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A CASA E O BAIRRO: MORAR EM UMA CIDADE GLOBAL Quando emigraram, os sujeitos desta pesquisa, mesmo que em

O CONTEXTO: A CIDADE DE AMSTERDÃ

2. IMIGRAÇÃO E ALIMENTAÇÃO EM UM CONTEXTO GLOBAL: DESTERRITORIALIZAÇÃO DE HÁBITOS E

2.1. A CASA E O BAIRRO: MORAR EM UMA CIDADE GLOBAL Quando emigraram, os sujeitos desta pesquisa, mesmo que em

forma de esboço, traçaram seus projetos de vida para o novo país. Tais projetos abarcaram expectativas com relação a este ambiente, já que emigrar ainda significa transformações em suas histórias de vida. Mas tanto projetos migratórios como as expectativas que deles decorrem estão condicionados às particularidades do deslocamento e também àquelas relativas ao destino migratório. Nessa perspectiva, não só as motivações que desencadeiam o movimento, mas outros fatores também exercem influência: idade, camada social, condições financeiras, capital cultural, se o movimento é individual ou inclui outros membros da família ou grupo. Além disso, também devem ser considerados aspectos do destino migratório. No caso de Amsterdã, e tomando como parâmetro as ponderações dos imigrantes entrevistados, possibilidades de trabalho e renda, educação, meio ambiente, aspectos culturais são alguns dos fatores apontados para que a cidade se tenha transformado no país de destino destes indivíduos.

Nessa capital, comparativamente a demais cidades nos arredores e mesmo em outros países europeus, os valores de aluguéis são considerados elevados, particularmente para quem ainda não tem uma fonte de renda compatível com a manutenção de uma residência em sua totalidade. Por essa razão, é bastante usual alugar um imóvel com outros imigrantes ou então alugar quartos em residências, cujo locador pode ser um local ou então um outro imigrante, em geral, estabelecido há mais tempo nessa capital.

Dos sujeitos que chegaram em período mais recente a Amsterdã, a busca de habitação é feita principalmente através da Internet, em grupos do Facebook e também em outros sites que oferecem este tipo de serviço de maneira informal. Dessa maneira, as tratativas são feitas diretamente com o locador, o que pode ser vantajoso, principalmente para quem não tem previsão exata do período de residência ou está em situação temporária. Essas residências podem ser compartilhadas por imigrantes de igual nacionalidade (por exemplo, dois entre os que entrevistei moravam numa mesma casa com outros quatro brasileiros), como também por indivíduos de origens diversas.

apresentam particularidades com relação a outras áreas da cidade com número significativo de imigrantes e também especificidades no que concerne às variações das condições de vida desses sujeitos em Amsterdã. A descrição desses ambientes tem como fim fornecer um pequeno esboço de como algumas imigrações se configuram no espaço dessa cidade, uma vez que esta é uma área que também concentra uma população migratória expressiva.

A casa está localizada na parte leste da cidade, em Osdorp-

Midden, considerado um dos subúrbios de Amsterdã. Esse bairro

recebeu uma grande parcela de imigrantes nas décadas de 1980 e 1990, sobretudo de marroquinos, mas também turcos e surinameses. Esse movimento para o bairro foi estimulado pelo envelhecimento da população e por uma saída de pessoas em melhores condições financeiras, principalmente famílias jovens com crianças que buscaram habitações suburbanas novas e mais confortáveis fora da cidade (OSTENDORF e FORTIJN, 2006).

Osdorp-Midden é uma mistura de edificações de baixo, médio e

alto porte e foi construído em meados dos anos setenta. O planejamento de sua construção fez parte do Algemeen Uitbreidingsplan voor

Amsterdam (AUP, Plano Geral de Extensão de Amesterdã), datado de

1935. O AUP consistiu em um plano de construção urbana contendo diretivas globais para a extensão de Amsterdã até o ano 2000, abarcando uma estrutura com design espaçoso, áreas verdes e uma separação clara entre as suas diferentes funções, tais como habitação, transporte e comércio. Nesta última década, foi implementado um programa de renovação urbana dessa área da cidade69 (OSTENDORF e FORTIJN, 2006).

Diferente sobretudo da região central de Amsterdã, a construção de blocos de habitação é baseada na repetição, ou seja, os diferentes tipos de blocos são copiados várias vezes, resultando em um design bastante monótono. É um bairro essencialmente residencial, com poucas ruas, mas com lojas e serviços que têm crescido significativamente nos últimos dez anos. Na parte central do bairro, há um centro comercial

69 Baseado no Grote Steden Beleid (política grande das cidades), um programa

provido de algumas das principais cadeias de varejo holandesas como Hema e C&A, bancos, comércios em geral e também uma sede do

Gemeente (órgão institucional do município que centraliza diferentes

serviços burocráticos, incluindo o atendimento e registro de imigrantes na cidade). A distância até o centro da cidade corresponde a cerca de dez quilômetros. Duas linhas de bonde servem o bairro, possibilitando chegar diretamente em duas das principais estações de trem da cidade, a

Slotervaart e a Estação Central.

