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Origens sociais e intelectuais da Coordenação de Mulheres do Paragua

3. Gênese e estruturação do feminismo paraguaio

3.1. Sobre a gênese do feminismo contemporâneo no Paraguai Oportunidade ou

3.1.1 Origens sociais e intelectuais da Coordenação de Mulheres do Paragua

Dado que o projeto político que esteve na raiz genética da CMP levava uma ênfase eminentemente jurídica, poderíamos rapidamente pensar que isso se deve ao tipo de educação formal de suas líderes: provavelmente elas são advogadas e, então, nada mais natural que a transformação jurídica seja o meio e alvo privilegiado da sua vontade coletiva. De fato, pouco

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Outras interpretações tendem a fazer uma correspondência direta, porém fortemente ambígua, entre oportunidade e movimento social: “A conclusão mais importante disso tudo é que resulta evidente que o tipo de movimento que possa surgir em um momento dado dependerá das oportunidades políticas específicas que o catalisem. Sabíamos que estas [oportunidades] determinavam o momento se seu surgimento, mas devemos aceitar que também têm uma grande influência quanto à forma que [os movimentos] adotam. (...) É possível dizer então que o tipo de oportunidade aproveitada determina, de forma muito geral, o tipo de movimento que surgirá” (McADAM, McCARTHY, ZALD, 1999, p.34) (Grifos meus). A diferença entre tipo e forma não fica explicitada nestes autores, e, a partir deles, ficamos sabendo apenas que a oportunidade mantém uma relação ‘muito geral’ com o surgimento do movimento.

mais da metade de suas ‘panelistas’, seis das dez expositoras, tinha sua formação universitária em Direito. No entanto, de forma bastante interessante, nenhuma das autoras dos painéis debatidos no Encontro, fossem elas formadas ou não em Faculdades de Direito, estava ligada à Associação e tampouco ao Círculo de Advogadas do Paraguai, não sendo advogadas de atuação profissional. Assim, a formação e tampouco a atuação jurídicas de parte importante das ‘panelistas’ do Encontro não explicam per se a ênfase desse projeto88.

Se olharmos para o conteúdo das siglas das organizações que lideraram o Encontro Nacional, encontraremos um perfil bastante próximo daquilo que T. Skocpol chamou de ‘carreira ampla’, isto é, uma combinação de ‘pesquisa social’ com ‘ativismo cívico’ e também com ‘períodos intermitentes no serviço público’89. Essas siglas designam grupos ou centros ‘de

estudos’, ‘da mulher’, ‘de população’, ‘estudos humanitários’, ‘investigações’, para não mencionar o núcleo impulsor daquele seminário de fins de 1986. O que esses nomes mostram em seu conjunto é que, ao lado de uma certa intimidade com a linguagem do Direito (compartilhada por quase metade das autoras do Encontro, mas cujo domínio não pressupunha seu exercício profissional necessariamente), essas mulheres traziam em sua experiência uma determinada e específica capacidade intelectual quanto à compreensão das formas de opressão feminina. Tal capacidade se expressa não tanto na ideia anteriormente defendida de que elas prescindem de uma visão jurídica de mundo. Muito antes, vindas de organizações não- governamentais e redes de pesquisa, como por exemplo, o Centro Paraguaio de Estudos Sociológicos (CPES), essas autoras contavam com os recursos intelectuais através dos quais são capazes de argumentar a respeito, não só da multiplicidade social das formas de discriminação, mas também da necessidade de sua transformação. Seus textos trazem nas referências bibliográficas nomes de intelectuais paraguaios como Benjamin Arditi e Luis Galeano (interlocutores, amigos e parentes dessas mulheres90), e sobrenomes internacionais a

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Dizer que a formação acadêmica não é determinante por si só nesse projeto e, mais adiante, nos rumos assumidos pela articuladora a que ele serve de matriz, significa prescindir do tipo de explicação que olha para dado perfil universitário e dele desdobra um destino correlato para as lutas (neste caso) feministas, tal como o faz V. Montecinos (2003), que estabelece uma relação direta entre a ‘disciplina da economia’ e ‘tecnocracia de gênero’. Diria que esse tipo de análise peca precisamente por prescindir da função de mediação realizada pelo projeto político, que não decorre única ou diretamente de um dado saber consagrado.

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Skocpol, 1995, p.349. A análise do perfil social das líderes do Encontro Nacional se inspira na análise de ‘Educated women as Reform leaders’ (p.340-ss) e naquilo que Skocpol chama de ‘linhas duais de determinação’(p.47), por meio das quais ela abre mão de uma forma político-institucional de explicação da ação coletiva, de forma a ‘combiná-la’ com ‘fatores sociais’ na base da formação de ‘grupos politicamente ativos’ – os destacados são termos dela.

