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BACHARÉIS E LICENCIADOS: ESPECIFICIDADES DOS CAMINHOS TRILHADOS PARA A OBTENÇÃO DE TRABALHO

ENTREVISTA BIOGRÁFICA

2. CAPÍTULO 1 QUALIFICAÇÃO E PROFISSIONALIZAÇÃO

2.3 BACHARÉIS E LICENCIADOS: ESPECIFICIDADES DOS CAMINHOS TRILHADOS PARA A OBTENÇÃO DE TRABALHO

Rugiu, apoiado em Dewey (1859-1952), filósofo norte- americano, expoente do pragmatismo, acreditava que o verdadeiro aprendizado acontecia por meio da realização de tarefas manuais e criativas associadas aos conteúdos a serem aprendidos, os quais propiciariam um desenvolvimento integrado (físico, emocional e intelectual). Diz o autor (1998, p. 19):

Antigamente, arte e ciência eram termos virtualmente equivalentes (...). As artes eram distinguidas em artes “mecânicas” e artes “liberais” (...). Os operários ocupavam-se exclusivamente de artes mecânicas e, portanto, encontravam-se embaixo na escala social. A escola na qual aprendiam suas técnicas era aquela da prática: isto é, consistia em um tirocínio para aqueles que possuíam já uma habilidade e

conheciam os segredos do ofício. Os aprendizes, em sua essência, aprendiam fazendo.

Aqui há uma cisão entre diferentes habilitações profissionais, em um período histórico quando a educação pretendia moldar a formação de acordo com suas categorias correspondentes, ou seja, um desenvolvimento dito “mental comportamental”. O ensino de disciplinas clássicas (línguas, matemática, geometria, filosofia e religião) estava destinado às ‘cabeças pensantes’, isto é, aos intelectuais. Já o ensino prático, denominado tirocínio, por meio de conteúdos que buscavam desenvolver habilidades práticas era desvalorizado e mais do que isso, hierarquizado, uma vez que ocupavam um mesmo espaço de aprendizagem, aprendizes e auxiliares coordenados pelo mestre artesão (RUGIU, 1998).

É interessante notar que a seleção, ou melhor, a formação de grupos de aprendizes não estava pautada em idade, sexo ou qualquer outro critério manifesto na Modernidade. Até o século XIV, crianças e jovens estavam submetidos a uma mesma rotina de aprendizado que durava entre quatro e oito anos. A experiência do aprendizado, o processo didático pedagógico, por assim dizer, estava calcado na prática da escuta e da observação. Por isso, os novatos eram incentivados a acompanharem o trabalho dos experientes, que estavam há mais tempo na Corporação, para captar, além do manifesto, os segredos do aprender fazendo, marca distintiva desse período histórico.

Como sugere Rugiu (op.cit., p. 39-40),

[...] a um certo grau do tirocínio, o aprendiz poderia ser introduzido em alguns graus dos segredos do ofício e, por isso, era posto em companhia de outros trabalhadores mais velhos e não do mestre em pessoa, para evitar que pudesse extorquir-lhe outros segredos que, ao contrário, deveriam absolutamente permanecer como tais. [...] quanta importância tinha no aprendizado e no aperfeiçoamento em uma Corporação, a capacidade de um jovem captar no ar aqueles ensinamentos que o mestre não sabia ou não queria dar-lhe. Tem fundamento pensar que grande parte do aprendizado dos discipuli (aprendizes) se desenvolvesse sobretudo pelas partes mais delicadas e decisivas, graças às capacidades individuais de adivinhar, induzir, deduzir e concatenar por iniciativa própria. E,

portanto, - ao menos para os mais dotados -, os frutos do aprendizado superavam aqueles oferecidos pelo ensinamento.