Conforme explicam Ostendorf e Fortijn (2006), os rendimentos dos moradores daquele bairro é baixo, comparativamente a outras áreas da cidade. Haveria uma grande parcela de casas sociais70, uma alta proporção de residentes vivendo por meio benefícios sociais e muitas famílias recebendo subsídios de aluguel. No entanto, esta situação deve ser compreendida levando-se em consideração o contexto de bem-estar do Estado holandês.

A casa está situada em uma pequena e silenciosa rua, com muito pouca circulação de carros ou motos. Sua localização está distante cerca de 350 metros do ponto de bonde mais próximo, 300 metros de dois supermercados, assim como de padaria e farmácia. Do centro comercial do bairro, onde estão os bancos, o Gemeente, comércios em geral e uma feira de rua que ocorre às quartas-feiras, mobilizando o consumo de muitos moradores, dista cerca de 700 metros.

Logo após a entrada da casa, havia um pequeno corredor com acesso às partes superior e inferior do imóvel. Na parte esquerda desse corredor, uma porta dava acesso a um lavabo. Na parte direita, ganhava destaque um armário que servia de suporte a um aquário relativamente grande, abrigando diversos peixes da mesma espécie. Ao lado do aquário, duas pequenas estátuas de santas, um minúsculo recipiente de metal com duas moedas e uma vela permanentemente acesa compunham a imagem de um pequeno altar.

Ao adentrar à sala, chamavam a atenção as inúmeras plantas

70 Habitações que integram programas de habitação social (de iniciativa pública e privada), cuja prioridade é proporcionar acesso à habitação às camadas da população mais carentes, em particular por condicionantes de ordem financeira. Por essas razões, o valor do aluguel dessas habitações é bastante inferior com relação aos alugueis de imóveis de padrão equivalente no país.

espalhadas pelo ambiente se estendendo até a área externa do pátio, para o qual uma enorme janela de vidro permitia vislumbrar um jardim repleto de vários vasos de flores, cuidadosamente organizados desde o chão até ao longo das divisórias em madeira que delimitavam aquele espaço com relação às residências do entorno. Jardinagem é o hobby de Lys, a locadora, que atribui à grande valorização dada a essa atividade no país como uma das principais motivações para a sua permanência na Holanda.

A sala integrava um espaço contíguo à cozinha. Nas paredes, memórias da história de vida de Lys: um retrato dela vestida com a toga na sua formatura em Direito, outro em tamanho bem maior (30x40 cm) do período que se tornou cidadã holandesa, um quadro de paisagem pintado por uma de suas ex-inquilinas e um desenho em cartão-postal retratando três gerações de mulheres; uma senhora trançando o cabelo de uma mulher mais jovem e esta trançava o cabelo de uma adolescente. No único armário da sala, onde predominavam livros, era possível identificar de longe algumas fotografias: a de sua mãe e outra do irmão. No canto da sala próximo ao jardim, um pilar sustentava a maior planta ali presente, uma peça quase minúscula de cerâmica em forma de tartaruga, que considera um amuleto, e ainda um pequeno recipiente com incenso.

Aquele ambiente não apenas retratava parte da história de Lys, como também era o local onde passava a maior parte do tempo quando estava em casa. O sofá era um território ocupado quase sempre por ela e Apolo, seu cachorro e companheiro inseparável até nas ocasiões em que saía de casa, com exceção dos compromissos de trabalho. Era naquele ambiente que passava grande parte do tempo preenchendo formulários pela internet em busca de emprego e era também onde assistia seus programas de televisão prediletos ou recebia eventualmente amigos.

Afora o sofá e algumas poucas cadeiras, uma bicicleta ergométrica, de modelo desatualizado (nunca utilizada durante o período de minha residência no local), um frigobar (que eu compartilhava com outra moradora) e uma mesa de refeições para cerca de seis pessoas preenchiam aquele espaço que funcionava também quase como uma extensão da cozinha. Esta, embora relativamente espaçosa, comportava

apenas itens básicos como o fogão com forno71, o micro-ondas e armários. Um deles mantinha os itens para cozinhar (panelas e talheres) e também as louças. O outro, alojado acima da pia, continha várias divisórias onde guardávamos nossos mantimentos. Neste local, as plantas também tinham presença. Vasos contendo alguns temperos (manjericão, salsa e alecrim) ornamentavam o beiral da janela que dava visibilidade para a área externa, relativa à rua defronte à casa.

Na parte superior, estavam localizados os dormitórios e um banheiro que, além da máquina de lavar roupas (local bastante usual de colocar este equipamento na Holanda), também incluía uma banheira. Neste primeiro andar, havia três dormitórios; o meu e o de outras duas moradoras. Num andar mais acima, o único aposento existente era o dormitório de Lys.