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Os exemplos de cruzamento entre relações intelectuais e de parentesco se multiplicam na sociedade civil paraguaia. Para o que interessa aqui basta notar que o prefácio de “A sociedade apesar do Estado” (1987), de autoria de Benjamin Arditi e de José Carlos Rodriguez, foi escrito por Line Bareiro. Este último autor é irmão da ‘jornalista feminista’, citada no próximo subtópico, Maria Liz Rodriguez, ao passo que Domingo Rivarola, o organizador de “Movimentos sociais no Paraguai” (1986), é pai de Mirtha Rivarola, então pesquisadora de GEMPA e atualmente no Fundo de População das Nações Unidas, UNFPA-Paraguai.

exemplo de Julieta Kirkwood, Simone de Beauvoir e Jean Paul Sartre, ou ainda Virginia Vargas, Silvia Pimentel e Paul Singer.

Não somente isso: ao mesmo tempo em que trazem tais referenciais teóricos, elas são sua própria bibliografia. Desde a primeira metade da década de 1980, o subgrupo de mulheres envolvidas com a ‘pesquisa social’ produzia diversas reflexões sob a forma de artigos, de relatórios, de depoimentos ou de livros, nos quais era abordada a temática das mulheres. Esse é o caso de Olga Caballero e também de Graziella Corvalán, que, além de organizar a revista ‘Enfoques de Mulher’ desde 1986, reuniu a ‘Bibliografia dos estudos da mulher no Paraguai’91.

Foi o exemplo de Manuelita Escobar e de Line Bareiro, autoras de “Obstáculos para a participação política das mulheres no Paraguai”, texto citado na memória do Encontro Nacional, e, ainda, das reflexões de Olga Zarza, Maria Victoria Heickel e de Esther Prieto, nessa área de tematização específica ou em temas afins92.

A partir dessas reflexões, o caráter altamente intelectualizado das mulheres da ‘pesquisa social’ não apenas marca o perfil das lideranças do Encontro Nacional, como é também parte constitutiva do argumento defendido no e pelo projeto desse encontro. Os dois capítulos de abertura da memória dessa reunião – ‘Discriminação da Mulher na atualidade’ e ‘Ser Mulher no Paraguai’ – foram redigidos, respectivamente, pelas sociólogas do Grupo de Estudos da Mulher Paraguaia (GEMPA), situado no CPES e de BASE-IS. Neles são apresentadas pesquisas e estatísticas a partir das quais são diagnosticadas diferentes formas de discriminação contra a mulher a partir de diferentes posições de classe. No texto das pesquisadoras do GEMPA, a “discriminação econômica” ganha centralidade, pois ela “impõe a mulher uma série de limitações e obstáculos para sua incorporação e desempenho no mundo da produção em condições de igualdade com o homem”93. Articulada a uma “superestrutura cultural” reprodutora

de “valores patriarcais”94, e no bojo dos processos de pauperização e de emigração do mundo

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GODOY ZIOGAS, M.; CABALLERO AQUINO, O.; ESCOBAR de PEÑA, M. Pintadas por sí mismas. Asunción, El Gráfico SRL, 1986. CORVALÁN, G.; CENTURIÓN, M. Bibliografía sobre estudios de la mujer en el Paraguay. Asunción, CPES, GEMPA, 1986.

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BAREIRO, L.; ESCOBAR, M. Obstáculos para la participación política de las mujeres en el Paraguay: caso del movimiento estudantil Independiente. In: Conferencia Internacional sobre Participación Política de la Mujer en el Cono Sur. Montevideo, junio de 1986. BAREIRO, L.; ESCOBAR, M.; ZARZA, O.; MAYEREGGER, H. Las mujeres

paraguayas y su participación política: 30 testimonios. Conferencia Internacional... Montevideo, junio de 1986.

HEIKEL, M.V. El aprendizaje en el cotidiano y la participación de mujeres en sectores populares. BASE, 1985. HEIKEL, M.V. Los proyectos populares de ocupación del suelo. Vivienda, Municípios y Participación. Ponencia presentada al Seminario ‘Vivienda popular y los programas de reubicación de damnificados’. CEURA, CLACSO, CPES, BASE, 1985. PRIETO, E. (198?) Indígenas y Democratizacion en América In Anuario Centro de Estudios Antropológicos de la Universidad Católica.

