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IMIGRAÇÃO, CONSUMO ALIMENTAR E MEDIAÇÃO TECNOLÓGICA

O CONTEXTO: A CIDADE DE AMSTERDÃ

3. ALIMENTAÇÃO E COMUNICAÇÃO DE IMIGRANTES EM MEIO À ACELERAÇÃO DOS FLUXOS GLOBAIS

3.1. IMIGRAÇÃO, CONSUMO ALIMENTAR E MEDIAÇÃO TECNOLÓGICA

As tecnologias da informação e da comunicação vêm mudando a maneira pela qual nos relacionamos com o mundo ao nosso redor. A noção de aldeia global (MCLUHAN, 2001) é uma metáfora talvez mais do que nunca cabível para interpretar o cenário contemporâneo de comunicação em escala planetária e em tempo real. Ao mesmo tempo em que provocam redimensionamentos espaço-temporais, através do

rompimento de barreiras espaciais e encurtamento das distâncias, de tal maneira que "os horizontes temporais se reduzem a um ponto em que só́ existe no presente" (HARVEY, 2004: p. 219-220), essas tecnologias vêm contribuindo para configurar aspectos de transnacionalidade relacionados aos deslocamentos humanos.

Nesse cenário, as tecnologias da comunicação vêm exercendo um papel cada vez mais expressivo na maneira pela qual muitos indivíduos vêm gerindo suas práticas alimentares em condição migratória. Onde encontrar determinados produtos alimentares, como reproduzir algumas receitas, onde comer certas comidas, quais trajetos percorrer a fim de encontrar comércios específicos de alimentos, quais os valores nutritivos de alguns produtos alimentares. Essas foram algumas das questões relacionadas à alimentação relatadas por imigrantes em Amsterdã, recorrentes em seu cotidiano, para as quais, a utilização das tecnologias da comunicação foi considerada um fator-chave, possibilitando gerenciarem sua alimentação com maior autonomia, sobretudo para aqueles indivíduos que estavam em uma etapa de permanência mais recente na cidade.

Certamente, para se avaliar em que medida e como essas tecnologias ressoam nestes deslocamentos, há que se considerar o contexto migratório, bem como o acesso a essas tecnologias por parte destes indivíduos. Portanto, é importante mencionar que todos os imigrantes entrevistados mantinham acesso regular à internet, principalmente, através de aparelhos de telefonia móvel e computadores pessoais. Em Amsterdã, a exemplo de outros países desenvolvidos, o acesso à rede sem fio é bastante facilitado. Pode-se, por exemplo, comprar um cartão pré-pago para um aparelho móvel, destinado somente ao acesso à internet por um valor considerado relativamente baixo (cerca de 10 euros a recarga mensal). Além disso, muitos estabelecimentos públicos como supermercados, redes de comida rápida, restaurantes, cafés, lojas, museus, ônibus, entre outros locais, disponibilizam a rede sem fio de forma gratuita em seus recintos.

Quando conversei com os imigrantes, principalmente os que haviam chegado a Amsterdã num período mais recente e que, portanto, ainda estavam buscando se familiarizar com o ambiente da cidade,

foram feitas referências a sites da internet como Google Maps92,

Facebook93, blogs94, assim como a aplicativos para aparelhos móveis95 e mesmo algumas outras páginas da internet contendo informações diversas a respeito da cidade, incluindo as relativas à sua paisagem alimentar, como aquelas citadas acima. Para alguns destes indivíduos, a busca dessas informações ocorreu até mesmo antes de emigrarem para Amsterdã, o que contribuiu inclusive para a configuração de seus projetos migratórios na cidade.

Segundo o relato de Débora (24 anos), enquanto ainda avaliava a possibilidade de emigrar do Brasil para a Holanda, as informações que obteve na Internet, particularmente através de blogs de brasileiros que moram naquele país, como o Ducs Amsterdã96, não somente colaboraram para que fomentasse expectativas positivas com relação ao seu projeto migratório, mas foram decisivas para posterior estabelecimento e sua melhor localização na cidade. Essas informações incluíam desde aspectos culturais da Holanda (comida e hábitos alimentares), peculiaridades sobre modos de vida em Amsterdã e um

92 Google Maps é um serviço de pesquisa de rotas, visualização de mapas e imagens de satélite da Terra gratuito na web e também acessível na forma de aplicativo (app). cf. nota 53. Disponível em: https://www.google.com.br/maps Acesso em fevereiro/2017.

93 O Facebook é uma rede social que possibilita trocar e compartilhar mensagens, links, vídeos e fotografias.

94 Blogs são páginas da internet individuais ou institucionais, destinadas a explorar um determinado tema, o que inclui a disseminação de ideias, informações, através de textos, imagens e/ou vídeos.

