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4.2 Cistemas legais e de saúde

4.2.5 Cistema prisional

O que é o Estado? O Estado é esta burocracia organizada: é o depar- tamento de polícia, é o exército, a marinha. É o [c]istema prisional, os tribunais, e quanto mais o valha. Este é o Estado; uma organização repressiva. [. . . ] Mas a realidade é de que a polícia se torna necessária na sociedade humana somente naquelas junções em que ela é dividida entre aquelas pessoas que têm e aquelas que não têm. (dead prez - Police State)

A partir dos Termos de Declarações colhidos das travestis com informa- ções sobre profissão, ganho mensal, gastos com hormônios e aluguel, além das imagens já referidas, Guido Fonseca fez uma série de estudos criminológicos com esse segmento que ele caracteriza como perversão. Essas “rondas” comandadas por José Wilson Richetti, chefe da Sec- cional de Polícia da Zona Centro desde maio de 1980, tinham por objetivo “limpar” a área central da presença de prostitutas, travestis e homossexuais. (Brasil,2014b, 309)

Aqui, de maneira breve e com o propósito de incitar e aprofundar diálogos, pretendo pontuar que, quando pensamos sobre diversidades corporais e identidades de gênero, os esforços interseccionais devem nos instigar a autorreflexões constantes sobre aspectos que possam ser indevidamente secundarizados em nossas análises. Para que, em compreendendo nossas limitações e possibilidades, estas autorreflexões gerem ao menos reconhecimentos de restrições epistemológicas, até como um convite a produções que se debrucem mais a fundo sobre algum aspecto que tenha sido 31 No mês de setembro, felizmente, este meu amigo, juntamente a outras pessoas, teve sentença

favorável para sua alteração de registros. Em que pesem as limitações cistêmicas na compreensão destas demandas legítimas (como a profunda patologização dessas vivências), é um resultado que me alegra muito em termos das repercussões materiais e práticas na vida destas pessoas queridas. Seguem, entretanto, as lutas para que este direito ao autorreconhecimento de gênero seja um direito para todas pessoas, independentemente de ’especialistas’ e fotografias.

ignorado ou insuficientemente considerado. Neste sentido é que, a partir da leitura de Spade (2012) e outras produções dentro da perspectiva de abolição prisional, considerei necessário tratar, ainda que sucintamente, do cistema prisional como uma instância de i+legalidade profundamente cisnormativa, espaço institucional de violência e colonização de diversidades. As palavras de Davis (2003, 61) (tradução nossa) também são diretas, no sentido de enfatizar a importância deste cistema em análises críticas:

Além do mais, pessoas acadêmicas e ativistas que estão envolvidas em projetos feministas não devem considerar a estrutura da punição estatal como marginal em seus trabalhos. Pesquisas e estratégias de organização críticas devem reconhecer que o caráter profundamente generificado da punição tanto reflete quanto aprofunda ainda mais a estrutura generificada da sociedade como um todo.

A partir de Spade (2012, 2) (tradução nossa), apresentam-se alguns cami- nhos que vêm sendo trilhados, particularmente em linhas de trabalho antirracistas que “identificam o [c]istema de punição criminal como um dos aparatos primários da violência racista”, para uma oposição a este cistema estruturado para a normatização e brutalização racial e de diversidades corporais e de identidades de gênero:

Colocar-se em oposição a este [c]istema [de punição criminal] inclui tanto a oposição a seu crescimento literal (a contratação de mais pes- soas policiais, a construção de mais prisões, a criminalização de mais comportamentos, a elevação das sentenças) quanto o desmantela- mento dos mitos culturais sobre ele ser um [c]istema de ’justiça’ e sobre a polícia ’protegendo e servindo’ a todas pessoas.