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G. Corvalán, M. Rivarola, O. Zarza. “Discriminação da Mulher na atualidade” In: Por nuestra igualdad..., p.17. 94 “[Podemos] concluir que a discriminação econômica da mulher está determinada tanto pelas condições próprias do mercado de trabalho quanto por toda uma superestrutura cultural que sobredetermina a [discriminação] anterior a partir de valores patriarcais que definem de forma estereotipada a posição da mulher na sociedade” (CORVALÁN, RIVAROLA, ZARZA, 1987, p.24).

rural, a discriminação atinge de forma mais grave e específica um grupo social: “a modernização prejudicou mais fortemente um amplo segmento social do campesinato (...). Trata-se do [grupo] conformado pelas unidades familiares encabeçadas por mulheres, geralmente com prole numerosa”95.

Já o segundo capítulo, bastante enraizado numa espécie de demografia crítica, faz um diagnóstico ‘quantificado’96 das várias faces da desigualdade desagregadas por sexo: de

caráter espacial (no continuum rural/urbano), lingüística (monolinguismo guarani/castelhano ou bilinguismo), escolar (oportunidade/desistência de educação formal), por forma de inserção no mercado e natureza do trabalho, e também na estrutura do lar. No emaranhado complexo dessas faces, os dados mostram que a organização familiar no Paraguai da década de 1980, embora mantivesse um padrão de divisão sexual do trabalho mais rígido nas áreas rurais que nas áreas urbanas, estava submetida a uma transformação interna e intensa, a saber, uma tendência na qual, devido à diversificação nas oportunidades de educação, à migração rumo aos centros urbanos, e à femininização do trabalho no mercado informal, as mulheres (sejam elas mães ou avós, fossem solteiras ou separadas, no campo ou na cidade) passam a chefiar as unidades familiares sem a presença conjugada de homens e tampouco sem sua liderança econômica.

“A proporção relativamente grande de mulheres em lares unipessoais, na cidade e no campo, deixa ver um alto grau de independência efetiva dessas mulheres, e confirma a tendência que vinha se insinuando sobre a maior capacidade (...) de alterar formas tradicionalmente consolidadas, que marcaram por bastante tempo os limites do comportamento feminino” (HEIKEL, 1987, p.45).

Logo após essa conclusão, em seu anexo (p.46-62), encontram-se quinze quadros que se somam às tabelas apresentadas e discutidas ao longo do capítulo. Juntos, os dois textos introdutórios exemplificam adequadamente a posição ocupada pela ‘pesquisa social’ (e, por conseguinte, pelos instrumentos e recursos intelectuais ligados a esse tipo de pesquisa) no argumento veiculado pelo Encontro Nacional de Mulheres. Os diagnósticos desses textos servem, de forma tácita ou explícita, como uma espécie de inspiração bibliográfica para os demais capítulos.

Dizíamos antes que um dos pontos mais criticados pelas mulheres reunidas no Encontro Nacional girava em torno da reorientação legal assumida pelo concubinato: “[Sob] o pretexto de proteger vínculos legais se ignora uma realidade (...). O princípio do Código é que as uniões de fato não devem ser amparadas por lei”, nos diz Olga Caballero (1987, p.103), e segue:

95 “Discriminação da Mulher na atualidade” In: Por nuestra igualdad..., p.19.

96 “O trabalho realizado não tem pretensões acadêmicas, [e] nem todos seus ‘achados’ são uma novidade. Sua principal contribuição deveria estar em que, ao quantificar os fatos conhecidos, se tem uma ferramenta a mais para avaliar em sua justa magnitude o problema das diferenças por sexos” (HEIKEL, 1987, p.26).

“Recortam-se drasticamente os direitos da concubina. Os legisladores pretendem por fim as uniões de fato desprotegendo os direitos daquela.

O concubinato é uma instituição muito arraigada na nossa sociedade e a porcentagem desse tipo de uniões em alguns lugares do campo chega de 60 a 80%. Não é com limitações de tipo legal que se erradicará esse tipo de costume” (CABALLERO, 1987, p.103).

