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4.1 Cistemas acadêmicos

4.1.1 Como investigar cissexismos institucionais?

No dia da apresentação do projeto de pesquisa para a banca exami- nadora, eu estava um pouco tensa. Ao ser chamada, fui muito bem recepcionada pelo presidente da banca, mas ao entrar na sala todos ficaram parados, ninguém falava nada, estavam espantados. Até que resolvi acabar com aquele silêncio perguntando quem iniciaria. Um dos integrantes pediu para o presidente iniciar. Sabia que aquilo não era de praxe, pois parecia que haviam iniciado os trabalhos naquele momento, não sabiam quem começava nem como começar. Apesar de tantas leituras, aquilo tudo era inédito para aqueles pesquisadores, que tinham campo amplo de atuação no Brasil e fora deste. Iniciei o curso de Doutorado e me deparei com situações que jamais pensei encontrar, como colegas que mudavam a fisionomia facial ao me verem em sala e durante algumas aulas questionavam minha sexualidade. (ANDRADE,

2012, 86)

Este relato autoetnográfico se refere ao processo de qualificação e implantação do financiamento que venho recebendo para o desenvolvimento desta pesquisa na Universidade Federal da Bahia (UFBA), através da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Seu objetivo é o de analisar as possibilidades e limitações nas lutas por reconhecimentos institucionais a respeito de discriminações e obstáculos cistêmicos (i.e., institucionalizados) contra as diversidades corporais e de identidades de gênero. Em particular, trago reflexões sobre as dificuldades e frustra- ções envolvidas na tentativa de investigar e propor melhorias neste meu processo de implantação de bolsa, considerando a possibilidade de que tenham ocorrido problemas relativos ao meu uso do nome social em meus registros acadêmicos, de maneira a ima- ginar abordagens mais interseccionais e sensíveis em resposta a eventuais problemas similares no uso de nomes sociais no âmbito da comunidade universitária.

Em março de 2014, foi publicado, pelo programa de Pós-graduação de que faço parte, o resultado final de seleção de pessoas bolsistas no qual eu estava incluída, seleção dedicada a pessoas que haviam iniciado no programa no ano de 2013. Após um ano de incertezas econômicas e de apoio familiar, a bolsa de mestrado representava um recurso importante para mim, levando-me a tentar providenciar os documentos necessários prontamente. Infelizmente, devido a questões relativas à minha matrícula e à abertura de conta em uma instituição financeira, somente tive a documentação completa em meados de abril. No final deste mês, confirmei se tudo estaria correto para a implantação da bolsa, obtendo respostas positivas tanto da Pró-Reitoria de Ensino de Pós-Graduação (PROPG) – referente aos documentos solicitados – quanto da coordenação do programa a que estou vinculada – referente ao cadastro no sistema Sucupira, necessário para a implantação das bolsas.

deste financiamento acadêmico. Apesar de ter obtido a informação de que as bolsas costumam ser transferidas no início do mês, esperei ainda alguns dias para confirmar se tudo estava regular, por imaginar algum atraso relativo à greve de servidores das Instituições Federais de Ensino Superior que então ocorria. Até que, no dia 14 de maio de 2014, uma quarta-feira, resolvi contatar a coordenação do curso novamente:

Gostaria somente de perguntar se as bolsas das novas pessoas bolsis- tas já saiu. . . é que, conversando com algumas colegas, o pagamento sai logo no início do mês.

E, como a minha ainda não saiu, somente quis verificar se houve alguma questão, e – se sim – se seria algo geral ou individual. . .

Duas respostas chegam a mim, neste mesmo dia, por parte da coordenação: “Vc entregou o certificado de matrícula, como combinamos?”, e “Outra questão. Vc está cadastrada como Douglas e não como Viviane. Estarei na Secretaria do Programa na sexta a tarde”. Tendo feito a entrega do certificado de matrícula na PROPG anterior- mente, respondi-lhe no dia seguinte que já havia feito o combinado, e perguntei-lhe se na sexta-feira poderíamos conversar. Desencontramo-nos nesta sexta-feira, mas em uma conversa informal feita neste mesmo dia com outras pessoas, levantou-se a hipótese de que meu nome social teria sido a causa do problema na implantação de minha bolsa.

No domingo (18), envio mensagem à coordenação, buscando confirmar as informações. No dia seguinte, recebo a resposta de que a bolsa estaria implantada, e que teria(m) sido meu(s) nome(s) a razão dos problemas ocorridos no processo. Em uma conversa informal pouco antes de meu exame de qualificação e de um evento denominado ‘Descolonizando Identidades de Gênero’ em que eu seria uma das pessoas participantes7, o coordenador me repreende, dizendo que eu deveria ter sido

mais ágil nesta implantação de bolsa e na notificação do atraso, e que por pouco eu não perdi o acesso a este financiamento.

