• Nenhum resultado encontrado

4.2 Cistemas legais e de saúde

4.2.1 Negociando acessos

[parte do artigo Reflexões autoetnográficas trans sobre saúde (VERGUEIRO,

2015b)]

Em meados de 2014, depois de longos períodos de enrolação, decidi acessar o cistema de saúde através de meu vínculo como estudante da Universidade Federal da Bahia, com o objetivo de realizar acompanhamentos de minha situação de saúde geral, com ênfase particular no acompanhamento das alterações fisiológicas decorrentes da terapia hormonal. Apesar de muito ceticismo e desconfiança sobre como poderiam ser essas experiências de acesso, e mesmo sobre a competência e atenção adequada à

minha saúde por parte deste cistema (especialmente nas questões relativas à terapia hormonal), imaginei que talvez pudesse ser capaz de negociar e advogar pelos meus direitos a “atendimento humanizado, acolhedor e livre de qualquer discriminação.” (Brasil,2011, 3), ainda mais tendo meu nome social, viviane, reconhecido no âmbito da universidade – apesar de, neste momento, ainda não haver uma resolução sobre nome social implementada18.

Para fazer o cadastro neste serviço, entretanto, é requisitado a toda pessoa usuá- ria que ela tenha os seguintes documentos: “carteira de identidade, comprovante de matrícula do semestre em curso, cartão de vacinação atualizado no CRIE e resultados dos seguintes exames complementares” – vários, como hemograma completo e parasi- tológico de fezes (informações retiradas do ‘Manual de orientação’ do SMURB19). Este

segundo relato percorre alguns dos caminhos para a efetivação deste cadastro, que incluiu uma consulta para vacinação e consultas, como parte do processo de triagem, com pessoas profissionais de enfermagem, serviço social e clínica geral, e também retoma uma experiência de consulta com uma pessoa profissional da especialidade de endocrinologia.

A primeira destas experiências se refere a uma visita realizada ao CRIE (Centro de Referência de Imunobiológicos Especiais), um centro de vacinação conveniado ao Cistema Único de Saúde, para atualizar e documentar as vacinas que eram requeridas para o cadastro. Após constatar que não havia como registrar meu nome social na ficha cadastral, procurei formas de garantir que meu direito a ser chamada como viviane fosse cumprido, sem obter sucesso, comprovando que “[a] falta de respeito ao nome escolhido pelas pessoas travestis e transexuais se configura como uma violência que acontece diariamente nas suas vidas sociais” (Brasil, 2010, 12). Sobre o episódio, remeto-me a uma mensagem enviada à ouvidoria do hospital, registrada no cistema OuvidorSUS com o número 1114851:

[. . . ] gostaria de relatar um incidente ocorrido no dia 06 de junho de 2014[. . . ].

Neste dia, fui ao [centro de vacinação] tomar a segunda dose da vacina de Hepatite B, como parte dos requisitos necessários para realizar o cadastro no SMURB. Após solicitar, à recepção, o ’número’ necessário para obter a ficha de atendimento, dirigi-me às cabines para a impressão da ficha.

Numa destas cabines, solicito que meu nome social seja incluído na ficha, conforme previsto no item I do parágrafo único do Art 4o da

18 Em meu registro na universidade como pós-graduanda, consta meu nome social seguido, entre

parênteses, de meu nome de registro civil, exatamente como fiz em minha inscrição no processo seletivo.

19 Serviço Médico Universitário Rubens Brasil. Além do “cumprimento das formalidades previstas para

as licenças de saúde dos servidores e do corpo discente da UFBA”, este serviço tem a função de “prestar assistência médica em diversas especialidades” (informações da página institucional do serviço: http://www.smurb.ufba.br).

Portaria número 1.820 de 13 de agosto de 2009, onde se garante a ”identificação pelo nome e sobrenome civil, devendo existir em todo documento do usuário e usuária um campo para se registrar o nome social, independente do registro civil [. . . ]“. A resposta da pessoa aten- dente foi de que não existia tal campo na ficha, em franca violação do que é previsto pela Portaria. Este é o primeiro de três aspectos

importantes neste relato.

Com a ficha em mãos, vou até a recepção do [centro de vacinação]. Empresto uma caneta para, ao lado de meu nome (de registro) na ficha, escrever o seguinte, em fonte maior que a da impressão: ”(Nome social: Viviane Vergueiro)“. Inseri esta informação manualmente com o objetivo de evitar constrangimentos, e assegurar um tratamento humanizado naquele espaço.

