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2. LUTAS POR RECONHECIMENTO E FORMAS DE RESISTÊNCIA

2.3. Reconhecimento, migração e resistência

2.3.1 Migração e Reconhecimento

Conforme anteriormente mencionado, entendemos que as teorias do reconhecimento - tanto a perspectiva honnethiana quanto aquelas balizadas por Fraser, Taylor e outros estudiosos - fornecem aportes importantes para a compreensão de fenômenos como a migração, principalmente por permitirem reflexões sobre as vivências e a atuação de mulheres migrantes frente a diferentes experiências no país receptor. Nesse sentido, a discussão sobre reconhecimento e migração tem sido mobilizada academicamente para se pensar diversas questões, dentre elas o acesso e garantia de direitos à população migrante e refugiada, a integração à sociedade de acolhida e a relação entre refugiados e autoridades (TURTIAINEN, 2012; 2018), as políticas públicas voltadas para esses públicos (SCHUMACHER; SALUM, 2017; LEÃO, 2017), bem como as experiências e a agência política de migrantes (MARINUCCI, 2016).

As teorias do reconhecimento são frutíferas para se debater questões como a autorrealização e a formação de identidades de migrantes, dentro de um contexto transnacional. Nesse sentido, Kati Turtiainen (2018) defende que as fronteiras dos Estados Nacionais, bem como políticas de contenção aos fluxos migratórios representam um impedimento à possibilidade de autorrealização da população migrante. Na avaliação da autora, que se baseia nas contribuições teóricas de Honneth (2003), o desrespeito viola as relações positivas que são construídas por essas pessoas, afetando o modo como desenvolvem suas identidades. Mobilizar o reconhecimento em contextos migratórios, portanto, é importante para compreender como a garantia de direitos, a preocupação com o bem-estar de quem migra e a possibilidade de estima social são relevantes para se olhar para pessoas migrantes enxergando-as como sujeitos, e não como números ou instrumentos para políticas de contenção de fluxos.

Turtiainen (2018) se debruça sobre experiências de migração forçada na Europa, expondo que refugiados, requerentes de asilo e migrantes indocumentados vivenciam experiências de desrespeito nos países de origem, durante o deslocamento e, posteriormente, nos locais de destino. A perspectiva do reconhecimento seria relevante, por permitir que nos debrucemos sobre essas questões, que afetam diretamente as pessoas que migram. Segundo Turtiainen (2018),

a teoria do reconhecimento de Honneth é útil porque “ele rejeita a concepção liberal de sujeitos humanos como independente e autodeterminante” (Rossiter, 2014) e sugere que as relações recíprocas de cuidado, respeito e estima social tornam as pessoas suscetíveis ao reconhecimento mútuo. Essa noção é vital nas sociedades em que os seres humanos são considerados consumidores e subordinados aos lucros. Nessas circunstâncias, os solicitantes de asilo e os migrantes indocumentados são “indesejáveis” e considerados indignos de proteção (social) e, como resultado, são expulsos da ordem dos Estados-nação. (TURTIAINEN, 2018, p. 187-188)

Nesse sentido, as dimensões do reconhecimento elencadas por Honneth (2003) podem ser aplicadas para observar a situação de refugiados e migrantes ao redor do mundo. No âmbito do direito, como já exposto, a posse e acesso a direitos permite que os sujeitos desenvolvam o autorrespeito (Honneth, 2003). Quando essas garantias não estão presentes por situações como as de migrantes indocumentados, por exemplo, há um quadro de maior vulnerabilidade frente a instituições e às próprias demandas desses indivíduos (TURTIAINEN, 2018). No âmbito do amor, a relação com a questão migratória está vinculada, entre outras formas, ao reconhecimento da importância dos relacionamentos interpessoais dos migrantes, incluindo questões como a reunião familiar18, os laços de amizade e vínculos familiares desses indivíduos, bem como a necessidade de que atores políticos e estatais tenham a atitude de escutar as histórias e situações de vida dessas pessoas.

Numa perspectiva semelhante, Schumacher e Salum (2017) destacam a importância dessas relações sociais construídas pelos migrantes, além da centralidade do reconhecimento para a garantia de autonomia plena dessas pessoas. Os autores salientam a relevância de relações de afeto, amizade, estima social e reconhecimento de direitos entre esses indivíduos, pontuando a necessidade de que políticas voltadas para migrantes considerem, também,

18 Reunião familiar ou reunificação familiar é uma modalidade de permanência que busca garantir a migração de

integrantes de uma mesma família, buscando a unidade de seus membros. No Brasil, um imigrante registrado como permanente pode requerer a vinda de dependente legal, conforme previsto na Resolução Normativa nº 108/14, do Conselho Nacional de Imigração.

“aspectos da integração que ultrapassam categorias formalmente jurídicas” (SCHUMACHER; SALUM, 2017, p. 20).