Sentindo-me culpabilizada pela situação e preocupada com a possibilidade de que este atraso e potencial perda de financiamento estivessem relacionados com a precariedade e insensibilidade institucional no trato com pessoas trans, decidi enviar uma mensagem ao Colegiado do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da UFBA (Pós-Cultura), relatando a situação e sugerindo um possível caminho de apurações do ocorrido. Se, como hipotetizou o então coordenador do curso, haveria a possibilidade de que meu nome social (que, enfatize-se, figurava junto a meu nome de registro, este em parênteses, em minha matrícula) tenha sido 7 Esta mesa, extremamente importante no processo de minha formação, foi realizada a partir de uma

ação conjunta do ‘UFBA em Paralaxe’, programa da Pró-Reitoria de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil (PROAE), e do ‘Chá da Diversidade’, um evento do Grupo Gay das Residências (GGR) juntamente ao coletivo Kiu! e ao grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade (CuS).

um elemento para os problemas de implantação que quase me fizeram perder a bolsa, me parecia importante que fosse minimamente investigado o que aconteceu neste processo, de maneira a garantir e se aproximar da equidade no acesso a recursos por parte de pessoas trans, por exemplo, que utilizem seus nomes sociais no âmbito da universidade e sejam parte de projetos de pesquisa. Então, no dia 24 de maio, enviei o seguinte:

Olá a todas pessoas,

Gostaria, mui brevemente, de requisitar a inclusão de uma pauta para a próxima reunião do Colegiado: uma apuração a respeito da implan- tação de minha bolsa CAPES, ocorrida (segundo fui informada pelo coordenador do Pós-Cultura) há alguns dias, neste mês de maio. Com o objetivo de contribuir para a agilidade deste processo, quero sugerir um possível roteiro de encaminhamentos a este Colegiado:

1) Requisitar informações detalhadas sobre o processo de implantação de minha bolsa a todas esferas institucionais pertinentes (coordenação do Pós-Cultura, NEPG, etc.), enviando-as assim que disponíveis às pessoas envolvidas (incluindo-se a mim, entre elas).

2) Analisar os fatos, com particular atenção em relação às especifici- dades de minha inserção como pessoa trans* – o quanto é efetivo o reconhecimento de meu nome social, por exemplo, e se sua utilização levou a problemas no processo de implantação da bolsa.

3) Elaborar um parecer sobre o ocorrido, com um posicionamento for- mulado a partir de uma análise crítica acerca de como a Universidade Federal da Bahia vem promovendo (ou não) “a equidade na sociedade” e está combatendo (ou não) “todas as formas de intolerância e discrimi- nação decorrentes de diferenças sociais, raciais, étnicas, religiosas, de gênero e orientação sexual” (Estatuto da UFBA), seja em termos gerais, seja neste caso em particular, que afetou diretamente minhas possibili- dades econômicas de permanência neste curso de pós-graduação. De como este meu caso particular está (ou não) situado em um contexto de transfobia/cissexismo institucionais, o que inclui verificar a incompetên- cia e-ou despreparo (ou não) de instâncias administrativas e do corpo docente para se relacionar com pessoas trans*, caso a especificidade de minha vivência trans* (como a assunção de um nome social) tenha sido elemento de entrave ao meu acesso à bolsa CAPES.

Acredito que este processo possa ser bastante frutífero, no sentido de avaliarmos e repensarmos as estruturas burocráticas desta universi- dade, propondo, se necessário, mudanças que a tornem efetivamente um espaço de promoção de equidade.

Abaixo, elenco alguns detalhes sobre o processo, já me colocando à disposição para dirimir quaisquer dúvidas que possam surgir.

Considerando que:

1) O resultado final com a relação das pessoas bolsistas foi divulgado em 17 de março de 2014 (ver: http://bit.ly/resultadobolsavet14 ); e que: 2) Ao final de março, consegui, com o auxílio da coordenação do pro- grama, normalizar minha matrícula no semestre 2014.1, sendo que meu comprovante de matrícula foi entregue no dia 7 de abril de 2014 no NEPG.

implantada já a partir do mês de abril, inclusive estando prestes a ser cancelada e repassada a outra pessoa. Segundo o coordenador do Pós-Cultura, isto se deveu à ’divergência’ entre meu nome social (viviane) e meu nome de registro, ’divergência’ que teria levado ao quase arquivamento da implantação de minha bolsa.

Partindo da compreensão de que meu nome social é legítimo – e, inclu- sive, reconhecido em minha matrícula no Pós-Cultura –, e que minha documentação foi entregue corretamente e a tempo da implantação no mês de abril, interpreto que o ocorrido é não só extremamente preocu- pante, mas também um reflexo da transfobia/cissexismo institucionais nesta universidade, incapaz de se relacionar satisfatoriamente com uma pessoa trans* em seu corpo discente.