Entretanto, depois de alguma meia hora de espera, a médica [nome omitido] me chama para atendimento, mas utilizando o nome de registro, violando o assegurado ”uso do nome de preferência“ previsto pela Portaria supracitada. Não respondo ao seu chamado, especialmente considerando o destaque dado ao meu nome social na ficha. Ela retorna a sua sala, e após alguns minutos chama por ”Viviane Vergueiro“. Dirijo- me até ela.

Entrando em seu consultório, pergunto-lhe se ela conhece a Portaria 1.820, de 2009 (Brasil,2009), [. . . ]. Ela pede que eu me sente, e eu re- faço a pergunta, informando-lhe de que se trata a Portaria, em particular no que diz respeito ao direito à utilização e consideração do nome social. Ela, em atitude impaciente, minimiza o ocorrido sem se desculpar e insiste para que me sente, tendo me chamado de ”senhor“ mais de uma vez nesta conversa. Eu lhe peço seu nome e uma identificação visível (conforme também prevê esta Portaria, no item II do parágrafo único do Art 4o), e isto me é negado em um primeiro momento. Eu lhe peço licença, então, para confirmar sua identidade com outras pessoas do Centro.

Saindo do consultório, há algumas 4 pessoas conversando, entre elas o enfermeiro [nome omitido]. Peço-lhes licença para solicitar se al- guém ali poderia me confirmar a identidade da médica que me atendia. [. . . ]Surpreendidos pela solicitação talvez inusitada, digo-lhes que havia acontecido uma ocorrência de desrespeito a meus direitos enquanto usuária da saúde, em particular no que se relaciona a meu nome so- cial[. . . ].

O enfermeiro [nome omitido], então, se aproxima e também tenta mi- nimizar o ocorrido, pedindo para que me acalme e retorne à sala de consultas. Refere-se, então, a mim como ’senhor’, e quando o corrijo – dizendo-lhe que exijo ser tratada no gênero feminino – ele se justifica dizendo que era ’complicado [me tratar conforme demandado por mim]’, por se tratar de uma questão ’fisiológica’. Minha ficha, aparentemente, é passada adiante pela médica para que eu seja chamada para tomar a vacina.

Depois de alguns 15 minutos, sou chamada pela técnica de enfermagem [nome omitido], que me atendeu com respeito e consideração à minha identidade de gênero. Ela me aplica as vacinas, e durante o processo lhe pergunto sobre a possibilidade de obter uma cópia da ficha de atendimento (onde consta, preenchido de próprio punho, meu nome social em letras visíveis). Ela me informa que consultará as pessoas

responsáveis.

Espero, então, por aproximadamente 30 minutos até que a enfermeira [nome omitido] me chame a uma sala. Nela, ela me informa de que o enfermeiro [nome omitido], responsável por autorizar a obtenção da có- pia da ficha, não a havia autorizado, por conta de não disporem de uma fotocopiadora no Centro naquele momento. Não satisfeita, insisti que eu poderia simplesmente fazer uma fotografia da ficha: [a enfermeira] me responde que não havia autorização para tal, tampouco, e que eu deve- ria buscar ”os meios legais“, se eu quisesse esta cópia. Então a questão não seria a disponibilidade ou não de uma fotocopiadora, argumentei, mas sim a negação do acesso à minha documentação de atendimento, ao que a enfermeira [nome omitido] assentiu, insistindo que eu poderia buscar os ”meios legais“ caso discordasse desta negação de acesso.

O acesso a este documento é o segundo dos três aspectos a se destacar no texto.

Finalmente, ao encontrar a médica [nome omitido] logo fora da sala, perguntei-lhe, com o objetivo de confirmar as informações recém-obtidas, se realmente eu não iria poder ter acesso a meus documentos. Em uma discussão complicada e nada humanizada, a médica afirma ter visto meu nome social (segundo ela, ”depois“ de me haver chamado pelo nome de registro), e reforçou que não seria possível ter acesso à ficha. Finalmente, após desnecessárias perguntas de cunho pessoal [como, por exemplo, a clássica pergunta sobre eu ter feito ’a’ cirurgia], a médica afirma que teria sido uma ”infelicidade“ me atender, e que, en- quanto não tivesse meu nome social reconhecido em meus documentos, ”constrangimentos“ como aquele iriam acontecer várias outras vezes.

Este atendimento não humanizado e ignorante do meu direito à identificação pelo nome social por parte desta pessoa médica é o terceiro aspecto a ser evidenciado nesta mensagem.

