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Perguntar-se sobre os processos socioculturais que produzem efeitos de abje- ção, de estranhamento, de inferiorização talvez seja a maior inspiração dos estudos queer às perspectivas que compõem este trabalho. Questionar a produção do ‘normal’ e do ‘padrão’, em relação às corpas e vivências tidas como abjetas, estranhas, transtor- nadas, inviáveis: as reflexões sobre cisgeneridade, um eixo central desta dissertação, são fortemente influenciadas pela perspectiva queer em se problematizarem processos de normatização e controle biopolítico (verSpade e Willse(2015)).

As perspectivas queer “marcam tanto uma continuidade quanto uma quebra de padrão em relação a modelos anteriores de liberação gay e lésbico-feministas” 7 Ver www.transfeminismo.com .

(JAGOSE,1996, 75), tendo sua emergência política relacionada ao surgimento da aids e às “esferas interdependentes de ativismo e teoria que constituem seu contexto”, esferas que “passaram por vários deslocamentos”, em particular relativos a problematizações pós-estruturalistas a respeito de “identidades e as operações do poder” (ibid., 76). Em termos de estratégias políticas, por exemplo, é marcante a ênfase em “políticas da diferença”, em contraposição a lutas mais fortemente fundamentadas em identidades, como a ‘gay’ ou ‘lgbt’ (para uma discussão sobre estas estratégias, suas potências e limitações, verColling(2013)). Estas influências queer também são apontadas a partir deSolá(2013, 18-19) (itálicos nossos), no livro Transfeminismos, com enfoque sobre o contexto do estado espanhol:

A influência do pensamento e ativismo queer contribuiu para o questi- onamento do binarismo de gênero e da dicotomia homo/hetero, para evidenciar a violência de toda formação identitária [. . . ]. No entanto, sobretudo durante a última década, permitiu a articulação de discursos minoritários, práticas políticas, artísticas e culturais que estavam emer- gindo nas comunidades feministas, okupas, lésbicas, anticapitalistas, bichas e trans.

Por sua vez, as proposições de escopo e de perspectiva epistemológica trazidas por estudos queer também são fundamentais para este trabalho autoetnográfico: “Como dar conta de si mesma quando se é desfeita? Como dar conta de ser injuriada e ferida? Como dar conta da própria e constitutiva vulnerabilidade?” (CORNEJO,2011, 80). Minha corpa, minha identidade de gênero e meus desejos, fontes de tantas introspecções e dilemas pessoais, não somente poderiam estar implicados no fazer intelectual, como seriam indispensáveis dentro deste paradigma teórico+político: de que outra forma, afinal, trazê-los? De que forma analisar os silêncios, vergonhas e culpas que permeiam em tantos níveis minha existência trans? Giancarlo Cornejo (ibid.,91) traz questionamentos importantes a este respeito:

A vergonha é um afeto importante em minha vida, e tem sido por muito tempo. Sinto vergonha de não ser heterossexual, de não ser o filho que meu pai teria querido, de minha feiúra, de não ter a neca grande, de não ser um bom amante, de minha feminilidade, de minha indignidade. Na verdade, do que mais sinto vergonha é de sentir tanta vergonha. Mas o que fazer com esta vergonha? Trata-se de aspirar a suprimi-la? Ela pode ser suprimida? Esta vergonha não é, mais bem, constitutiva de quem ‘sou’?

Pensando em questões mais diretamente relacionadas a diversidades corpo- rais, de identidades de gênero e sexualidades, os estudos queer trabalham, a partir de perspectivas pós-estruturalistas sobre identidades, importantes desmistificações relativas a formações corporais, gêneros e sexualidades (JAGOSE, 1996, 3). Esta

contribuição teórico+política é fundamental aos propósitos deste trabalho, uma vez que se compreenda que os processos decoloniais relativos às diversidades corporais e de identidades de gênero envolvam uma análise crítica sobre as in+coerências “nas relações presumidamente estáveis entre sexo cromossômico, gênero e desejo sexual” (ibidem).

A proposição de Judith Butler sobre gênero como “a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser” (BUTLER, 2003, 59) nos permite que reflitamos a respeito de como as diversidades culturais exterminadas ou em processo de extermínio rexistem – em suas perspectivas de gênero ‘outras’, não ocidentais, transtornadas, transgêneras, travestis, viadas, bichonas, entendidas, demoníacas, imorais, criminosas – e desestabilizam a naturalidade das performatividades cisgêneras, do objetivismo e certeza científica diante das categorias ‘homem’ e ‘mulher’ através de ultrassons, formas corporais, intervenções cirúrgicas, diagnósticos psiquiátricos, certidões, rituais, lápides. Permite que reflitamos, assim, sobre a cisgeneridade, que não é “em si uma verdade, e sim uma matriz de normas e práticas repetidas” que “todas as pessoas são compelidas a performatizar para sobreviver” (Butler (1997, 20), emSpade e Willse

(2015)) (tradução nossa): as violências cissexistas aqui compreendidas, a partir deste prisma, como formas de defesa – física, simbólica, ilusória – contra uma cosmogonia cisnormativa, fantasia colonial que vem exterminando diversidades corporais e de identidades e perspectivas de gênero por séculos.

Como enfrentamento possível a tais fantasias genocidas, que fazer? Acredito que, neste fazer autoetnográfico, uma proposta política e acadêmica interessante está na recusa à construção de uma “cartografia dominante”, de um “arquivo de vítimas”, priorizando a busca por uma “cartografia queer” que se constitua em desenho da “forma que tomam os mecanismos do poder quando se espacializam”, esboço de “um mapa dos modos da produção da subjetividade”: uma “contra-história, uma contrassociologia e uma contrapsicologia” de uma zorra travesti cuja tática seja, de alguma forma (certamente precária e limitada), “a simulação da revolução na ausência de todas suas condições e a provocação que consiste em expressar ininterruptamente uma verdade revolucionária que, nas condições dadas, é inaceitável.” (Paul Preciado, 2008) (tradução nossa).