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4.1 Cistemas acadêmicos

4.1.3 Bad trips com o queer

[Partes desta seção foram publicadas no artigo “É a natureza quem decide? Re- flexões trans* sobre gênero, corpo e (ab?)uso de substâncias”, no livro Transfeminismo: Teorias e práticas (JESUS,2014)]

[30 de agosto de 2014]

Fiquei refletindo, enquanto ia trabalhar no Café da Walter, no busu que ia para a estação da Lapa, sobre alguns lances acontecidos no Seminário Desfazendo Gênero, assim como depois de sua realização. Recordei todo o incômodo que havia sentido durante aquele evento, e que posteriormente se externalizou em um breve texto, ‘Algo cheira mal nos trópicos, ou: Ciscos em sapatos trans*’. Fundamentalmente, o texto articulava alguns incômodos ocorridos no Seminário, pensando em como eles podem, devido à presença das relações de poder assi- métricas e injustas em todos lados, ocorrer e passar, em algum grau, despercebidos, mesmo em um espaço dedicado a reflexões sobre di- versidades em termos de orientações sexuais e identidades de gênero. Apontei a preocupação com eventuais insensibilidades interseccionais que podem ocorrer nestes espaços, algo que permeou, particularmente, uma apresentação que elaborava sobre um possível/desejável ’queer nos trópicos’, onde me incomodou “a tranquilidade objetiva e científica com que se descrevem as justificativas [reprodutoras de racismos] do ‘objeto’ [um michê negro, na descrição de quem o apresentou] para, em dado momento de sua existência, desistir de ter relações sociais com homens negros”, entre outras questões. O incômodo daquele mo- mento também criou outros incômodos, como a bad trip e este momento autoetnográfico demonstram.

Passo, já saindo da estação e subindo a ladeira que vai dar nos Barris, por uma esquina em que, às manifestações de junho de 2013, estive junta a um grupo de manifestantes que fora abordado por um grupo de policiais não identificados. Lembro de como paralisei, ao pensar que perceberiam que sou uma pessoa trans – usava calça jeans, camiseta e uma jaqueta preta dita masculina, não estava lá tão feminina. Houve socos e revistas nos rapazes. O policial entra num bar ao lado da ocorrência e ameaça pessoas que suspeita terem gravado a ação. E então, uma policial me aborda, digo-lhe que sou uma mulher trans e que por favor compreendesse isto. Ela revista a bolsa que carrego, toma o vinagre de dentro e o apreende, e fim. Todas as pessoas dispersam,

após apreensões de vinagres e agressões; fico sentada à calçada, impotente, privilegiada. Complexamente privilegiada.

[nota 01] a importância de rexistirmos: mesmo na precariedade, há um devir resistente que pode afetar/contaminar outres: pêdra solange costa, jota.

[nota 02] reações ao artigo ’algo cheira mal’: galera, silêncios, apoios.

Por ocasião do Seminário Internacional Desfazendo Gênero, resolvi escrever, em 19 de agosto de 2013, uma breve crítica a algumas instâncias ocorridas durante o evento (ver Vergueiro(2013a)). Critiquei, em particular, as maneiras exotificantes (e eventualmente ofensivas) que foram e são utilizadas em parte das análises sociais que se posicionam ’sob a influência’ dos estudos queer, e em como algumas destas episte- mologias, metodologias e formas de apresentação de trabalhos seriam incompatíveis ou redutoras dos potenciais antinormativos e anticolonizatórios de uma proposta de estudos queer nos trópicos, em minha humilde opinião enquanto pessoa acadêmica. Após a publicação do pequeno texto, preocupei-me profundamente com a possibilidade de minha breve crítica ao Seminário estar entre as razões para os lamentos de uma eminente e consagrada pessoa pesquisadora, publicados pouco depois de minha inter- venção: seria preocupante que meus esforços acadêmicos, ao fim e ao cabo, fossem algum tipo de projeto-desejo “politicamente míope e intelectualmente desprezível”, e, talvez pior, que eles reforçassem “estereótipos patologizantes” contra mim mesma.

Figura 6 – Reflexões sobre o Desfazendo Gênero

Figura 7 – Reflexões sobre o Desfazendo Gênero (cont.)