A partir destes eventos, gostaria de solicitar a esta Ouvidoria o seguinte, conforme possível:

1) Obter informações sobre as medidas a serem tomadas para que [se] respeite o nome social utilizado por pessoas como eu, em cumprimento efetivo da Portaria 1.820, de 2009, particularmente no que diz respeito ao uso do nome social;

2) Solicitar, junto ao CRIE, cópia da ficha de atendimento utilizada neste dia para minha vacinação;

3) Investigar e analisar criticamente as posturas das pessoas funcioná- rias do CRIE, e em particular da médica [nome omitido], que em minha opinião não foram condizentes com uma atitude de humanização da pessoa usuária da saúde, expressando ainda desconhecimento total da Portaria 1.820, de 2009, ao violar meu direito ao uso do nome social [. . . ].

A resposta obtida através da ouvidoria foi a seguinte:

Prezada Senhora,

Segue abaixo respostas das demandas registradas nessa ouvidoria: [. . . ]

1114851: Sua demanda foi trabalhada pela Ouvidoria SUS / Hospital Universitário Professor Edgard Santos, tendo recebido da coordenadora

do [centro]:

Prezada senhora, em resposta ao espelho da demanda nº 114851, venho relatar que no dia 06/06/14, a sra. Viviane Vergueiro, cujo nome

civil é Douglas Takashi [sic] Simakawa, compareceu ao setor para

vacinação, tendo sido encaminhado [sic] para o SAME afim de que fizesse a ficha de cadastro de usuário do SUS.

No retorno [f]oi entregue a ficha na recepção do setor. No momento do

atendimento, foi feita a chamada com seu nome de registro civil (Douglas Takeschi [sic]), foi realizada nova chamada e desta vez a

paciente levantou-se e dirigiu-se a sala de triagem.

Já na sala a sra. Viviane recusou-se a sentar e em seguida retirou de sua bolsa um papel, e passou a perguntar se tínhamos conhecimento da Portaria 1.820/2009, passando a ler [a Portaria] em atitude agres-

siva. Novamente foi convidada a sentar e diante de nova recusa, foi

preenchida a ficha de controle de imunobiologico especiais.

A sra. Vivia [sic] não permitiu espaço para diálogo, enquanto isso,

solicitava o nome de quem a atendia (no caso, eu) e ao sair da sala de triagem, passou a anotar o nome de todos os fucnionário [sic] que a atenderam. A sala de vacina foi previamente informada que a paci-

ente deveria ser chamada pelo nome social, que de sua preferência.

Durante o período que permaneceu no setor, gravou e filmou, sem

autorização, [m]anteve atitude agressiva, o que foi constrangedor para todos.

Finalmente gostaria de informar que em momento algum houve des-

repeito [sic] a paciente e que neste serviço constumamos [sic] re- ceber outras pessoas em situação semelhante e é constume [sic] perguntar o nome de preferência para que evite constrangimentos para todos.” (ênfases e acréscimos meus)

Posteriormente a esta denúncia que fiz, obtive acesso à minha ficha, porém não houve qualquer outra resposta por parte da ouvidoria em relação às duas outras demandas, excetuando-se um compromisso verbal, por parte de uma ouvidora, de que o tema do nome social seria incluído em reuniões com pessoas gestoras. Mesmo com um flagrante desrespeito ao nome social, admitido em documentação da ouvidoria: “No momento do atendimento, foi feita a chamada com seu nome de registro civil”. Quais os limites institucionais de ação contra cis+sexismos?

Um bom tempo depois (no final de outubro), compareci ao SMURB para passar pelo ‘programa de triagem’, que “tem como objetivo conhecer as condições de saúde dos estudantes ingressos na UFBA”, “[a]través das entrevistas realizadas com enfer- meiro, assistente social e médico” (do ‘Manual de Orientação’ do SMURB). Durante o preenchimento das fichas para abertura do cadastro e realização das entrevistas, a pessoa funcionária inclui somente meu nome – Viviane Vergueiro – no prontuário, não sem antes ficar em dúvida a respeito de que nome(s) utilizar.

Dirijo-me, então, à recepcionista que me encaminhará para a pessoa profissional de enfermagem. Espero um pouco, e durante este tempo já estava mais tranquila com

as expectativas de como seria o atendimento. O uso exclusivo do nome social me trazia uma certa tranquilidade de que não haveria constrangimentos anteriores a qualquer interação com a profissional – o que se tornava bem mais difícil quando se tem dois nomes, um deles entre parênteses, em uma ficha. De todas maneiras, deixar o momento de uma eventual ‘descoberta’ de que se trata de uma pessoa trans – se é que isso será necessário, a depender da demanda ao cistema de saúde – para o momento da consulta, já de porta fechada, era uma possibilidade de estabelecer um diálogo potencialmente menos constrangedor. A enfermeira chama meu nome, e entro à sala. Sento-me, dou bom dia.

