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2. LUTAS POR RECONHECIMENTO E FORMAS DE RESISTÊNCIA

2.1 O Reconhecimento como base para a autorrealização

2.1.1. Axel Honneth e os padrões intersubjetivos de reconhecimento

Em uma perspectiva semelhante a de Charles Taylor, está a proposição de Axel Honneth, feita, principalmente, na obra Luta por reconhecimento (2003). Assim como o supramencionado autor canadense, Honneth defende a centralidade das relações sociais e a relevância das interações entre sujeitos para se pensar a construção da identidade, dos selves e da própria sociedade.

Integrante da tradição de Teoria Crítica, o autor alemão privilegia o conflito em sua abordagem sobre o reconhecimento, advogando que ele é intrínseco à formação dos sujeitos e

pode emergir de situações de desrespeito social. A centralidade que Honneth dá para as lutas sociais é, contudo, diferente daquela postulada por autores da filosofia social moderna, como Maquiavel e Hobbes, para quem as lutas eram voltadas para a autoconservação ou para a garantia de poder. Para Honneth, o campo da ação social é, primariamente, composto por lutas morais, que podem impulsionar desenvolvimento sociais (HONNETH, 2003, p. 18).

Para desenvolver sua teoria, Honneth se baseia, a princípio, nos escritos de Hegel14 e em sua concepção de reconhecimento. Como apontam Nascimento e Barreiros (2018), a filosofia hegeliana, buscando romper com interpretações voltadas para a autoconservação, recorre ao conceito de “eticidade”, que foca nos vínculos sociais estabelecidos entre sujeitos, bem como nas práticas intersubjetivas a partir das quais os indivíduos são constituídos. De acordo com Honneth (2003), a visão de Hegel é a de que

toda teoria filosófica da sociedade tem de partir primeiramente dos vínculos éticos, em cujo quadro os sujeitos se movem juntos desde o princípio, em vez de partir dos atos de sujeitos isolados; portanto, diferentemente do que se passa nas doutrinas sociais atomísticas, deve ser aceito como uma espécie de base natural da socialização humana um estado que desde o início se caracteriza pela existência de formas elementares de convívio intersubjetivo.(HONNETH, 2003, p. 43)

Nessa concepção, a ideia principal é a de que os indivíduos constroem imagens de si a partir do contato com o outro, já que “o homem é necessariamente reconhecido e é necessariamente reconhecente” (HEGEL, 1969, p.206 apud HONNETH, 2003, p. 86). E nesse contexto, o conflito é parte estruturante da vida social, na medida em que, durante a relação com o outro, o sujeito pode ter o reconhecimento negado, ou ser ignorado por seu parceiro de interação.

Partindo dos fundamentos hegelianos, Axel Honneth (2003) propõe uma teoria social normativa que contemple a Psicologia Social. Para o autor, Hegel propôs um “modelo inacabado de luta por reconhecimento” (2003, p. 114), que não contemplou questões como a definição de um conceito intersubjetivo de identidade humana, tampouco distinguiu os meios e diferenças entre relações de reconhecimento. Para completar essas lacunas teóricas, Honneth

14 De acordo com Mattos (2016), em Luta por reconhecimento, Honneth se baseia, principalmente, nos trabalhos

da juventude de Hegel. Na obra, o teórico alemão defende que só os escritos do “jovem Hegel” forneceriam a base para refletir sobre a eticidade nas sociedades. Posteriormente, Honneth reformula sua tese e passa a abordar, na obra Direito da Liberdade (2005) os outros trabalhos de Hegel. Para mais informações, cf. MATTOS, Patrícia. O reconhecimento na esfera do amor: Para uma discussão sobre os paradoxos da transformação da intimidade. Síntese (Belo Horizonte), v. 43, n. 137, p. 421-442, 2016.

defende uma atualização sistemática da teoria, à luz de “uma psicologia social empiricamente sustentada” (HONNETH, 2003, p. 121).

E é em George H. Mead que Honneth vai encontrar terreno para sedimentar sua atualização teórica. De acordo com Mead (1962), um sujeito só adquire consciência de si quando aprende a perceber suas atitudes pela perspectiva de uma segunda pessoa. Ou seja, a partir da interação com o outro, os indivíduos passam a entender suas próprias ações intersubjetivas. Essa noção está relacionada ao que o autor chama de “outro generalizado”: para Mead (1962), no processo de socialização, as pessoas interiorizam normas de ação e expectativas de comportamento dos seus parceiros de interação. Com isso, o indivíduo aprende a se reconhecer como um membro dentro de um contexto de ação, bem como enxerga as obrigações a serem cumpridas e os direitos que lhe pertencem (HONNETH, 2003). Esse processo, segundo Mendonça (2009), pode se dar em três tipos de relação: nas primárias, nas jurídicas e na esfera do trabalho.