Estes atributos, tão enaltecidos na formação do mestre artesão, transpostos para os dias atuais, como, por exemplo, as noções de pró- atividade e flexibilidade, também imprimem marcas indeléveis na necessidade de cooptar os segredos do saber tácito46, lapidado no trabalho cotidiano. Bianchetti (2001), a partir de seu estudo sobre a mudança tecnológica de base analógica para digital na empresa de Telecomunicações de Santa Catarina S.A. (TELESC), durante a década de 1990, percebe a contradição inerente às formas de apropriação do conhecimento técnico do trabalhador, muitas vezes materializado em softwares e hardwares de grandes empresas transnacionais. Diz o autor:

Fica, assim, patente o pouco espaço para um grande número de trabalhadores desenvolverem e terem o seu saber tácito aproveitado, em função

das decisões políticas tomadas e do

privilegiamento das novas tecnologias, bem como

das estratégias escolhidas para a sua

implementação. Esta é uma questão que precisa ser aprofundada, pois evidencia a grande contradição: quando toda a cultura empresarial e gerencial impedia ao técnico desenvolver o seu saber, como percebemos nas entrevistas, ele buscava e havia espaço para crescer e encontrar formas próprias de conhecer os equipamentos e colocá-los em funcionamento. O posicionamento dos técnicos hoje continua o mesmo. Mudou, no entanto, a cultura empresarial, tornando-se francamente favorável à existência ou ao (auto/hetero) desenvolvimento de um técnico curioso, pesquisador e tantos outros atributos preconizados pelos novos ‘modelos produtivos’. Mudaram também o hardware e o software, restringindo o espaço para a manifestação da

46 Segundo Duarte (2003), este tipo de saber é caracterizado por um

conhecimento prático não organizado em grandes aportes teóricos e que muitas vezes não está articulado a saberes expressos por meio da linguagem. Por isso, o saber tácito é aquele conhecimento que não é explícito e que necessariamente está ancorado em um savoir-faire determinado.

criatividade dos trabalhadores. (1998, p. 172, destaque nosso)47.

O conhecimento prático aprendido e apreendido pelo técnico por meio de muita experiência é incorporado nas novas tecnologias, portanto o seu “segredo”, tal como o do mestre artesão, é subsumido, deixando-o vulnerável por não ter mais o domínio exclusivo sobre o seu trabalho. Bianchetti (op.cit.) assim justifica seu ponto de vista: “Pode-se supor que, ao ser invadido no seu espaço particular e ao ter formalizado e tornado universal o seu saber tácito, o trabalhador tenderá a ver reduzido o seu poder de barganha” (p. 186).48

Para além da cooptação do conhecimento adquirido pela experiência, percebemos uma hierarquização que extrapola aquele do nível de saber tácito adensado ao longo da formação. Esta hierarquia guarda relação direta com a origem sócio-espacial. Rugiu (1998, p. 40) explica historicamente o processo:

Aqueles critérios [de hierarquia] impunham, então, nas oficinas, divisões de trabalho e de hierarquia ou diversidade de posição entre auxiliares ou trabalhadores e aprendizes. Estes últimos podiam retornar para casa nas horas de folga, sendo quase sempre filhos da burguesia abastada da cidade, enquanto o trabalhador, provindo comumente dos bairros ou além, convivia em geral com o mestre e sua família e obtinha como salário unicamente o sustento gratuito. Nos casos em que também o aprendiz hospedava-se junto ao mestre, a casa deste transformava-se em um tipo de internato, com regras precisas e hábitos de vida também além do horário de trabalho.

E esta lógica de acesso diferenciado, de acordo com a condição social persiste em tempos atuais. Sposito (2008) e Muniz (2006) verificam em suas respectivas investigações este cenário: a primeira

47 Esta citação consta na página 172 da tese do referido autor, defendida em

1998 na PUC-SP. Porém foi suprimida quando da adaptação para se tornar livro.