95 Também conhecidos por app, os aplicativos consistem em softwares desenvolvidos para dispositivos móveis como os smartphones, cujas funções e informações acessíveis variam, abrangendo os mais diferentes temas. Em Amsterdã, por exemplo, os órgãos oficiais disponibilizam o app do transporte público da cidade de maneira gratuita, através do seu site, com o mapa completo e interativo da rede de bondes de Amsterdã (9292), incluindo horários, tarifas estimadas, etc. Disponível em http://www.iamsterdam.com/en/visiting/plan- your-trip/getting-around/public-transport/tram. Acesso em: fevereiro/2017. 96 Disponível em: http://www.ducsAmsterdã.net Acesso em Julho/2016.

universo de outras questões envolvendo desde a utilização dos meios de transporte na cidade até referências a respeito de comércios onde poderia comprar alimentos do Brasil.

No que se refere especificamente à alimentação, a internet e as tecnologias também vêm redimensionando a maneira pela qual estes imigrantes lidam com suas práticas cotidianas nesta esfera. E esse redimensionamento tem relação com aceder a informações que possibilitem dar continuidade a hábitos relacionados ao país de origem, mas também às que permitam reconfigurar sua alimentação tirando melhor proveito daquele contexto alimentar, o que inclui a incorporação de novos hábitos.

No caso da paisagem alimentar de Amsterdã, cabe lembrar que os eventos especiais ou feiras voltados à alimentação têm sua programação divulgada principalmente através das redes sociais, como o Facebook. Dessa forma, ainda é possibilitado que os indivíduos se mantenham atualizados a respeito de notícias envolvendo o planejamento de tais eventos (quais serviços serão oferecidos, programação cultural, vídeos e imagens de edições anteriores, etc.).

A utilização da internet como meio de localização em meio à paisagem alimentar da cidade engloba também buscar informações sobre onde encontrar determinados comércios ou produtos e, portanto, como possibilidade destes indivíduos estabelecerem os trajetos a serem empreendidos visando o consumo alimentar. Além disso, alguns desses indivíduos mencionaram a sua utilização para a busca de receitas de comidas e particularmente informações relativas a dietas e ao consumo de algum alimento em particular (ver capítulo 4).

Afora o que foi mencionado anteriormente a respeito dos ajustes nas suas práticas alimentares depois de emigrarem, gerir a alimentação nos Países Baixos, também envolve ter de lidar com noções mínimas do idioma holandês. Apesar de grande parte da população na cidade dominar o inglês, jornais, programas de televisão, revistas e cardápios, em geral, são configurados em holandês. O mesmo pode-se dizer a respeito dos rótulos da maioria das comidas vendidas nos supermercados, sobretudo no Albert Heijn, a principal cadeia de supermercados da Holanda.

Ao narrar suas primeiras experiências em Amsterdã, ocorridas há dezesseis anos atrás, Lys ressaltou o quanto a falta de domínio do

idioma holandês implicou a superação de desafios ao lidar com a alimentação:

A surpresa era o idioma, poder ler os rótulos das comidas. Muitas vezes aconteceu de eu trazer coisas para casa que eram totalmente diferentes do que eu tinha pensado que eram quando comprei […]. Aí chegava em casa e pensava não é o que eu precisava, o que eu havia pensado. Isso era meio frustrante […]. No início, eu tentava seguir minha dieta comum, mas o fato de que você não pode ler o rótulo dos produtos, você tem um problema a mais […]. Você sai em busca de um produto específico porque você quer fazer uma determinada coisa, você olha o rótulo e diz: ah, é isso! Mas quando você vê em casa alguma coisa diferente. Isso faz muito tempo (eu tô aqui há 17 anos) (sic.). Então este é um desafio. Eu penso que se você não consegue ler os rótulos ainda é um grande problema para a sua nutrição. Essa questão dos rótulos hoje pode ser resolvida através de um aparelho de telefone com acesso à internet que viabilize a tradução necessária. Foi um recurso indicado por imigrantes, do qual eu fiz uso algumas vezes, durante minha permanência na cidade. Além de viabilizar o acesso a outras informações nos rótulos, esse recurso é especialmente válido com relação a itens, cuja similaridade de embalagens dificulta a identificação exata do produto como, por exemplo, se a farinha é com ou sem fermento, se o produto é fermento ou um melhorador de massa, e mesmo sucos ou produtos à base de leite. Vale mencionar que as principais redes de supermercado - Albert Heijn e

Jumbo – oferecem rede de internet sem fio gratuita aos seus clientes,

proporcionando, portanto, que se possa recorrer a essa modalidade de recurso informativo, caso não seja viável de outra maneira.

