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4.3 ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO (ADD) E CÍRCULO DE BAKHTIN

4.3.1 Bakhtin e sua Filosofia da (Meta)Linguagem

Mesmo uma breve e pontual mirada aos escritos de Bakhtin deixa patente que o autor não se voltou para os fenômenos linguísticos stricto sensu. Seu pensamento advogou uma disposição para a língua na sua integridade concreta e viva, argumentando que o discurso é constitutivamente dialógico e ideológico.

75 A notória coesão das obras do Círculo certamente é consequência de uma lucidez na apreciação dos acontecimentos da linguagem que se mantém invicta à impostura ou à negação de aspectos da ordem material/real das práticas discursivas. A tradição de enfocar puramente as relações lógico-formais da língua, como sistema de signos, parece ter suscitado no filósofo russo uma resposta centrada na heteroglossia dialogizada e axiologizada dos enunciados concretos, as unidades da comunicação discursiva.

Em Problemas da Poética de Dostoievski, no capítulo “O discurso em Dostoiévski”, para citar um exemplo, o autor pontua algumas questões metodológicas na análise do discurso romanesco que referenda seu posicionamento diante da linguagem:

Intitulamos este capítulo de “O discurso em Dostoiévski” porque temos em vista o discurso, ou seja, a língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como objeto específico da linguística, obtido por meio de uma abstração absolutamente legítima e necessária a alguns aspectos da vida concreta do discurso. Mas são justamente esses aspectos, abstraídos pela linguística, os que têm importância primordial para os nossos fins. Por este motivo, as nossas análises subsequentes não são linguísticas no sentido rigoroso do termo. Podem ser situadas na metalinguística, subtendendo-a como um estudo – ainda não-constituído em disciplinas particulares definidas – daqueles aspectos da vida do discurso que ultrapassam – de modo absolutamente legítimo – os limites da Linguística. (BAKHTIN, 2010, p. 207).

Assim, o Círculo de Bakhtin prima por um modus operandi que despreza a separação entre vida e linguagem. Nesse sentido, a vida seria uma sucessão de atos responsáveis, (multi) semiotizados, responsivos a atos (de) outros e carregados de avaliação social35 e sentidos axiológicos intersubjetivamente construídos. O filósofo, portanto, ao se interrogar sobre a realidade fundamental da língua, concebe uma abordagem contextual (i)mediata dos eventos discursivos, invariavelmente relacionados a enunciados antecessores e sucessores, caracterizando a índole dialógica, histórico- cultural, da linguagem.

A Metalinguística proposta por Bakhtin tem como objeto as relações dialógicas, inclusive as relações dialógicas do usuário com sua própria fala (BAKHTIN, 2010, p.

35“A avaliação social determina todos os aspectos do enunciado, penetrando-o por inteiro, porém, ela

76 208). Segundo o autor, o comportamento desse estudo em relação à Linguística deveria ser de deferência e de complementaridade, não se violando os limites de cada uma. Dessa maneira, ainda que Linguística e Metalinguística estudassem um mesmo fenômeno, complexo e multifacético, - o discurso - o tratariam sob diferentes aspectos e diferentes perspectivas. A Metalinguística possui, pois, objeto autônomo e metas próprias, não sendo subsidiária da Linguística. (cf. p. 207 – 209)

Importa ressaltar que as relações possíveis entre Linguística e Metalinguística, isto é, entre duas áreas que tem autonomia entre si, não depõem contra a distinção entre elas. Os pressupostos axiológicos, ontológicos, teóricos e metodológicos de uma e de outra autenticam a separação e permitem a cooperação entre essas “disciplinas”.

Esse par, Linguística e Metalinguística, a propósito, pode nos remeter a um outro, cuja variação se dá tão somente por um membro: Linguística e Linguística Aplicada (LA). Se Bakhtin discorre sobre a primeira dupla no sentido de definir o caráter de cada termo, a discussão entre domínios e fronteiras pertencentes à Linguística e/ou à LA não se afasta muito do esforço por definir essas áreas. É com essa reflexão que encontramos ensejo para promover um diálogo oportuno entre Metalinguística e LA, ou seja, entre os postulados do Círculo bakhtiniano e os que guarnecem a LA, no sentido de consolidar uma perspectiva que considere a linguagem como prática social.

As semelhanças entre os pares se acentua ainda mais quando temos em vista a arquitetônica da Metalinguística e da Linguística Aplicada. Ambas se constroem a serviço das vozes reais, concretas, materializadas em enunciados relativamente estáveis, os gêneros do discurso, provenientes dos mais diversificados campos da criação ideológica. Essas vozes/relações dialógicas sociais, matrizes de análises inscritas, por exemplo, em um programa de estudos da linguagem, são constitutivas da natureza do discurso e permitem acessar os sentidos históricos da cultura que gesta as interações verbais e verbo-visuais.

Bakhtin, em seu trabalho diligente sobre o que seria uma filosofia prima (no sentido Aristotélico, relativa ao ser humano), promove uma célebre discussão entre o mundo da cultura (ciência e arte) e o mundo da vida, aventando a impossibilidade de se ignorar as relações entre eles.

77 É fato que o trabalho do teórico foi notadamente voltado à Literatura, justamente pela sensibilidade da esfera artística ao representar a vida esteticamente. A ciência, alhures do mundo da vida, parecia provocar menos a energia do russo. Poderíamos deduzir, então, que o olhar bakhtiniano só pode ser dirigido a corpora literários? Essa questão abriga em si uma redução ingênua e débil. O próprio interesse pelo ser humano, social e histórico, invalida a restrição para a Literatura. Bakhtin foi um pensador do ato ético e, portanto, um estudioso sobre a contextura valorativa do viver. Assim sendo, admite-se o proveito e a contribuição de seu Círculo para quaisquer estudos que, situados nas Ciências Humanas, sejam instigados pelas relações dialógicas/vozes sociais e sua rede de atos éticos/estéticos.

É com esse entendimento que nos apropriamos do discurso do Círculo para compreendermos e interpretaremos o ato ético de abordar o anúncio/anunciar no livro didático de Português para o Ensino Médio. Refletindo e refratando palavras que ressoam um posicionamento face à linguagem, cuja afiliação é, por excelência, responsiva e responsável, compartilhamos o intuito da ausculta: “De minha parte, em todas as coisas, ouço as vozes e sua relação dialógica.” (BAKHTIN, 2003, p. 413).