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1. DESAFIANDO FRONTEIRAS: DESLOCAR, MOVER, MIGRAR

1.4. Migrações: agendas de estudo

1.4.1. Migrações Sul-Sul e os deslocamentos na América Latina e Caribe

Neste estudo, nosso foco de investigação está nas situações vivenciadas por mulheres migrantes que vivem no Brasil, vindas de outros países da América Latina e Caribe. Com a proposta de entender um pouco sobre a mobilidade na região e os principais fluxos nesses locais, faz-se importante discorrer sobre algumas características desses movimentos na atualidade.

A América do Norte é o destino da maior parte das pessoas que emigra da América Latina e Caribe, tendo registrado, em 2019, cerca de 26 milhões de migrantes latino-americanos e caribenhos em seus territórios (IOM, 2019). A Europa aparece como o segundo continente que mais abriga essa população, com 5 milhões de pessoas, valor que quadruplicou desde a década de 1990. Em relação aos imigrantes de outras localidades e que vivem em países da América Latina e Caribe, o número se mantém estável, com cerca de 3 milhões de pessoas de outros países vivendo na região nos últimos 30 anos (IOM, 2019).

O México é, em comparação aos outros países latino-americanos, o local de origem da maioria da população que se desloca para o norte, sendo os Estados Unidos o principal destino (IOM, 2019). Entretanto, com restrições cada vez mais fortes para a entrada nos EUA, o México tem, também, recebido muitos imigrantes nos últimos anos, oriundos, principalmente, de países próximos, como Nicarágua, Honduras, Guatemala e El Salvador. Foi desses países que saiu a maior parte das pessoas que, no final de 2018, se uniram nas chamadas Caravanas Migrantes rumo à América do Norte. Em grupo e num trajeto feito quase todo a pé, milhares de pessoas cruzaram as fronteiras na tentativa de buscar melhores condições de vida em outros territórios (COLEF, 2018).

Fatos como a formação das Caravanas Migrantes refletem como o fenômeno migratório é dinâmico e complexo. Apesar de os deslocamentos nessa região sempre existirem, eles estão se diversificando, tanto pela formação de grupos para o deslocamento e o aumento dos fluxos irregulares, quanto pela presença de mais mulheres e crianças. Segundo o World Migration

Report, da Organização Internacional para as Migrações (2018),

O número de crianças desacompanhadas que migram da América Central também aumentou substancialmente, com um aumento de 1.200% em crianças menores

desacompanhadas, detidas na fronteira dos Estados Unidos com o México entre os anos fiscais de 2011 e 2014 (OIM, 2018, p. 80).

.

A condição de violência de muitos países na América Central contribuiu para que os fluxos emigratórios desses locais se tornassem mais intensos. Nos últimos anos, o número de pedidos de asilo apresentados ao México subiu 155%, passando de 3.400 solicitações em 2015 para cerca de 8.800 em 2016 (IOM, 2018). A situação de vulnerabilidade em muitos trajetos se torna ainda maior devido a atuação dos coiotes e das redes de contrabando que atuam nas regiões de fronteira. Segundo a Organização Internacional para Migrações (2018), esses agentes formam uma indústria lucrativa de contrabando e transporte irregular, expondo os migrantes a práticas como subornos, sequestros e extorsão.

Catherine Wenden (2016) aponta que, atualmente, migrantes que estão em situação irregular formam uma categoria mundial. Consistem em pessoas que entraram num país desprovidas da documentação requerida por aquele Estado, ou que prolongaram a permanência no local sem a devida autorização do governo. Para a autora, a mobilização cada vez maior dessas pessoas nos países de acolhida tem feito com que emergissem discussões para que o direito à mobilidade desponte como um direito humano no século XXI, incluindo reflexões sobre a governança mundial das migrações. Wenden (2016) defende que, nesse aspecto, seja adotada uma gestão multilateral que associe ambos os países de origem e destino, bem como organizações internacionais e não governamentais, grupos de migrantes, sindicatos e outros atores da sociedade civil. Isso permitirá, na visão da autora, que a migração “seja benéfica para os países de acolhida, de partida e para os próprios migrantes, tornando-se um bem público mundial” (WENDEN, 2016, p. 22).

A discussão sobre as migrações na América Latina e Caribe se situa, também, no cerne de agendas mais amplas de pesquisa sobre os estudos de mobilidade. Um dos debates contemporâneos e de grande relevância para nossa pesquisa é a questão das migrações Sul-Sul, ou seja, os movimentos populacionais entre países do chamado Sul Global. No século XXI, o cenário internacional tem sido marcado por deslocamentos mais intensos entre esses locais, um resultado tanto de restrições mais fortes impostas por países do Norte, quanto por novas configurações e relações entre os países do Sul (BAENINGER, 2018). Com isso, foram modificadas as composições e as direções das correntes migratórias internacionais.