Outro exemplo de como imigrantes têm feito uso das tecnologias da comunicação para resolver questões relativas à sua alimentação naquele país é o site da internet Brasileiros na Holanda97 e também sua

97 Disponível em: http://www.brasileirosnaholanda.com/novo/index.php Acesso em Outubro/2016.

página correspondente no Facebook, ambos direcionados a atender a imigração brasileira no país. Citados por mais de uma imigrante como referências informativas utilizadas regularmente, a observação dessas páginas possibilita compreender tanto aspectos sobre o que vem configurando as migrações transnacionais hoje, como o modo pelo qual as tecnologias da comunicação vêm sendo apropriadas por imigrantes no intuito de gerenciarem sua alimentação no contexto daquela cidade, com a vantagem de serem escritos no idioma do seu público preferencial.

O site atua como portal que abriga uma série de notícias, artigos, informativos, todos buscando cobrir um amplo espectro de assuntos de interesse da comunidade brasileira em território holandês. É possível encontrar uma gama de informações sobre temas diversos relativos à imigração, desde questões burocráticas ligadas ao movimento migratório até relatos de brasileiros sobre suas experiências e cotidiano no país. Há também classificados, fórum de discussão, indicações relativas a eventos, órgãos oficiais, ofertas culturais na cidade ou país, assim como informações a respeito de comércios ou serviços relativos à alimentação para brasileiros. Isso inclui endereços das lojas com produtos alimentares do Brasil, restaurantes, cafés ou mesmo serviços de encomenda de doces e salgados. O site ainda oferece um link de direcionamento ao grupo com mesmo nome e finalidade no Facebook, onde, além de dados de mesma natureza, o público ainda pode estabelecer certa comunicação e trocar experiências, opiniões e informações envolvendo sua condição migratória.

No caso da página correspondente no Facebook, é interessante mencionar que entre os diferentes assuntos que motivam as postagens, também está presente a alimentação98. Em uma dessas postagens, por exemplo, é possível observar uma intensa troca de informações entre imigrantes provenientes de diferentes regiões do Brasil (cerca de 400 comentários feitos em um período de dois meses). Esta e outras postagens englobam questões e informações a respeito da identificação de produtos a partir de seus rótulos em holandês (fermentos, queijos, etc.), quais peixes corresponderiam a alguns consumidos no Brasil para

98 Também cabe fazer referência a grupos no Facebook, em especial o Brasileiros na Holanda, que também abarca uma série de informações, relatos e comunicações sobre diferentes aspectos da vida na Holanda e em Amsterdã.

o preparo de certos pratos, onde encontrar produtos brasileiros e, no caso da ausência destes, alternativas para substituição a partir de produtos locais ou mesmo originários de países para abastecerem outros grupos migratórios, como é o exemplo do requeijão, mencionado por um dos imigrantes brasileiros durante a entrevista, inexistente entre as ofertas locais, embora seja possível encontrar um produto similar nos mercados turcos. Além do que foi elencado, as postagens ainda divulgam novos serviços relativos a comidas brasileiras na Holanda, alertam sobre ofertas de produtos brasileiros em supermercados em Amsterdã e também incluem receitas, imagens de produtos ou ainda breves relatos de como alguns desses indivíduos enfrentam ou solucionam questões cotidianas ligadas à alimentação na cidade.

Sob o ponto de vista da comida, consideramos que um dos pontos relevantes para se pensar sobre a dinâmica global dos fluxos informacionais e seu papel nas migrações internacionais vigentes tem relação sobretudo com noções de autonomia associadas à maneira de indivíduos gerirem seus estilos de vida. Em épocas anteriores, dependia- se principalmente de redes sociais de outra natureza (familiares, amigos) já estabelecidas no país de destino para que se viabilizassem de maneira mais ágil práticas cotidianas incluindo as alimentares (o acesso a certos comércios ou serviços, por exemplo). Tais redes muitas vezes eram determinantes inclusive no que tange à implementação de projetos migratórios, já que muitas migrações somente se configuraram porque estas já estavam estabelecidas no países de destino. Através dessas redes,é facilitada sobretudo a circulação de informações e o compartilhamento de experiências, conectando lugares de origem e de destino, mas também tornando possível a recriação de espaços sociais a partir dos países de destino (MASSEY et. al 1993, TRUZZI, 2008).

Portanto, embora as redes sociais convencionais ainda hoje vigorem como determinantes para muitos movimentos migratórios, não se pode ignorar a emergência dessas outras redes estabelecidas a partir do universo virtual e seu impacto em vários aspectos dos deslocamentos migratórios. Além disso, os fluxos globais ligados à comunicação vêm ampliando o leque de possibilidades e proporcionando novas maneiras de se lidar com a alimentação em contexto migratório, o que também acaba ressoando na maneira destes indivíduos estabelecerem seus estilos de vida na cidade.

3.2. COMIDA, SOCIABILIDADE E CONEXÕES