Fonte: publicação aberta na rede social Facebook

Míope? Desprezível? Releio meu texto, e noto como me ocupei em tentar apontar os problemas de exotificações acadêmicas efetivadas, em particular naquilo que se refere mais diretamente a questões de identidade de gênero: para além de constatar as instâncias problemáticas em si, creio que cabe a preocupação crítica com o fato de o ’Norte’ cisgênero – também presente nos trópicos, aliás – constranger de formas acriticamente problemáticas as pouquíssimas vozes trans* que se alevantam para dizer ’trópicos de quem, cara pálida cis queer’? Neste sentido, acho melhor seguirmos “na graça e segurança de mandar beijos críticos nos ombros para quem está incomodado, ao invés de feliz, com nossa presença trávica pelos corredores das torres de marfim colonizatórias” [ver seção ’De uma renúncia e de resistências trans* anticoloniais’), e nos organizarmos independentemente das atuações de pessoas ditas aliadas, resistindo em espaços academicamente legitimados somente na medida em que os consideremos como possibilidade de potencialização antinormativa – isto é, na medida em que a academia nos for útil para nossos projetos decolonizatórios.

Para acrescentar a estas colocações e viagens, recorro aSpade(2010, 71) e seu comentário sobre alguns aspectos que lhe foram ensinados quando de sua ‘socialização’ na função de professor de direito (no contexto acadêmico estadunidense):

Um, pessoas com identidades marginalizadas devem apontar margina- lizações somente na medida em que elas não envolvam as pessoas com quem estamos falando. Dois, devemos nos assegurar em elogiá- las como iluminadas e inofensivas e não opressoras, de maneira a estimulá-las a nos tolerar e incluir, e para evitar o perigoso poder que exercem quando estão na defensiva. Três, devemos evitar deixá-las desconfortáveis ou chamar muita atenção para nossas diferenças.

reações e críticas a alguns ocorridos durante o I Seminário Internacional Desfazendo Gênero não se alinharam bem a estas linhas de socialização acadêmica. Apontar algumas das questões que apontei pode ser um exercício complicado, “em uma cul- tura que construiu coisas como racismo, homofobia e transfobia como excepcionais, incomuns, algo cometido por pessoas criminosas do mal”: me parece evidente que, em trechos do texto como este a seguir, meu caminho epistêmico está mais alinhado a perspectivas de movimentos de resistência que “compreendem estes [c]istemas de significado e de distribuição como contínuos, autorreproducentes, para além da esfera da intencionalidade, e que demandam uma prática reflexiva crítica constante” (ibid., 72), do que a processos de vitimização ou arrivismo político:

Em determinada mesa do evento, um homem branco (cis? cisco?) refletia sobre dois ’objetos de estudo’, “um michê” e “uma travesti”. Seu nome, utilizo pseudônimo, é Ed. Ele é acompanhado, na mesa, por dois outros homens brancos e uma mulher branca. Uma dessas pessoas me é muito querida, as demais não conheço pessoalmente. Ed, em dado momento, comenta à plateia lotada – sento-me ao chão, como muitas outras pessoas – que o michê, negro e “de corpo muito bonito”, tenha repetidamente afirmado preterir pessoas negras (homens) a pessoas brancas (homens) através de argumentação profundamente racista. Incomodo-me com a tranquilidade objetiva e científica com que se descrevem as justificativas do ’objeto’ para, em dado momento de sua existência, desistir de ter relações sociais com homens negros; algo cheira mal, e não me parece ser o michê, tampouco nenhum corpo negro.

Penso (não posso deixar de pensar) na tranquilidade com que se fez e faz o escrutínio pretensamente (e socialmente referendado como tal) científico das existências trans*, penso nas violências discursivas a que estas existências são cotidianamente expostas, inclusive nos espaços que presente+anteriormente se acostuma+vam a referir a nós na terceira pessoa. Neste sentido, temo por aquilo que será dito sobre a travesti, e ’felizmente’ há uma ’descrição etnográfica’ um tanto mais empoderadora – pessoa leitora, favor apontar se não atentei a algum elemento problematizável.