Os fluxos cada vez mais intensos para países da América Latina são uma das características e das questões que se colocam na análise das migrações internacionais. O Brasil,

que a partir da década de 1960 se tornou um local de emigração, com a saída de milhares de pessoas para países do Norte – principalmente os Estados Unidos – nos últimos anos entrou na rota migratória de outros países, como Haiti, Bolívia, Colômbia e Venezuela. Para Rosana Baeninger (2018),

De fato, as migrações Sul-Sul se consolidam no bojo de processo mais amplo das migrações transnacionais, da divisão internacional do trabalho, da mobilidade do capital. Refletem e (re)configuram condicionantes que ocorrem fora das fronteiras nacionais, com impactos na conformação da imigração no âmbito de cada país. (BAENINGER, 2018, p. 13)

As migrações intrarregionais ocupam lugar destaque nos estudos sobre a perspectiva Sul-Sul. Muito embora os deslocamentos populacionais na região não sejam um fenômeno novo, segundo Patarra (2002), formas mais dinâmicas de migração intrarregional têm sido observadas mais recentemente, principalmente em decorrência dos processos de integração econômica entre os países e maior comunicação entre as localidades. Aspectos políticos e sociais, além de situações conflituosas em alguns locais - como a atual situação da Venezuela - têm, também, contribuído para o aumento dos fluxos e para a situação de deslocamentos forçados para regiões transfronteiriças. O ACNUR, Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, estima que 3,4 milhões de venezuelanos já deixaram o território e, desses, 2,7 milhões vivem em outros países da América Latina e Caribe (ACNUR, 2019).

Na visão de Wenden (2016), as migrações se globalizaram nos últimos 30 anos e uma das marcas desse processo é, justamente, a regionalização dos fluxos. Para a autora, em escala mundial, os movimentos se organizam em sistemas complexos de migração em torno de uma mesma região, onde são observadas complementaridades entre os locais de partida e chegada, redes transnacionais de migrantes e vínculos históricos e culturais entre países próximos (WENDEN, 2016). De acordo com a estudiosa, América do Sul, Brasil, Chile e Argentina, localidades que, historicamente, recebem muitos imigrantes, acolhem, sobretudo, pessoas de países vizinhos, como andinos e caribenhos (haitianos, bolivianos, colombianos, dominicanos e peruanos, entre outros).

Outra característica marcante dos fluxos entre os países da América Latina é justamente o seu caráter poroso. As mobilidades regionais são, muitas vezes, temporárias, ou seja, o país em que o sujeito se encontra nem sempre é o seu destino final. Como destacam Patarra e Baeninger (2006), novas modalidades de movimentos migratórios podem ser observadas. Estas envolvem não apenas a mudança de residência, mas mobilidades temporárias ou circulares,

associadas a atividades agrícolas ou a ciclos econômicos, além de deslocamentos transfronteiriços13, fluxos de retorno e a maior participação das mulheres nesses processos.

Essas características impõem desafios aos Estados e tensões às análises clássicas sobre migrações, que focam nos motivos para o deslocamento, nas razões para permanência e nos fatores de atração ou repulsão entre dois locais. Com novas modalidades nos movimentos, faz- se importante adotar análises e olhares que foquem não só na quantidade de pessoas que migra, nos aspectos econômicos envolvidos, ou nos estoques e intensidade dos fluxos, mas, sim, nas experiências dos sujeitos e suas relações com o espaço. Nesse sentido, Alejandro Canales (2006) sustenta que todas essas configurações refletem numa maior diversidade e complexidade dos padrões migratórios, o que gera a necessidade de “reconstruir abordagens e perspectivas de análise e compreensão desse fenômeno social” (CANALES, 2006, p. 11).

Dentre essas abordagens, destacam-se as discussões de gênero, centrais para esta pesquisa. A seguir, é feita uma introdução ao tema, a fim de compreender como essa questão vem sendo abordada, historicamente, nos estudos migratórios, bem como discutir como os estudos de gênero e os feminismos podem ser propícios para lançarmos luzes sobre pontos relevantes relacionados à mobilidade migratória. A proposta é enxergar os limites e possibilidades dessa discussão no âmbito acadêmico e defender a necessidade de que o gênero seja uma agenda cada vez mais central nas pesquisas da área, tendo em vista a participação de mulheres nos fluxos e a maior diversidade no perfil e nas modalidades de deslocamento.