Afinal, como não pensar em toda a economia política em torno das pessoas trans, particularmente travestis, sendo exploradas em momentos delicados de ‘diálogos’ com cistemas policiais? A própria produção da identidade+categoria travesti atrelada à sua criminalização enquanto existência, à criminalização de sua efetiva e-ou pressuposta atividade econômica no mercado sexual, à sua sujeição ao extermínio por parte dos pobres ocós ’enganados’ sobre nós ou pelo ódio institucionalizado e exercido a partir de autoridades fascistas que se utilizam de suas posições de poder para agredir e assassinar pessoas trans. Quando não utilizá-las para ’estudos’, como se aponta no relatório da Comissão da Verdade (Brasil,2014b, 309):

Entre 14 de dezembro de 1976 e 21 de julho de 1977, 460 travestis foram sindicadas para o estudo, sendo lavrados 62 flagrantes. O resultado mostra que 398 travestis foram importunadas com interrogatório sem serem “vadios”, tendo sido obrigadas a demonstrar comprovação de trabalho com mais exigências que o restante da população, já que a Portaria 390/1976 da Delegacia Seccional Centro estabelecia que

travestis deveriam apresentar RG e carteira de trabalho acompanhada de xerocópia, sendo esta última encaminhada pela autoridade seccional para arquivo destinado somente às travestis.

Se não tivessem os documentos referidos, as travestis eram encami- nhadas ao distrito policial para lavratura do respectivo inquérito por vadiagem.

Ferreira(2014, 41) também nos traz um trabalho importante, neste sentido de compreender as relações entre travestis e cistemas prisionais, em “Travestis e prisões: a experiência social e a materialidade do sexo e do gênero sob o lusco-fusco do cárcere”. Uma das reflexões que me tocou foi sua consideração acerca dos atravessamentos de raça-etnia e classe para analisarmos a produção discursiva da categoria travesti:

Esse quadro sugere que a realidade social onde é produzida a identi- dade travesti e a sua própria reprodução enquanto identidade coletiva é fruto, entre outras coisas, das condições materiais de vida e da sua inserção numa classe social determinada. Não se está aqui dizendo que a identidade travesti é generalizadamente um produto da pobreza, ou que a pobreza define uma identidade de gênero como essa. Mas é possível sim dizer que entre todas as determinações que refletem na construção das identidades culturais dos sujeitos, a classe social – e, portanto, o contexto socioeconômico – possui também centralidade.

Quando “as especificidades das construções socioculturais do projeto travesti, os reflexos da violência quase como regra geral nas suas vidas, as relações que estabelecem em sociedade, a concepção de identidade de gênero [. . . ], a inserção no mundo do trabalho e o acesso aos serviços e políticas sociais” (ibid., 44) são levadas ao espaço da prisão, o “modo de funcionamento geral das prisões” chega “às travestis sob formas peculiares, agravadas em razão de suas identidades de gênero” (ibid., 89). Estas percepções nos levam a questionar sobre as limitações cistêmicas que podem estar envolvidas na análise de medidas como a criação de ’alas LGBT’ em presídios, ou projetos de criminalização de violências específicas contra pessoas LGBT.

Sendo assim, também se faz necessário notar que quando somos assassinadas e violentadas, encontramos tanto o ódio e desprezo quanto o desinteresse e a meia con- descendência institucionais em relação a nossas existências: entre a explícita ’limpeza’ policial das presenças travestis das ruas e os assassinatos indevidamente investigados, há ainda a negação de identidades e a exposição de privacidades. Em ‘Prisão de acusados de assassinar homossexual é revogada por falta de fundamentação’32, temos

um exemplo deste processo:

Narra a denúncia que a vítima, homossexual que se travestia de mulher e se apresentava como Luíza, teve relacionamento amoroso com o réu

D., não revelando seu gênero biológico. Para vingar-se, em 13 de julho de 2005, D. combinou encontro com a vítima, levando-a para o interior de uma residência onde, em co-autoria com o réu A. e com o co-réu E., passaram a agredi-la com socos, pontapés e um pedaço de madeira, causando sua morte. Após, amarraram o corpo da vítima pelos pés e a ele prenderam uma pedra, jogando-a no mar.

