritarismo paraguaio – Partido-Estado-Forças Armadas.

Assim o chamado ‘consenso passivo cúmplice’, tendo ultrapassado a corrupção e as barganhas entre frações de militares50, teve efeitos sobre a materialização de um quadro burocrático cuja composição e funcionamento não se assentavam em uma racionalidade de Estado, mas, antes, na sua partidarização, desprofissionalização e hipertrofia profunda, bem como na adulação do general. “Ninguém podia trabalhar na administração pública, nem como professora, nem como juiz, nem como militar, se não estivesse filiado à ANR [Associação Nacional Republicana]” (BAREIRO et al, 2004, p.139).

A expressão jurídica que instituía e consagrava a partidarização e a desprofissionalização estatal foi a Lei n.200, de 1970, que ‘estabelece o estatuto do funcionário público’ e cujas disposições regulavam “as relações entre o Estado e seus funcionários e empregados, com o propósito de garantir uma administração pública eficiente” (PARAGUAY, 1970). Embora fizesse alusão a uma genérica ‘carreira administrativa’, a redação da lei não trata objetivamente de condições de trabalho no Estado e dos direitos de seus trabalhadores. Curiosamente, ela tampouco explicita qualquer ideia de vinculação obrigatória entre o Partido Colorado e a ocupação de um dado cargo político-administrativo. Para preencher os requisitos de um burocrata, seu artigo quarto traz um tipo de prescrição moral repetida em vários pontos da lei: basta ‘ter boa conduta’, ‘justificar o cumprimento das obrigações pessoais exigidas pela

50 “Muitas das prebendas distribuídas Stroessner vão dirigidas aos militares (...) eles ocupam alguns dos postos mais lucrativos do Estado. (...) Devido à falta de capital privado ou a que algumas atividades são consideradas muito essenciais ao bem-estar público (...), o governo paraguaio estabeleceu certos monopólios estatais. De maneira que (...) tudo cai sob a autoridade do compadrio [padrinazgo] de Stroessner. Muitas dessas empresas são dirigidas por oficiais do Exército. (...) Militares e policiais de alto nível também têm acesso às enormes recompensas do contrabando no Paraguai (...). Todas as áreas do comércio de contrabando estão divididas, como feudos, entre os oficiais (...). Quanto mais importante o nome do oficial, mais lucrativa é a fraude sistematizada a ele adjudicada” (LEWIS, 1986, p.245-252).

lei’ e ‘possuir a idoneidade necessária para o exercício do cargo’. Desnecessário insistir que, na prática, ‘boa conduta’ e ‘idoneidade’ eram atestadas pela filiação partidária ou por alguma demonstração de apreço pelo ditador. Ironicamente, em diferentes artigos51, a lei falava da realização de cursos de capacitação para os funcionários, em sua imensa maioria, tecnicamente incapazes ou escolarmente limitados ou ambos.

A curto e médio prazo, essa dinâmica stronista de seleção formou um quadro estatal inchado e despreparado em diversos níveis e setores da administração pública privatizada e levou, em paralelo, a um volume tristemente impressionante de filiação colorada52. Já no longo prazo, com o decorrer de mais de três décadas de seleção irracional e prebendária, parte nada insignificante do funcionalismo público paraguaio foi ocupada por funcionários ‘fantasmas’, os chamados ‘planilleros’53. Dois exemplos dramáticos da irracionalidade incrustrada no tecido

burocrático-administrativo paraguaio estão, de um lado, na desvinculação entre postos de trabalho, funções desempenhadas e salários correlatos a essas mesmas funções e, de outro, no desconhecimento apenas recentemente sanado da quantidade real de empregados públicos no país (PARAGUAY, 2010)

