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2. LUTAS POR RECONHECIMENTO E FORMAS DE RESISTÊNCIA

2.2. Debates e críticas

2.2.1. Nancy Fraser e a paridade de participação

Nancy Fraser é uma das autoras que diverge das proposições feitas por Taylor e Honneth. Em 1995, a estudiosa estadunidense entrou na discussão, defendendo a importância de se pensar, para além do reconhecimento, a dimensão da redistribuição, que também estrutura processos políticos e sociais. As críticas à perspectiva de Honneth e a resposta do filósofo às colocações de Fraser resultaram na publicação de um livro pelos autores, em que são expostos os debates entre eles e a importante discussão sobre controvérsia político-filosófica acerca dos fundamentos da justiça. Em momento posterior, Fraser (2009) revisa sua teorização e passa a defender, para além do reconhecimento e da redistribuição, a ideia de representação para se pensar injustiças, processos sociais e demandas por justiça. As postulações da autora, o debate entre ela e Honneth e as considerações de Fraser serão expostos a seguir.

A principal crítica postulada por Fraser é a de que Taylor e Honneth não trabalharam a dimensão econômica da busca por justiça, focando suas análises na questão da identidade. Para a autora, é central se pensar na economia como um campo importante a ser discutido, na medida em que a desigualdade material está presente na maioria dos países do mundo, e a busca por melhor distribuição de recursos deve ser considerada ao se pensar numa teoria da justiça (FRASER, 1998). Em seus textos iniciais sobre o debate, Fraser (1995; 1998; 2007) defende que as demandas por justiça social são divididas em dois campos: o da redistribuição, que engloba a busca por melhor distribuição de riquezas, e o do reconhecimento, que luta pela valorização das distintas características e perspectivas das minorias (FRASER, 2007). Para a teórica feminista, reduzir a justiça ao último fator é limitar a abordagem e reduzi-la a um aspecto cultural. É por isso que, para Fraser, a justiça

requer tanto redistribuição quanto reconhecimento; nenhum deles, sozinho, é suficiente. A partir do momento em que se adota essa tese, entretanto, a questão de como combiná-los torna-se urgente. Sustento que os aspectos emancipatórios das duas problemáticas precisam ser integrados em um modelo abrangente e singular. A tarefa, em parte, é elaborar um conceito amplo de justiça que consiga acomodar tanto as reivindicações defensáveis de igualdade social quanto as reivindicações defensáveis de reconhecimento da diferença (FRASER, 2007, p. 103).

Se, para Fraser, a teoria da justiça deve englobar tanto redistribuição quanto reconhecimento, há injustiças relacionadas a esses campos, que devem ser tematizadas. Para a autora, no âmbito econômico da redistribuição, situam-se experiências como a exploração, a marginalização econômica e a privação. Essas formas de injustiça podem privar o indivíduo de ter acesso a um trabalho remunerado e a um padrão de vida material adequado (FRASER, 2006). Já a injustiça cultural ou simbólica, que se dá no âmbito do reconhecimento, está relacionada a padrões de interpretação e comunicação, compreendendo situações como a de dominação cultural, a invisibilidade e o desrespeito que, para a autora, significa ser “difamado ou desqualificado rotineiramente nas representações culturais públicas estereotipadas e/ou nas interações da vida cotidiana” (idem, 2006, p. 232).

Conforme esclarece Mendonça (2007), Fraser defende ainda que essas duas lutas possuem lógicas muito diferentes, embora surjam, constantemente, relacionadas. Para a autora, a redistribuição estaria focada em abolir aspectos de diferenciação dos grupos, enquanto o reconhecimento buscaria justamente dar ênfase nas especificidades desses coletivos. Isso geraria uma esquizofrenia filosófica (FRASER, 1997), em que as pessoas afetadas por injustiças nesses dois âmbitos teriam que, simultaneamente, negar e afirmar suas características (MENDONÇA, 2007).

Nesse sentido, Fraser aponta que alguns grupos sofrem injustiças nesses dois âmbitos, tanto econômicas quanto culturais. Segundo ela, as lutas contra opressões de gênero e raça, por exemplo, situam-se nesse caso. A autora discorre que no caso do gênero, especificamente, há uma face da economia política (que se vincula ao âmbito da redistribuição), bem como um aspecto cultural-valorativo (portanto, vinculado ao reconhecimento) presente em normas culturais androcêntricas e sexistas. Essas duas faces não estão totalmente separadas, mas se correlacionam e reforçam uma à outra, podendo conferir desvantagens econômicas às mulheres, além de impedir sua participação igualitária nas esferas públicas, no cotidiano e na formação da cultura. Para Fraser, portanto, o caráter bivalente do gênero faz com que as injustiças, nesse

campo, representem o dilema acima mencionado: necessitam soluções que envolvem tanto a redistribuição quanto o reconhecimento.