Ela se apresenta, e diz que fará algumas perguntas com base em um questioná- rio. Algum problema de saúde? Digo-lhe que, para além de um joelho com ligamento rompido, não tenho problemas. Segue-se, então, toda uma lista: problemas neurológi- cos, psicológicos, gástricos, intestinais. . . após todas negativas e um comentário sobre meu astigmatismo e hipermetropia, ela me pergunta qual fora minha última consulta com especialidade oftamológica. Após alguns segundos em silêncio, ela me pergunta:

– Endócrino, nenhum problema? Endócrino? Com endocrinologista?

Já imaginando que pudesse ter havido alguma suposição sobre minha identi- dade de gênero trans, estranhei o tom da pergunta. Entretanto, ela então segue a lista, diante de outra negativa: nutricional, metabólico. . .

E então, ela me pergunta com quantos anos menstruei. Respondo-lhe que sou uma mulher trans, e ela pergunta de bate-pronto, ’E você fez cirurgia?’, e então reflito sobre o que a teria motivado a tal interrogação. Mero desconhecimento do fato de que, independentemente de cirurgias, meu corpo (sendo de uma mulher trans designada como homem cis ao nascimento) não menstruaria? Ou simplesmente a pergunta-curiosidade sobre pessoas trans que vem como reflexo imediato do momento em que as pessoas sabem de suas identidades de gênero? Ambas possibilidades eram decepcionantes.

Logo depois, ela faz uma consideração sobre a necessidade de acompanha- mento de endocrinologista para fazer o tratamento hormonal. Respondo-lhe que tomo meus remédios ’por fora’, em parte por conta das insuficiências e invisibilizações sobre pessoas trans e suas necessidades na endocrinologia e entre endocrinologistas de maneira geral. A enfermeira então comenta que talvez o Hospital das Clínicas tenha alguém para atender pessoas trans. Disse-lhe, finalmente, que minha intenção era, no mínimo, de ter acesso a exames de acompanhamento de minhas situações hormonais, sem necessariamente ter de fazer o tratamento hormonal a partir de alguma orientação de endocrinologista – afinal, isso provavelmente seria condicionado ao paradigma patologizante.

De todas formas, entre os encaminhamentos feitos neste processo de cadastro no SMURB, está uma consulta com uma pessoa endocrinologista. Tive sorte de conseguir esta consulta para poucos dias depois de meu cadastro, segundo pessoas funcionárias, pois ela é a única da especialidade no serviço – a enfermeira foi atenciosa ao solicitar que tentassem encontrar algum ’encaixe’, já que me hormonizava faz certo tempo sem acompanhamento. Chego à sua sala, sento-me e prontamente observo, à lapela de seu jaleco, um broche de Nossa Senhora Aparecida. Lembro-me de minha mãe, também devota dela, e me preocupo se o atendimento terá algum viés cristão. E aí, o que que te traz aqui? – o tom é incisivo. Sou direta e digo que sou uma mulher trans, e que gostaria de fazer exames para acompanhar a terapia hormonal que tenho feito por conta. A resposta é igualmente incisiva: ’eu não faço esse acompanhamento. Esse é um acompanhamento que tem uma especificidade diferente’.

Ela, então, comenta sobre o eventual ambulatório trans que, ao que tudo indica, será aberto em Salvador20, e que por ora solicitaria exames gerais. E também adverte

que, para participar do ambulatório, ’precisa ter algumas características muito especiais’. Pergunto-me se essas ’características especiais’ seriam os critérios diagnósticos de ’transexualismo’. A endocrinologista também me informa de que outras 3 pessoas trans também já a procuraram anteriormente. Pouco depois, vem o fatídico ’Você fez a cirurgia?’, e então uma pergunta sobre os medicamentos que estou usando: climene, finasterida, norestin. Quem tá te passando, ela pergunta, e lhe digo que basta ir à farmácia – e antes de qualquer legalismo, que façamos uma reconsideração decolonial sobre as violentas precariedades a que somos submetidas, enquanto pessoas nas diversidades corporais e de identidades de gênero.

Nas entrelinhas das perguntas da pessoa médica, tento levantar algumas de- mandas de acompanhamento de saúde, como a realização de espermograma e o acompanhamento de outros fatores importantes em processos de ’transição de gênero’, como os níveis de testosterona e estrogênio, ou exames das funções hepáticas. Em dado momento, também conversamos sobre as dificuldades no processo de alteração de registro civil, e ela parece empatizar um pouco mais com minha realidade – depois da recepção bastante seca e incisiva.