Esta análise, explicitamente alicerçada em minhas impressões subjetivas sobre este momento incômodo, não me parece adequada à típica socialização acadêmica descrita por Dean Spade, porém tampouco se presta a uma crítica pessoalista e infun- dada. Talvez pareça arrivismo para algumas pessoas, porém acredito que enquanto queerizar a academia não significar, efetivamente, uma sabotagem epistêmica – uma fechação babado – em relação às caretices e miradas colonialistas e exotificantes em relação às diversidades corporais e de identidades de gênero, nossas rexistências nos cistemas acadêmicos enquanto refúgio não deixa de ser criminosa12: bandidas, de

12 A partir deSpade(2010, 83): “Fred Moten e Stefano Harney oferecem uma relação diferente com a

universidade, uma que não seja baseada em esforços de reforma, declarando ao invés disso que “a única relação possível com a universidade hoje é uma relação criminosa””.

nomes sociais precários e ilegais em um mundo que nos odeia e delimita, ousamos na posição de pesquisadoras ao performatizar uma função ininteligível, ao estudar temas a partir de perspectivas que incomodam, ao propor comunidades ao invés de ‘campos de pesquisa’. Que trukes dar no cistema, para que ele seja um espaço efetivamente transformador das realidades que nos circundam? Como sobreviver nele, sabendo dos boicotes, panelas e cordialidades convenientes? Como fazer as epistemologias cisnormativas des+aprenderem suas miradas, epistemologias, metodologias?

Conforme as manadas precárias e epistemicamente injustiçadas fizermos va- ler nossas perspectivas diversas, nossas demandas, nossos sonhos, poderemos ir desmantelando as estruturas supremacistas na academia, de maneira a provocar transformações interseccionais nela. Todavia, há que se atentar, constantemente, aos processos de cooptação que lhe atravessam, como apontam Moten e Harney

(2004) (apudSpade(2010, 83)):

Harney e Moten sugerem uma relação mais explicitamente antagonista entre “intelectuais subversivas” e a universidade, ao mesmo tempo em que notam como o compromisso crítico em si já é cooptado pela universidade para reproduzir e ocultar as condições sociais e políticas que eles chamam de “conquista” e “guerra”.

De todas maneiras, se neste caminho aponto enfaticamente que a efetividade (política, em particular) dos conhecimentos que se constituem como estudos queer tem apresentado limitações, faço-o no sentido de respeitar profundamente a genealogia destes estudos, em suas rexistências, em suas criticidades e contribuições críticas para re+definições e transformações no campo de gêneros e sexualidades, especialmente em termos da esfera acadêmica, no caso. Suas proposições inspiram, em diferentes maneiras, atuações mais veementes em relação aos cistemas acadêmicos.

Portanto, mesmo entre desconsiderações nos estudos queer em relação a algu- mas questões institucionalizadas de cistemas dominantes de gênero e perspectivas acríticas relativas a injustiças epistêmicas interseccionais que estruturam os cistemas acadêmicos13, considero necessário fazer estes apontamentos críticos concomitan-

temente ao reconhecimento das várias importâncias que os estudos queer tiveram durante o desenvolvimento deste trabalho. Importâncias que se expressaram não so- mente do ponto de vista mais ‘diretamente’ teórico+político, mas também enquanto possibilidade de construção de redes afetivas de solidariedade e aliança (como, por ex., no sentido de minha vinda a Salvador, inicialmente incitada e viabilizada por conta de um curso introdutório de ‘teoria queer’) e enquanto possibilidade de afiliação institu- cional na universidade, na medida em que o grupo de pesquisa de onde escrevo este trabalho se constitui em um dos poucos espaços que defendem, a partir de perspectivas 13 Ler a este respeito, por exemplo,Namaste(2000).

queer (entre outras), a ‘heterodoxia’ destas análises autoetnográficas trans*, desta escrita lombrada, desta presença travesti.

Nestes sentidos, acredito que, nestes processos acadêmicos críticos, é im- portante não simplificarmos poderes e resistências, sabendo serem possíveis afetos e apoios no meio acadêmico na mesma medida em que seguimos navegando por cistemas acadêmicos ampla e generalizadamente hostis, tentando preparar terrenos para trans*formações outras, para fortalecer autonomias corporais e existenciais. O mau cheiro no queer não é onipresente, mas é marcante, e precisamos estar intersec- cionalmente atentas.