De modo a responder ao impasse entre redistribuição e reconhecimento, a autora ressalta possíveis perspectivas que são comumente mobilizadas para resolver esse dilema. Ela apresenta as soluções afirmativas que, focadas em corrigir efeitos desiguais de arranjos sociais, atuam na superfície do problema, e o que chama de remédios transformativos, que corrigem questões desiguais por meio de mudanças mais estruturais. Como remédio afirmativo para a injustiça cultural, por exemplo, Fraser (2006, p.237) expõe que o multiculturalismo geralmente é mobilizado, na tentativa de “compensar o desrespeito por meio da revalorização das identidades grupais injustamente desvalorizadas”. No âmbito transformativo, contudo, o interesse está na desconstrução de estruturas culturais-valorativas que criam essa injustiça, ou seja, os “remédios” transformativos atuariam para desestabilizar as diferenciações grupais existentes.

Para as injustiças econômicas, Fraser (2006) expõe que os remédios transformativos estão associados ao Estado de bem-estar liberal. Essas soluções buscam compensar a má distribuição, atuando, por exemplo, para aumentar a possibilidade de consumo de grupos desprivilegiados economicamente, mas sem promover a reestruturação do sistema de produção. Já as soluções transformativas, para a autora, estão associadas historicamente ao Socialismo, tendo em vista que buscariam compensar as injustiças econômicas por meio de mudanças na estrutura político-econômica existente. De acordo com a autora, “reestruturando as relações de produção, esses remédios não somente alterariam a distribuição terminal das partes de consumo; mudariam também a divisão social do trabalho e, assim, as condições de existência de todos.” (FRASER, 2006, 238).

Fraser (2006) pondera esses remédios adotados, expondo suas articulações e adequações. Questiona, desse modo, qual seria a combinação mais adequada de soluções para minimizar injustiças, principalmente quando estas estão relacionadas a coletividades que buscam, simultaneamente, redistribuição e reconhecimento. A saída defendida pela autora perpassa a deliberação, algumas reformas e soluções transformadoras. Em textos posteriores, Fraser (2007) diz ser necessário debater algumas questões filosóficas, como a relação entre ética e moralidade. De acordo com autora, há uma distinção entre o que é correto e o bem, entre a justiça e a autorrealização. Como explica Mendonça (2007), ela propõe uma guinada da ética (ligada a conceitos hegelianos e vinculada à ideia de bem viver) para a moral (calcada em conceitos kantianos e pautada pela noção de justiça; pelo que é correto e não pelo bom). Na

visão de Fraser, o reconhecimento deve ser visto como uma questão relacionada ao status social. Isso significa dizer que a problemática deve ser tratada não como uma questão de identidade - em que o não reconhecimento significaria uma depreciação da identidade do grupo – mas, sim, como algo relacionado à condição dos indivíduos como parceiros na interação social. Para Fraser (2007), a injustiça não é uma distorção da autorrealização (como defenderia Honneth e Taylor), mas uma negação do status de paridade. Ou seja, é necessário que os indivíduos sejam considerados como pares nas tomadas de decisão e na vida social. A paridade de participação seria o princípio central para se pensar a justiça.

Nesse modelo de status proposto por Fraser, o foco está nos padrões institucionalizados e na valoração dos atores sociais. Se esses padrões os constituem como parceiros, aí é possível observar um reconhecimento recíproco e igualdade de status. Em contrapartida, caso esses padrões representem uma exclusão ou invisibilidade dos indivíduos, então podemos observar o não reconhecimento e a subordinação de status (FRASER, 2007). Como exemplo desse modelo, Fraser cita leis que excluem uniões homoafetivas, políticas estatais que estigmatizam sujeitos e práticas excludentes ou que associam pessoas de determinada raça com a criminalidade.

A defesa da autora é contundente. Como apontam Nascimento e Barreiros (2018), Fraser argumenta que o foco na identidade é problemático, pois daria ênfase à dimensão psíquica do processo, enquanto o papel das instituições estaria em segundo plano. Fazendo referência à Honneth e numa crítica às propostas do filósofo, a autora postula que o “modelo identitário” tem algumas dificuldades, que poderiam ser sanadas com o modelo de status, quais sejam:

Em primeiro lugar, ao rejeitar a visão de reconhecimento como valorização da identidade de grupo, ele evita essencializar tais identidades. Em segundo lugar, ao focar nos efeitos das normas institucionalizadas sobre as capacidades para a interação, ele resiste à tentação de substituir a mudança social pela reengenharia da consciência. Em terceiro lugar, ao enfatizar a igualdade de status no sentido da paridade de participação, ele valoriza a interação entre os grupos, em oposição ao separatismo e ao enclausuramento. Em quarto lugar, o modelo de status evita reificar a cultura – sem negar a sua importância política (FRASER, 2007, p. 109).

Como já exposto, o não reconhecimento, nessa perspectiva, não significa apenas ser desmerecido na dimensão da autorrelação dos sujeitos. Ao contrário, diz respeito à negação da “condição de parceiro integral na interação social e ser impedido de participar como um par na vida social” (FRASER, 2007, p. 113), em decorrência de padrões institucionalizados que enxergam certos indivíduos como não merecedores de estima e respeito.