Considero complicado que nossas demandas específicas de saúde tenham de ficar restritas aos espaços do cistema de saúde dedicados a nossa população, sendo aí vinculada a paradigmas patologizantes, de maneira geral. Desta forma, esta restrição acaba significando que, fora destes espaços específicos, a desinformação e invisibilidade sobre nossos corpos e gênero consegue ser ainda maior, sem que haja uma devida responsabilização por esta incompetência – um contexto perturbador, dado 20 Até o momento de finalização desta dissertação de mestrado, este ‘ambulatório trans’ não foi

que poucas cidades no Brasil têm tais espaços. Reflito, ainda, sobre a necessidade de as especialidades médicas terem formações pensadas a partir de um paradigma de diversidades corporais e de identidades de gênero enquanto um princípio fundante, ao invés da cisnormatividade que parte da naturalização de dois gêneros (suposta- mente) determinados. Despatologizações, informações ’para geral’, e formações para profissionais: teria eu as ’características muito especiais’ necessárias para receber atenção adequada e sensível às minhas realidades? O que os diagnósticos de corpos e gêneros produzem, em termos de dinâmicas de inclusão e exclusão, de acesso e restrições de acesso a alguns recursos? A população trans é percebida como um todo homogêneo, ou há lugar para a percepção das diversas de suas interseccionalidades políticas e socioculturais?

Retiro, então, meus exames hormonais, com esperanças de que minha hor- monização autonomizada e precária esteja se refletindo, de alguma forma, em taxas hormonais compatíveis com o que se tem como padrão para a ‘feminilização’. Entre os resultados que se apresentam na Tabela 01, estão:

Tabela 1 – Resultados de exames

Dosagem de Estradiol Resultado: 37,00 pg/ml Valores de Referência: Mulheres: Fase Folicular: 27,00 - 122,00 pg/ml Meio do ciclo: 95,00 - 433,00 pg/ml Fase luteal: 49,00 - 291,00 pg/ml Menopausa (sem TRH*): < 20,00 - 40,00 pg/ml TRH: Tratamento de Reposição HormonalHomens: < 20,00 - 47,00 pg/ml

Dosagem de Estradiol Resultado: 37,00 pg/ml Valores de Referência: Mulheres: Fase Folicular: 27,00 - 122,00 pg/ml Meio do ciclo: 95,00 - 433,00 pg/ml Fase luteal: 49,00 - 291,00 pg/ml Menopausa (sem TRH*): < 20,00 - 40,00 pg/ml TRH: Tratamento de Reposição HormonalHomens: < 20,00 - 47,00 pg/ml Dosagem de Prolactina Resultado: 9,20 ng/ml Valores de Referência: Homens: 2,64 a 13,13 ng/ml Mulheres pré-menopausa: 3,34 - 26,72 ng/ml Mulheres pós-menopausa: 2,74 - 19,64 ng/ml Dosagem de Testosterona Resultado: 5,02 ng/ml Valores de Referência: Homens (18 a 66 anos): 1,75 - 7,81 ng/ml Mulheres (21 a 73 anos): < 0,1 - 0,75 ng/ml Fonte: documentação pessoal

Sinto-me bem comigo mesma, em minha corpa. A terapia hormonal, em minhas avaliações externas, tem tido efeitos que considerei positivos. O que eu desejaria de um sistema de saúde seria, fundamentalmente, que minha corpa existisse, e que minha autonomia corporal fosse devidamente informada por pesquisas que a pensassem em suas complexidades, e não como um mitológico grupo social homogêneo criado por cistemas médicos patologizantes que parecem se preocupar mais com nosso monitoramento, controle e exploração acadêmico+econômica que em nossos bem- estares.

Seguimos trilhando a partir de precariedades interseccionais, neste cistema, sendo nossas identidades de gênero trans uma resistência im+possível a intentos colonialistas de normatização.

4.2.2 A mirada psiquiátrica

[publicado emVergueiro(2015b)]

É dia 23 de outubro de 2011. Depois de aproximadamente quatro anos vivendo em Toronto, Canadá, por conta de uma experiência profissional na área de auditoria interna, dentro de uma multinacional do setor de mineração, retorno ao Brasil e mais precisamente ao interior de São Paulo onde vivi durante parte considerável de minha existência. Concomitantemente a esta experiência profissional, o contexto em que