Ao tentar regular juridicamente a dinâmica das relações afetivas, o Código Civil stronista não estava somente defendendo uma versão idealizada de família nuclear e biparental – com a esposa no seu devido e privado lugar, é evidente. Ao mesmo tempo, ele estava solenemente ignorando o concubinato, esse ‘costume’, verdadeira ‘instituição’ paraguaia cuja ‘realidade’, segundo os resultados das pesquisas sociais, tendia a apontar para a ‘alteração’ de padrões e ‘formas tradicionais’ de organização familiar. Expressamente inspirada pelos achados sociológicos, a ideia do concubinato como ‘fenômeno social’ é reafirmada no texto de fechamento da memória do Encontro, de autoria de Mercedes Sandoval de Hempel – quem, alguns anos depois, redigiria a versão final da lei que revogou a desigualdade legal de gênero no Paraguai, consagrando a primeira grande conquista da ação coletiva dessas mulheres. Diz ela:

“A união conjugal de fato é um fenômeno social de longa data e de considerável extensão, a tal ponto que sob legislações que o regulamentaram, o perseguiram ou simplesmente o ignoraram, [o concubinato] segue vigente, o que demonstra que sua persistência obedece a razões socioeconômicas e culturais profundas que não se podem desconhecer.

(...)

[é] precisamente agora, quando os sociólogos nos sensibilizaram sobre as sérias consequências deste fenômeno [do concubinato] cuja frequência segue aumentando, que se exige canalizá-lo por vias legais, pois suprimi-lo parece utópico.

(...)

[Frente] ao tratamento obsoleto de um fato social que, conforme dito, deve ser tratado com critérios renovados e positivos, [isto] nos permite afirmar que a consideração legal das uniões conjugais de fato no Código Civil merece e exige uma completa revisão” (SANDOVAL, 1987, p.119-123).

Como se vê, então, via e ênfase jurídicas estão diretamente informadas pelas conclusões da ‘pesquisa social’. Trata-se, dizia o argumento, de ‘canalizar por vias legais’ um ‘fenômeno’ para cuja seriedade os ‘sociólogos’ lhes ‘sensibilizaram’. A pesquisa opera como a base argumentativa a partir da qual se enuncia uma reivindicação, a partir da qual se ‘exige uma completa revisão’ do Código Civil então promulgado. Ainda que ocupe posição de peso na formulação do argumento do Encontro Nacional, a participação em grupos e núcleos de investigação não pode, contudo, ser considerada isoladamente como fator preponderante que marca o perfil social dessas mulheres.

Ao lado deste traço característico, tomando-se em conjunto as organizadoras do evento e suas ‘panelistas’, veremos que outro ponto de suas ‘carreiras ampliadas’ é a experiência

internacional. Ligadas a diferentes grupos de pesquisa, Graziella Corvalán e Manuelita Escobar, por exemplo, assistiram à Conferência Mundial da Mulher realizada em Nairóbi no ano de 1985. Gloria Rubin, que organizava um encontro de discussão semanal chamado ‘Palavra de Mulher’ na rádio Ñanduti, fez um ano de sua graduação em psicologia no Rio de Janeiro e trazia de lá preocupações sobre o tipo de educação dada às mulheres. Já as autoras da ‘parte geral’ sobre a ‘condição legal da mulher’, Esther Prieto e Line Bareiro se especializaram, respectivamente, em Direitos Humanos na Suíça e em Ciência Política na Alemanha. Esses casos de circulação para além do Paraguai importam, primeiro, porque através da experiência internacional essas mulheres tiveram acesso ao debate então em pauta, tal como é possível notar em suas referências a feministas como S. de Beauvoir, J. Kirkwood e V. Vargas. No próximo subtópico veremos o papel dessas influências na gênese do espaço de mobilização propriamente feminista no Paraguai.

Em segundo lugar, a exemplo de Nairóbi e das formas de especialização na formação universitária, essa circulação dava acesso não só ao estado da arte da discussão feminista, mas, ao mesmo tempo, aos instrumentos de direito internacional então vigentes e disponíveis para a defesa dos direitos das mulheres. Neste sentido, basta ver que um dos argumentos mais utilizados no Encontro Nacional fazia lembrar que a desigualdade formal de gênero era contraditória com a Constituição paraguaia e também com a ‘Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women’. Cabe notar que essa Convenção havia sido ratificada em 1986 pelo representante do regime stronista nas Nações Unidas, e que suas implicações vinculantes eram simplesmente desconhecidas97. De forma bastante interessante, tal ratificação operou como uma brecha oportuna, servindo de incentivo às mulheres: “tendo em conta a incongruência entre o novo Código Civil e dita Convenção (...), decidimos convocar um evento que reunisse uma presença significativa dos setores femininos” (ENM, 1987, p.7-8).

Repetido no argumento das mulheres aí reunidas98, esse instrumento internacional não tinha um papel anódino de ‘apêndice’, ele fornecia um modelo utópico para suas participantes.