48 A própria prática laboral do professor exemplifica este processo, pois na

relação de ensino-aprendizagem que estabelece com seus alunos, ao tentar transmitir o conhecimento adensado ao longo de anos dedicado ao estudo e à pesquisa, ele se auto-expropria do seu “segredo”.

verifica, ao analisar as concepções que estruturam os programas e projetos educativos destinados a jovens pobres, uma nova forma de reprodução das desigualdades sociais, levando-se em consideração as políticas públicas de acesso precarizado ao ensino superior brasileiro (PROUNI e REUNI). O segundo evidencia que o projeto de expansão da educação superior brasileira se dá em termos de expansão geográfica. Muniz (op.cit.) afirma que se trata de um projeto de expansão territorial do ensino e não de democratização propriamente dita, na medida em que há uma infinidade de universidades privadas espalhadas por todo o país, em contraposição ao acesso restrito às instituições públicas, bem como às políticas de incentivo e de financiamento do governo, que vale sublinhar, são direcionadas majoritariamente ao ensino privado.49

49 O autor reitera que o projeto expansionista da educação superior no país,

defendido pelo Estado, trata de fato da expansão territorial da educação, na medida em que ele é efetivado principalmente por meio de universidades privadas instaladas em todo o país, em contraposição ao incremento do ensino público e gratuito. Vale enfatizar que a difusão do ensino privado muitas vezes se faz com políticas de incentivo e de financiamento públicos. As redes Estácio de Sá, Anhanguera e UNIBAN - que foi incorporada pela Rede Anhanguera - são exemplos de monopólio das IES em solo pátrio. Está em curso a formação de verdadeiros conglomerados/holdings do ensino superior brasileiro, cujo projeto expansionista romperá em breve as divisas territoriais de nosso país de maneira imperiosa. Exemplo disso é que a Kroton já comprou uma universidade no Paraguai. Segundo Koike e Máximo (2012), “o mercado brasileiro de ensino encerrou o ano de 2011 movimentando cerca de R$ 2,4 bilhões em aquisições. Este é o montante investido somente por Anhanguera, Abril Educação, Estácio e Kroton. Trata-se do maior volume já negociado em compras de empresas no setor de ensino no país pelo menos desde 2007, quando os grupos de educação começaram a abrir o capital. De lá para cá, o valor investido em fusões e aquisições praticamente quadruplicou de tamanho. [...] A Anhanguera é o maior grupo de ensino do país, com 292 mil alunos. A Kroton, vice-líder, tem 264 mil. O mercado nacional de educação superior tem 5,3 milhões de alunos, sendo 75% em faculdades particulares. A movimentação no setor também foi motivada pela retomada dos investimentos da britânica Pearson e da brasileira Abril Educação. O recorde anual em número de transações foi em 2008, com 53 fusões e aquisições, quando várias empresas abriram capital na bolsa e foram às compras. Mas naquele ano os negócios envolveram volumes financeiros menores.” Segundo Sguissardi (2008), a educação superior no Brasil carrega o selo da educação-mercadoria que é fortemente marcada pela necessidade de competir, de valorizar indefinidamente seu capital, de fazer render ao máximo cada insumo/professor ou mercadoria-educação, isto é, cada um dos meios de produção envolvidos nesta “indústria de ensino”.

A nossa empiria aponta que o processo formativo de obtenção de uma habilidade, grosso modo, ocorre de maneira diferenciada, de acordo com a origem social e com as experiências vivenciadas que estão diretamente circunscritas às possibilidades socioeconômicas da família de origem e que impactam diferentemente os percursos profissionais trilhados. Os dados evidenciam que os egressos de curso de licenciatura em sua quase totalidade (75%) são oriundos de família de classe popular. Já os egressos de cursos de bacharelado apresentam uma outra configuração que reflete um grau elevado de escolaridade dos pais e uma situação socioeconômica mais favorável, analisada a partir do vínculo empregatício formal dos pais e da renda familiar informada.

Segundo Silva (2010, p. 3),

diante de uma aparente homogeneidade, representada pelo acesso à titulação de nível superior, se escondem diferenças sociais profundas que marcam o “lugar” de cada um. Portanto, as formas de acesso ao ensino superior, a rede frequentada, a escolha do curso, o grau de investimento durante os estudos e as formas de acesso ao emprego qualificado constituem elementos de análise importantes na compreensão do perfil atual dos jovens portadores de diplomas de nível superior.

2.4 O TEMPO EM QUE A UNIVERSIDADE PASSA A HABILITAR