Exceção a essa dinâmica de seleção burocrática desprofissionalizada foi a chamada Secretaria Técnica de Planificação, constituída em meados de 1962, como órgão político- administrativo dependente da Presidência da República. Embora ainda esteja à espera de uma leitura sistemática mais que necessária a respeito de suas formação e transformação institucionais, é válido notar como essa agência operou como ilha de racionalidade estatal no oceano de funcionários que afundavam o Estado paraguaio, pois nela se concentravam praticamente todos os planos e projetos que faziam as vezes de políticas públicas stronistas. A seguinte fala do próprio ditador permite notar a disposição burocrática desse órgão e, nela, a noção de produção e acúmulo de conhecimento estatal tal como sugerida por Giddens e incorporada em nossa hipótese:

“O incremento acelerado do bem-estar nacional poderá ser produzido com o conhecimento e o aproveitamento harmônico de todos os recursos naturais e humanos de que dispõe nosso país. Neste trabalho de imensa transcendência para a orientação da política nacional nos distintos campos do fazer

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Cf. Art. 20; Art. 67 (PARAGUAY, 1970).

52 Cf. “Colorado membership rosters were enormous (1.7 million affiliates), due in part to the expansion of public employment under Stroessner. Membership, payroll deductions to the party, and subscriptions to the party newspaper were all obligatory for public employees. In addition to public employees, many people (…) joined the party for survival” (POWERS, 1992, p.33-34).

53 No Paraguai, esses planilleros são ‘funcionários fatasmas’, aqueles que não trabalham de fato, mas aparecem nas planilhas de gastos e salários do Estado. Imediatamente depois da histórica derrota do Partido Colorado nas eleições presidenciais de 2008, “[esses] planilleros viram-se obrigados a voltar a seus postos, muitos dos quais careciam de escritório, cadeiras, etc. Ocorre que na administração que está acabando [2003-2008] eles não precisavam ir ao escritório, bastava mostrar suas credenciais de colorados e estar em dia com alguma seccional colorada para não serem incomodados” (RIQUELME, 2008) (Grifo meu).

governamental, a Secretaria [Técnica] de Planificação está realizando uma tarefa de promoção e coordenação dos esforços nacionais com o propósito de conquistar (...) a prosperidade da nação” (STROESSNER, 1966, p.145) (Grifos meus).

Aquém da institucionalidade político-administrativa corrupta e partidarizada, é importante apontar como o regime operava também no nível das relações cotidianas por meio das chamadas ‘seccionales’ coloradas: menos do que reproduzir a repressão em nível microssocial, as seccionais do partido exerciam vigilância insidiosa sobre vizinhanças, bairros e cidades inteiras, operando local e psicologicamente como dispositivo estatal-colorado de coerção e de controle. Um documento coletado e publicado em ‘Es mi informe’ (BOCCIA, GONZALEZ e PALAU, 1994) exemplifica o efeito colonizador das seccionais: em uma comunicação à polícia vê-se uma lista de nomes de jovens que poderiam concorrer a uma vaga no ensino médio, contudo os pais do segundo aluno listado “não se encontram registrados como afiliados na Seccional Colorada 17, (...) tampouco foi registrada atividade qualquer em favor da Seccional”. Casos como este se espalham pelo livro de Boccia et al (1994) e, em comum, eles mostram como a distância/proximidade mantida com a ‘seccional’ fez as vezes de critério de controle ideológico-familiar e, neste caso, como critério para a seleção escolar.

Arditi (1982) fala em um elo semioficial entre a polícia e as seccionais, ao passo que outros autores dizem que, além de comitês locais do partido, elas funcionavam como quadros policiais e parapoliciais, verdadeiras ‘milícias coloradas’, a partir das quais eram delatados e perseguidos possíveis opositores, reais ou imaginários (MASI, 1989). Distribuídas em uma rede nacional de controle e influência, as mais de 230 seccionales estavam, no ano de 1988, por 17 departamentos paraguaios e “representavam os 'olhos e os ouvidos' do governo, empregando milhões de pyragués” (LAMBERT, 1997a, p. 7)54. “Nessa época”, diz Gloria Rubin, ativista

histórica do feminismo paraguaio e atual Ministra da Secretaria da Mulher, “tinham [no país] quatro milhões de habitantes e provavelmente três milhões eram informantes”, e segue, “todos