Refletir criticamente sobre o cistema prisional e suas funções estruturais para o funcionamento econômico e sociocultural dominante, tanto direta como indiretamente (como nos efeitos do medo punitivista, por exemplo), parece consistir em um desafio epistêmico considerável, especialmente quando nos permitimos analisar criticamente a necessidade da abolição prisional em um contexto de privatizações e militarizações de diversos cistemas prisionais pelo mundo.

Há, afinal, o insólito e o brutal através dos cistemas legais. Legais? Tropas de choque, relações de confiança excessiva e articulada aos cistemas de saúde (nos entrelaçamentos das colonialidades de saber e poder, como através de diagnósticos de transtorno mental e processos eugênicos de criminalização), relações intra-judiciárias que não valem ser tensionadas em seu conservadorismo e violências por causa ‘dessa gente aí’, execuções e assassinatos não investigados, prisões plantadas de travestis para deleite sensacionalista e fascista em televisões. Cerceamento de existências não documentadas, reafirmações de arrogâncias institucionais espúrias nas fronteiras das elites jurídicas e da saúde: re+produções de cistemas.

Tratadas como epidemia, vetor de transmissão do indesejável a famílias e círculos sociais higienizados, batizados, ungidos: poderemos perceber e analisar, para além da obviedade sangrenta dos ódios transfóbicos explícitos, todo desprezo e colonialidade que mal se escondem nas entrelinhas de intere$$es, ignorâncias e silêncios que nos atravessam as vidas? E como responder a todas estas violências, especialmente se nos propusermos uma recusa a fortalecermos um cistema prisional brutalizante?

Afinal, em alguns momentos e contextos o controle e monitoramento popula- cional trans e gênero-diverso acontece a partir da construção de ‘grupos de risco’ ou de nossa invisibilização ampla e generalizada, e por vezes até sob um verniz de preocupação com nosso bem-estar. Em outros, estes processos se estabelecem de formas mais explícitas, onde “combater de imediato os travestis” (sic) se torna objetivo de Estado e oportunidade de pesquisa para o delegado Guido Fonseca, como aponta o relatório da Comissão Nacional da Verdade (Brasil,2014b, 297):

Além disso, o delegado Guido Fonseca elaborou estudos criminológi- cos de centenas de travestis, recomendando a contravenção penal de vadiagem como instrumento para o combate à homossexualidade.

Em 1º de abril de 1980, O Estado de S. Paulo publicou matéria intitulada “Polícia já tem plano conjunto contra travestis”, no qual registra a pro- posta das polícias civil e militar de “tirar os travestis das ruas de bairros estritamente residenciais; reforçar a Delegacia de Vadiagem do DEIC para aplicar o artigo 59 da Lei de Contravenções Penais; destinar um prédio para recolher somente homossexuais; e abrir uma parte da ci- dade para fixá-los são alguns pontos do plano elaborado para combater de imediato os travestis, em São Paulo”.

Ele e o coronel da PM Sidney Gimenez Palácios traçaram juntos esse “esquema de prevenção” após ficarem “impressionados com as repor- tagens publicadas pelo O Estado sobre o perigo que representam os travestis nas ruas da cidade”.

O método utilizado pelas forças de segurança era realizar batidas poli- ciais em locais frequentados pelas pessoas LGBT, especialmente as travestis, que eram levadas “para averiguação” às dependências polici- ais, tendo por fundamentos legais a contravenção penal de vadiagem e a prisão cautelar prevista no Código de Processo Penal de 1941, então em vigor. Segundo consta de declaração do delegado à imprensa, de 300 a 500 pessoas eram levadas por dia para delegacias.

Pensar as colonialidades que permeiam as existências de diversidades corpo- rais e de identidades de gênero, interseccionalmente, deve nos trazer desconfianças constantes em relação aos cistemas legais e de saúde, em particular acerca dos intere$$es que os atravessam.