Na avaliação de Turtiainen (2018), o reconhecimento das demandas dos migrantes é constantemente tratado de modo instrumental, direcionado por objetivos econômicos, sem considerar esses sujeitos como pessoas que merecem proteção e uma boa vida. No âmbito da estima social, que diz respeito à importância de as pessoas serem reconhecidas em suas particularidades, características pessoais e contribuições à comunidade, a relação entre migração e reconhecimento também é presente. No caso de refugiados, por exemplo, muitos são perseguidos e forçados a deixar seus países justamente por fatores como orientação sexual, etnia ou religiosidade. Portanto, “recuperar esses direitos pode ser vital para a autoestima da pessoa. Assim, o racismo e as atitudes e atos xenófobos mostram um sério desrespeito no sentido de não reconhecimento” (TURTIAINEN, 2018, p. 194).

A discussão sobre o último aspecto, o da estima social, é mobilizada para se pensar, também, este âmbito em sua relação com o domínio dos direitos, principalmente no tangente ao reconhecimento legal e à questão da integração dos migrantes (LEÃO, 2017). A estigmatização e marginalização de indivíduos ou grupos – ou seja, formas de desrespeito que se vinculam à estima – podem impedir que essas pessoas sejam reconhecidas como sujeitos e, consequentemente, impossibilitar que elas tenham acesso a direitos e ao reconhecimento legal, afetando o modo como se inserem na sociedade. Numa análise sobre as políticas de integração dessa população, Augusto Leão (2017) defende que as lutas por reconhecimento legal de imigrantes contribuem para a análise dos problemas decorrentes dessas próprias políticas, permitindo examinar diversas demandas e injustiças sofridas pelos sujeitos com base num mesmo quadro conceitual. Na análise do autor,

O que será observado como injustiça pelos grupos de imigrantes dependerá da situação de cada grupo e de sua posição em relação à sociedade de acolhida, porém, a teoria do reconhecimento nos permite argumentar que, em todos os casos, a percepção dessa injustiça provocará um impacto no processo de integração dos imigrantes. (LEÃO, 2017, p. 136)

Segundo Leão (2017), ainda que a situação econômica ou social seja diferente entre migrantes, isso não significa que eles não possam perceber como injustiça algumas situações de desrespeito ou privação de direitos que sofrem em relação aos nacionais. O autor cita como exemplo a falta de direitos políticos que acomete imigrantes e refugiados no Brasil. De acordo

com a atual Lei de Migração (Lei Nº 13.445/17), nos artigos VI e VII são garantidos aos migrantes o direito de reunião para fins pacíficos e o direito de associação, inclusive sindical, para fins lícitos. O direito ao voto, entretanto, ainda não é garantido. Para Leão (2017), a falta de reconhecimento legal sobre os direitos políticos pode promover, de certo modo, uma separação entre imigrantes e a sociedade de acolhida, tendo em vista que, já que os imigrantes são limitados em suas atividades políticas, suas demandas precisam ser constantemente levantadas por organizações brasileiras, para que as necessidades sejam ouvidas e atendidas. Segundo Leão (2017), há uma constante (re)negociação de ações e posicionamentos entre movimentos sociais, associações de migrantes e grupos e organizações que contam com brasileiros.

Apesar disso, a mobilização entre migrantes e a luta por garantia de direitos existe, sendo as teorias do reconhecimento frutíferas para se pensar essas questões - principalmente por tematizar a possibilidade de luta social a partir de experiências de desrespeito (HONNETH, 2003). Ou seja, se situações de desrespeito e injustiça podem motivar a resistência e ser base para lutas sociais, como postula Honneth (2003), entendemos que é central abordar essas formas de resistir, destacando as experiências de mulheres migrantes na sociedade de acolhida.

Nesse sentido, Roberto Marinucci (2016) aponta para a existência de uma “primavera” de mobilização de migrantes e refugiados ao redor do mundo, calcada em ações de protesto e reivindicação que buscam, entre outras pautas, a visibilidade e o reconhecimento. Segundo o autor, ao nos debruçarmos sobre as demandas de migrantes, podemos perceber que as lutas por reconhecimento desses atores visam, antes de tudo, “reivindicar o direito de serem reconhecidos como ‘sujeitos de direitos’ nos países de origem, trânsito e chegada” (MARINUCCI, 2016, p. 7).

De acordo com o autor, essas lutas questionam abordagens economicistas, assistencialistas e invisíveis à agência dos migrantes, perspectivas que desconsideram os direitos dessas pessoas e os benefícios da integração intercultural nas sociedades receptoras (idem, 2016). Esse ponto é de suma importância para nossa pesquisa, tendo em vista que um de nossos objetivos é, justamente, investigar as formas de resistência de mulheres migrantes no Brasil, atentando para a percepção que elas têm de situações de desrespeito no país, bem como para as estratégias adotadas para lidar contra esses quadros.