É importante destacar que, agora, para além das microagressões por que já passei neste programa, também o meu acesso a recursos econô- micos foi comprometido. Este não é um detalhe, considerando-se as exclusões a que são submetidas as vivências trans* nos cistemas edu- cacionais e de trabalho.

Aguardo ansiosamente por uma oportunidade de ser melhor informada a respeito dos problemas ocorridos neste processo.

Após dois dias de seu envio, apenas uma pessoa integrante do colegiado havia respondido a mensagem, apoiando a inclusão do que propus na pauta da reunião. Envio, então, uma outra mensagem, após outros dois dias sem outra resposta:

Considerando-se a única resposta obtida até o momento, devo consi- derar que este Colegiado aceita a inclusão deste questionamento (nos termos por mim colocados) na pauta da próxima reunião?

Fiquei realmente em dúvida, por isso a pergunta. Muito obrigada, sinceramente, pela atenção.

A esta mensagem, responderam outras 3 pessoas em meu apoio. Entretanto, no dia 7 de junho recebo um e-mail com a pauta da “Reunião Ordinária do Colegiado” a ser realizada no dia 9 – dali a dois dias. Não estava incluída minha demanda, neste documento, algo que me frustrou bastante e me fez responder a este e-mail, então, com o seguinte:

Gostaria, conforme prévia conversa por email, de solicitar que a discus- são sobre a situação de minha bolsa capes seja incluída na pauta desta reunião do colegiado.

de maneira resumida, trata-se da demanda por uma apuração sobre os problemas relacionados à possível observância indevida de meu nome social, o que acarretou em atraso no recebimento da bolsa.

obrigada.

Um professor do programa oferece seu apoio à minha demanda, enfatizando que minha solicitação havia sido enviada com bastante antecedência. E então, no dia 9 de junho, realiza-se a reunião do colegiado, e em dado momento sou convocada

a expor o ocorrido em relação à implantação da bolsa. Ao apresentar as questões e demandas de apuração na linha do que fora mencionado na mensagem do dia 24 de maio (apesar de todo nervosismo que envolve este tipo de apresentação, para mim), deparo-me então com alguns posicionamentos cuja (falta de) criticidade me incomodou profundamente, no sentido de minimizar ou ignorar a possibilidade de que meu nome social tenha sido a causa para a implantação da bolsa não somente atrasar, mas quase impedir meu acesso ao financiamento – algo que, em minha compreensão, caracterizaria uma instância de transfobia e cissexismo institucional, demandando ações de conscientização e definição de procedimentos sensíveis à população trans e gênero-diversa. Trago, de memória, alguns exemplos das respostas em relação às minhas demandas:

Resposta 1: Acredito que o problema com as bolsas se deveu à greve dos servidores. Veja só, outros alunos também tiveram problemas na implantação da bolsa.

Resposta 2: Você já não está recebendo a bolsa? Deixe isso para lá. . .

Resposta 3: Veja bem, nem sempre é o que pensamos: eu, por exemplo, já passei por situações em que imaginei ter sido discriminada por minha sexualidade, porém notei que não tinha sido este o motivo da situação. As pessoas têm dias ruins, nem sempre se trata de discriminação pelo que somos.

Apesar das argumentações em sentido contrário, insisti na necessidade de apu- ração do caso especialmente pela sua possível contribuição à melhoria de processos administrativos em relação a pessoas trans (como, entre outros elementos, a imple- mentação do nome social na universidade, ainda em discussão), e ao final da reunião ficou decidido que o coordenador do curso prepararia um relatório sobre o ocorrido. Considerei que, com este documento em mãos, pudesse questionar individualmente outras instâncias, como a PROPG, de maneira melhor fundamentada e com maior respaldo institucional. E então, após um recesso de copa do mundo e mais alguns dias, retiro o relatório no dia 7 de agosto de 2014. Nele, há somente um parágrafo que guarda relação mais direta com a potencial situação de transfobia institucional – no caso, o uso de meu nome social ter sido um eventual empecilho à implantação da bolsa:

Pelo que pude entender, a base de dados Capes opera com CPF e nela consta o nome de Douglas Takeshi Simakawa. Creio que o mesmo ocorre com a conta bancária da mestranda. Como alguns documentos foram entregues posteriormente, em período em que os funcionários responsáveis pela implantação das bolsas no sistema estavam em greve, os documentos não foram juntados e a documentação de Viviane estava incompleta, aguardando o fim da greve para solução.

problema não foi com meu nome. E assim seguimos.