A partir do resgate de Hegel e Mead, Axel Honneth estrutura sua teoria do reconhecimento. O ponto de partida para entender sua proposta, segundo o autor alemão, é justamente na premissa compartilhada entre os três estudiosos: a centralidade do reconhecimento recíproco, tendo em vista que “os sujeitos só podem chegar a uma autorrelação prática quando aprendem a se conceber, da perspectiva normativa de seus parceiros de interação, como seus destinatários sociais” (HONNETH, 2003, p. 155). Com base nessa ideia, Honneth desenvolve sua abordagem, segundo a qual as lutas por reconhecimento estão fundamentalmente ligadas à promoção da justiça, sendo “lutas moralmente motivadas de grupos sociais, sua tentativa coletiva de estabelecer institucional e culturalmente formas ampliadas de reconhecimento recíproco, aquilo por meio do qual vem a se realizar a transformação normativa” (2003, p. 156). O autor aprimora as categorias postuladas por Hegel e Mead e define três domínios do reconhecimento, quais sejam: o amor, o direito e a solidariedade. Essas três esferas são padrões intersubjetivos que estruturam as relações de reconhecimento, sendo imprescindíveis para que o sujeito construa uma autorrelação positiva consigo mesmo, o que é fundamental para a construção de identidade.

O domínio do Amor compreende as ligações afetivas que as pessoas desenvolvem a partir de suas relações primárias, tanto entre parceiros e/ou parceiras, quanto laços de amizade e vínculos familiares. Na perspectiva hegeliana, trata-se da primeira relação de reconhecimento recíproco, uma das bases para o desenvolvimento da identidade. Segundo Honneth, a esfera do

amor abarca as relações afetivas em que há uma tensão entre fusão e autonomia, entre simbiose e autoafirmação (HONNETH, 2003, p. 163). Para explicar essa questão, o filósofo retoma os escritos da psicanálise de Donald Winnicott, que investiga o processo de socialização de crianças. Com base nos estudos do autor, Honneth analisa as interações entre mãe e filho na primeira infância, que se caracterizam por uma relação que vai desde uma dependência absoluta entre os dois, até um processo de emancipação, em que ambos se entendem ainda como dependentes um do outro, porém como sujeitos autônomos. Nas relações amorosas, portanto, há sempre essa dicotomia entre dependência e autonomia, em que o sujeito se enxerga como independente, porém demandante de relações afetivas. Trata-se, segundo Honneth, da ideia de “estar-consigo-mesmo no outro”:

Nesse aspecto, a forma de reconhecimento do amor, que Hegel havia descrito como um "ser-si-mesmo em um outro", não designa um estado intersubjetivo, mas um arco de tensões comunicativas que medeiam continuamente a experiência do poder-estar- só com a do estar-fundido; a "referencialidade do eu" e a simbiose representam aí os contrapesos mutuamente exigidos que, tomados em conjunto, possibilitam um recíproco estar-consigo-mesmo no outro (HONNETH, 2003, p.175)

Para o autor, esse tipo de relação é fundamental, sendo fonte de autoconfiança para os sujeitos. Com o amor, nesse sentido, as pessoas se veem como autônomas, mas, na interação e dedicação com o outro, elas desenvolvem relações emotivas recíprocas e mútuas, e isso é base para que alcancem a confiança em si mesmas.

Já o domínio do Direito está relacionado ao tratamento igualitário entre os sujeitos, pautando-se por princípios morais de universalidade construídos na modernidade (MENDONÇA, 2007). As relações nessa esfera são inscritas no sistema jurídico, que deve ser a expressão de interesses universalizáveis entre as pessoas, sem admitir hierarquias e privilégios (NASCIMENTO; BARREIROS, 2018). Honneth apresenta o caráter de historicidade dos direitos, ao mencionar as lutas travadas em torno da construção de direitos políticos, civis e sociais.

