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O CONTEXTO: A CIDADE DE AMSTERDÃ

1. PAISAGEM ALIMENTAR: INTERSECÇÕES ENTRE O GLOBAL E O LOCAL

1.5. COSMOPOLITISMOS, NEOFILIA E NEOFOBIA

A ideia de experimentar a diversidade cultural é parte do projeto migratório da maior parte dos sujeitos que integraram esta pesquisa. Essa mesma ideia também define o cosmopolita, nos termos de Hannerz (1990). Para este autor, o cosmopolita é o que vê a experiência da diversidade cultural como um valor em si mesmo. No que se refere aos imigrantes desta pesquisa, a diversidade cultural se confunde com o desejo pelo novo, passando ambos a serem valorizados como parte da

65 Como explica Fischler (1995), os alimentos que compõem um sistema culinário se classificam conforme diversas categorias que derivam de critérios de gosto (doce/salgado), forma, textura ou ainda de critérios culinários. As categorias alimentares estão ligadas a outras categorias, como por exemplo, o sistema médico tradicional. Nesta perspectiva, em muitas culturas os alimentos são classificados de acordo com suas propriedades medicinais e conforme o efeito que supostamente provocam no corpo e no indivíduo (quente, frio, úmido, seco, yin, yang). Cada cultura, portanto, determina no entorno o que é e o que não é alimento, assim como outras distinções e oposições (comestível/não- comestível, puro/impuro).

experiência migratória e contribuindo para que se constituam suas identidades cosmopolitas.

Em termos de alimentação, o desejo pelo novo não é necessariamente particular desta época, mas algo que inclusive integraria nossa condição de onívoros. Segundo Fischler (1995) e Rozin (1998), a tensão permanente entre a neofilia e a neofobia constitui o

Paradoxo do Onívoro. Isso significa que, ao mesmo tempo em que o ser

humano deve introduzir alimentos variados em sua dieta com a finalidade de satisfazer suas necessidades nutricionais, deve também enfrentar os perigos que podem advir de incorporar uma substância desconhecida.

No caso dos sujeitos em questão, o desejo pelo novo muitas vezes parece sobrepujar a neofobia (medo do novo). Mas é importante lembrar que, mesmo vivendo em contexto de muita diversidade, nem todos os imigrantes são cosmopolitas em seus gostos alimentares. A partir das narrativas já apresentadas, é possível constatar a existência de uma certa abertura ou mesmo disposição ao novo. Em contrapartida, o exemplo de Ana (30 anos), imigrante da Áustria, mostra como o novo pode se constituir em um desafio a ser enfrentado. Sua concepção de comida evoca a ideia de um combustível, algo que apenas lhe permita se "manter em movimento". Apesar de alinhar-se com os sujeitos cujo movimento migratório também recai em suas dimensões culturais, sua curiosidade de conhecer o mundo e não só "a minha parte do mundo", como ressalta, não é algo que engloba a alimentação:

Eu fico confusa no supermercado, tem muitas coisas e muitas coisas coloridas e eu fico muito estressada com isso […]. Para algumas pessoas, o supermercado é uma maravilha porque tem todas as escolhas. Para mim, não. Todas aquelas escolhas é algo muito confuso para mim. […] Não gosto de experimentar coisas diferentes. Eu tento encontrar uma coisa que eu gosto e acabo tentando repetir de novo, de novo e de novo […]. A neofobia, portanto, pode representar um dos aspectos desafiadores de se lidar em condição migratória. Entretanto, na conjuntura atual, onde a neofilia tem sido bastante estimulada sobretudo através das mídias (mediascape), a constituição de imaginários

cosmopolitas em torno da comida é cada vez mais favorecida. Nessa medida, talvez possa se considerar que não apenas a maior disposição individual ou abertura em direção a novos alimentos, mas a configuração de distintas paisagens em torno da comida, resultante dos atuais fluxos globais, vêm contribuindo progressivamente para que a

neofobia ganhe proeminência com relação à neofilia.

É fácil constatar que a proliferação dos imaginários referidos tem sido grandemente favorecida pelo mediascape atual e de diferentes maneiras. Em Amsterdã, por exemplo, a principal rede de supermercados holandesa, Albert Heijn, em sua revista semanal ou mesmo através de sua mala-direta via internet, são disponibilizadas várias receitas promovendo produtos relacionados às mais diversas culinárias. Lembra Wilk (2010) que cozinha é um importante negócio que mobiliza uma importante força econômica. Portanto, promover a neofilia, o desejo de experimentar novas sensações de gosto, através de uma variedade de cozinhas, é o principal meio de se ampliar um público consumidor66. Dessa forma, são criados mercados para ingredientes, aulas de culinária e também é fomentado o rápido crescimento da indústria do turismo alimentar.

Amsterdã, caracterizada por seu caráter global, transnacional e multiétnico, favorece cosmopolitismos através do consumo alimentar. Contudo, é importante lembrar que comer uma comida em particular não implica necessariamente que o indivíduo esteja engajado em alguma forma de cosmopolitismo. Na mesma linha de pensamento, comer a comida alheia não significa impreterivelmente empatia, tolerância ou envolvimento com o Outro. Se retomarmos a concepção de cosmopolitismo de Hannerz (1990), deve haver uma vontade ou disposição nesse sentido.