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Uma pérola nos discursos parlamentares em torno da ratificação da “Convenção” pode ser vista na fala de um Senador do Partido Liberal: “Senhor Presidente, penso que ninguém vai se opor à aprovação desta Convenção, mas convém deixar claro que estes princípios [igualitários] no Paraguai, já foram postos em prática há algum tempo, tanto as leis civis como constitucionais equivalem ao homem e à mulher em pé de igualdade, de modo que seguramente esta Convenção foi feita para os países da Ásia ou da África.” (Honorable Cámara de Senadores, 23 de outubro de 1986, pág. 18). Aqui, importa menos sublinhar a baixeza de tom racista dessa fala, e mais o completo desconhecimento da arquitetura legal do Paraguai por parte daquele que o enuncia, e, ainda, o fato de que tal ratificação “sem reservas” se deu de forma irracional (sem relação a fins determinados) e sem situar o texto internacional no conjunto da legalidade stronista que, em pouco tempo, viria a colocar “em prática” a desigualdade jurídica de gênero.

98 À introdução: “Aparecem em seu texto [do Código Civil] conceitos e instituições que não respondem aos espaços conquistados pela mulher tanto no âmbito nacional como no internacional”; e à conclusão: “Para alcançar a igualdade plena do homem e da mulher na sociedade, se considera que: (...) [3.] se deve formular uma proposta de banimento

“[Como] precisávamos de uma medida ou modelo de igualdade”, dizem Line Bareiro e Esther Prieto, “construímos nossa utopia a partir da Convenção”, e mais adiante prosseguem, “no nosso estudo, tomamos a Convenção como ponto de referência, como nossa utopia” (1987, p.64; 72). A CEDAW, sigla da convenção em inglês, lhes fornecia um pilar utópico, mas também conceitual: “Nossos conceitos básicos [são] 1. Igualdade (....) 2. Discriminação:

"Discriminação contra a mulher denota toda distinção, exclusão ou restrição baseada no que tenha por objeto ou por resultado diminuir ou anular o reconhecimento, proveito ou exercício por parte da mulher, independentemente de seu estado civil, sobre a base da igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais nas esferas política, econômica, social, cultural e civil ou em qualquer outra esfera (Art. 1 da Convenção da ONU de 1979)” (BAREIRO & PRIETO, 1987, p.65) (Grifo meu).

Em seu capítulo, essas ‘panelistas’ se utilizam diretamente de um dos conceitos da Convenção para então analisá-la em seus meandros internos, em suas implicações nacionais e em suas relações com várias outras esferas do direito e da vida social99. Seu intuito é “fazer um apanhado geral de todas essas esferas do direito que tocam o texto internacional, objeto deste estudo” (BAREIRO & PRIETO, 1987, p.68). Uma condição necessária para alcançar tal intuito é o próprio domínio prático do texto internacional, ou seja, essas autoras estavam já amparadas por condições e recursos intelectuais através dos quais fazer aquele “apanhado geral”. Note-se que ambas, Line e Esther, estão no grupo das expositoras formadas em Direito, mas o saber jurídico por si só não as colocaria em contato com o texto internacional e, tampouco, com os recursos necessários para sua compreensão e sua aplicação como marco normativo. Evidência disso está no fato de que, à diferença dos demais capítulos redigidos por militantes com formação jurídica, apenas este texto aborda de modo sistemático a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a Mulher.

Assim, o recurso a esse instrumento internacional aparece como duplamente constrangido: ele responde tanto a uma brecha oportuna quanto à capacidade de uso dessas duas panelistas100. Ou, em outros termos, a defesa do texto internacional faz sentido frente à

das leis discriminatórias contra a mulher, especialmente as do Código Civil, que estão em contradição com a Constituição Nacional e com a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a Mulher, devendo se projetar leis igualitárias”(ENM, 1987, p.7;125)

99 “Analisada a Convenção em toda sua estrutura, [este texto] apresenta interessantes princípios abarcando aspectos relativos ao Direito Constitucional, os Direitos Civis e Políticos, o Direito Penal, o Direito Agrário e o Direito do Trabalho, se entendendo até as reivindicações de previdência social e educação, de forma a estabelecer princípios relativos à eliminação de papeis rígidos que a sociedade concede à mulher no âmbito familiar, dando a eles o nome de “funções estereotipadas entre homens e mulheres” (BAREIRO, PRIETO, 1987, p.68).

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Em um de seus memoriais redigidos para disputar uma vaga como integrante do Comitê da CEDAW na ONU, Line Bareiro sugere esse nexo entre experiência internacional e o domínio daquele instrumento internacional: “Chachi [Esther Prieto] había vuelto hacía poco tiempo de Ginebra, donde había trabajado varios años en el Consejo Mundial de Iglesias. Esta institución fue muy importante para la gente que luchaba por la democracia y por los derechos