Com base nisso, o filósofo alemão expõe que, assim como postulado por Hegel e Mead, um indivíduo só se vê como portador de direitos na medida em que percebe suas obrigações em relação ao outro, bem como os direitos que as outras pessoas possuem (HONNETH, 2003). As relações de reconhecimento nesse domínio dependem que o sujeito se enxergue como alguém dotado de igualdade em relação aos outros membros da sociedade. É por meio da experiência

de reconhecimento jurídico que uma pessoa pode se enxergar como parte da coletividade, alguém que partilha com os outros os mesmos direitos e oportunidades de participação.

Com isso, Honneth defende que reconhecimento no âmbito do Direito é fonte de

autorrespeito; uma “resposta” positiva causada pelo reconhecimento jurídico. Ou seja, o

autorrespeito abarca a consciência de poder respeitar a si mesmo porque se partilha com os outros membros da sociedade a possibilidade de “conceber sua ação como uma manifestação da própria autonomia, respeitada por todos os outros, por meio do reconhecimento jurídico” (HONNETH, 2003, p. 194).

O terceiro domínio do reconhecimento, a Solidariedade/ Estima Social, está ligado à possibilidade de uma pessoa ser estimada por aquilo que a difere dos outros membros da sociedade. O indivíduo, contudo, não seria estimado num sentido de tolerância ou valorização de sua identidade particular, mas a estima se daria com base no entendimento de que as realizações desse sujeito são importantes para a construção de uma vida comum e trazem contribuições para o coletivo. Segundo Honneth, para além da dedicação afetiva (advinda da esfera do Amor) e do reconhecimento jurídico (relacionado ao domínio do Direito), os sujeitos necessitam de uma estima social que os permita “referir-se positivamente a suas propriedades e capacidades concretas” (HONNETH, 2003, p. 198).

Honneth explica que, assim como a relação jurídica está vinculada ao desenvolvimento de valores na modernidade, a estima social se insere nesse contexto. Para o autor, houve uma mudança histórica, em que a ideia de honra deu lugar a conceitos como os de reputação e prestígio social. Ou seja, se nas sociedades estamentais a honra dos sujeitos era determinada por sua pertença a determinado grupo, com a modernidade as relações de estima social ficaram sujeitas a lutas permanentes, em que grupos buscam a valorização de suas capacidades e características próprias (HONNETH, 2003).

É importante deixar claro, como já mencionado, que não se trata da valorização apriorística de uma identidade, ou a defesa de que todas as pessoas devem ser igualmente estimadas, mas, sim, que “ninguém deve ser desrespeitado com base em sua identidade” (MENDONÇA, 2011). A concepção, portanto, perpassa o entendimento da estima em termos de realização, e não como a valorização de atributos específicos. Isso significa dizer que, no momento em que uma pessoa desenvolve ações que são reconhecidas socialmente, isso pode ser fonte de apreciação dentro da comunidade. Em decorrência disso, o indivíduo se vê como parte de um grupo que possui realizações comuns e se sente estimado por outros membros dessa

coletividade (HONNETH, 2003). Essas formas de relação solidária, como nomeia Honneth, geram a simetria da estima que, segundo o autor, significam que “todo sujeito recebe a chance, sem graduações coletivas, de experienciar a si mesmo, em suas próprias realizações e capacidades, como valioso para a sociedade” (HONNETH, 2003, p. 211). Com base nesses apontamentos, o autor defende que o domínio da Solidariedade/Estima, portanto, é responsável pelo desenvolvimento da autoestima.

Outro ponto importante e caro à discussão deste trabalho reside no fato de que a questão da Solidariedade e da estima simétrica pode ser aplicada, também, para se pensar nas relações de grupo que se originam em contextos como o de resistência a repressão política ou contextos de guerra. Segundo o autor, as pessoas podem desenvolver uma estima mútua ao compartilhar experiências de privação, já que elas passam a valorizar o outro por capacidades e realizações que antes não possuíam importância social (HONNETH, 2003).

De modo a clarificar ainda mais suas proposições, Axel Honneth estabelece, também, uma diferenciação entre o reconhecimento jurídico e a estima social. Segundo o autor, ambas esferas estão relacionadas ao modo como as pessoas são respeitadas socialmente. Contudo, no domínio do Direito, o foco está na propriedade universal que faz do sujeito uma pessoa, e no caso da Solidariedade/ Estima, o que está em jogo são as contribuições e atribuições particulares que diferenciam esse indivíduo dos outros.

É importante evidenciar que a discussão sobre os padrões intersubjetivos de reconhecimento está atrelada não só a experiências positivas nesses três domínios, mas a situações de desrespeito que podem perpassar as vivências dos sujeitos e afetar o modo como eles constroem suas identidades.