66 O autor ainda chama a atenção para o fato de que a indústria foodie e a imprensa voltada a esse mercado, enquanto na Europa e Estados Unidos estão bem estabelecidas, na Ásia, Europa oriental e América Latina vêm ganhando um crescimento vertiginoso (WILK, 2010).

Cabe chamar a atenção para o fato de que o atual crescimento do consumo de comida Halal 67em todo o mundo, expressivamente em países da Europa e Estados Unidos, não tem necessária relação com o aumento da população muçulmana nesses países. Além disso, esse crescimento ocorre em um movimento paralelo à expansão da islamofobia nesses mesmos países. Como observa Wilk (2010), mesmo em contextos multiétnicos, há limites que os indivíduos estão dispostas a tolerar, já que ao redor do mundo há inúmeras reações à globalização com xenofobia, rejeição, busca de pureza e autenticidade.

Na mesma concepção, Inda e Rosaldo (2002) também observam que os consumidores de produtos culturais estrangeiros não necessariamente internalizam os valores, ideologias ou estilos de vida supostamente contidos nesses produtos. Os autores ainda apontam para um "processo de imbricação mútua", ao sustentarem que o atual fluxo de mercadorias decorrente da globalização é de mão dupla, ou seja, assim como muitos ocidentais agora comem alimentos produzidos a partir de locais como a Ásia, eles simultaneamente desfrutam de suas próprias cozinhas. Além disso, como observa Warde (2010), mesmo que alimentos sejam vendidos em escala global são sempre filtrados por códigos simbólicos de determinados mercados culturais nacionais. Nessa perspectiva, em muitos países, a comida Halal pode ser concebida apenas como mais uma comida de consumo rápido e preço acessível.

Inevitavelmente, a experiência migratória envolve confrontar-se com a alteridade cultural, exigindo de modo frequente o desenvolvimento de meios alternativos de comunicação intercultural por parte dos indivíduos deslocados, no intuito de concretizarem suas idealizações em termos de estilos de vida em um outro país. Na casa onde residi em Amsterdã com outras moradoras, uma das estratégias de uma melhor interação com e a partir daquele novo ambiente e também de vivenciar a diversidade cultural que se oportunizava, consistia em nos reunirmos eventualmente para compartilhar uma refeição, onde em

67 Alimentos preparados de acordo com preceitos do Islamismo que envolvem diversas regras tanto relativas ao consumo da carne como o de vegetais e cereais. Isso inclui a forma de abate e alimentação do animal, formas de cultivo dos vegetais e cereais e mesmo de embalar os produtos.

algumas ocasiões, também estiveram presentes indivíduos de outras nacionalidades.

Na visão de Lyz (54 anos), conviver com imigrantes de diferentes origens sempre foi parte da sua história de vida em Amsterdã. Apesar de ter sido casada com um holandês durante cinco anos, seu círculo de amizades na cidade é quase inteiramente de imigrantes provenientes de diversos países, sobretudo da América do Sul. Mas a maneira pela qual configura suas relações sociais também atribui ao contexto da Holanda. Em sua concepção, apesar da fama de "mente aberta", os holandeses preferem ficar dentro de um círculo estreito de sociabilidade que envolva prioritariamente outros indivíduos locais. Quando perguntei se não convivia com jamaicanos, disse que, apesar de saber da presença de conterrâneos na cidade, era raro encontrá-los. Mia (37 anos), nascida na Holanda, tem uma visão semelhante a respeito dos holandeses e é um dos argumentos que utiliza para explicar o porquê de não se identificar com a "mentalidade holandesa". Em suas palavras, haveria um estereótipo relacionado aos holandeses, pois ainda que se apresentam ou se considerem um povo "muito aberto", só ficariam atrás dos japoneses em termos de ser fechados e refratários a novas interações sociais.

Levando em conta a ênfase no aspecto cultural do movimento migratório, a noção de cosmopolitismo banal (BECK, 2001) também é útil para se refletir a respeito de como práticas cotidianas, como as alimentares, ainda refletem a globalidade. Nessa concepção, a partir de tais práticas, os sujeitos se vêem integrados em uma dinâmica de processos e fenômenos globais a tal ponto que o nacionalismo cotidiano se esvazia e passa despercebido68. Na mesma linha de pensamento, Johnston, Baumann e Cairns (2009), argumentam que, de modo similar ao nacionalismo, cosmopolitismo pode ser entendido não apenas como uma política filosófica abstrata, mas enquanto construção social formada pela banalidade dos atos e interações diários, incluindo o cozinhar e o comer.

68 Beck (2003) faz um contraponto à noção de nacionalismo banal de Billig (2002) baseada na tese de que a ideia de nação e de identidade nacional são estruturadas e renovadas por banalidades da vida diária.

A partir das considerações acima, é possível concluir que a comida atua como uma porta entreaberta, servindo de meio para se transitar por novas experiências, através de um caminho que permite idas e vindas. A maneira pela qual imigrantes se relacionam com os processos da globalização em Amsterdã, uma vez abarcando noções de cosmopolitismo, também reforça a tese de Hannerz (1990), segundo a qual, o cosmopolita pode abraçar a cultura estrangeira, mas ele não se torna necessariamente comprometido com tal condição, pois todo o tempo está ciente de onde é a saída.

2. IMIGRAÇÃO E ALIMENTAÇÃO EM UM CONTEXTO