• Nenhum resultado encontrado

Afamada é a tese de que definir a concepção de linguagem que orienta a pesquisa ou o trabalho afiliado a um programa de teorias e estudos linguísticos é condição sine qua non para se construir e cumprir um bom projeto. Na formação superior em Letras, uma tríade parece dar conta de condensar os mirantes a partir dos quais se pode enfocar a linguagem: i) como expressão do pensamento; ii) como instrumento de comunicação; e iii) como lugar de interação. Essa sequência costuma ser apresentada com seus itens dispostos em paralelo, criteriosamente, relevando-se as dessemelhanças, por assim dizer, nas maneiras de se perceber o(s) fenômeno(s) da linguagem e a envergadura dos postulados em que se assentam cada uma delas. Na pós- graduação, as concepções tendem a se ramificar de acordo com os pormenores das linhas teóricas estabelecidas.

A Linguagem, como substrato das ciências humanas, sociais e aplicadas, pode ser considerada um dos centros mais plásticos e fecundos para análises. A Linguística Aplicada, como área do conhecimento empenhada em criar inteligibilidade para problemáticas sociais de usos da linguagem, transita pela seara das ocorrências linguísticas situadas historicamente, depondo contra uma perspectiva asséptica e inorgânica de linguagem e afinando-se àquela que seria a compreensão mais aplaudida nos documentos oficiais para o ensino: a linguagem como lugar de interação. A simpatia por essa concepção parece tão presente e previsível quanto consensual. Sua efetivação nas práticas escolares, todavia, pode se mostrar tão falível e superficial quanto insegura.

69 A LA assume a concepção de linguagem como prática discursiva. O que seria, pois, admitir que a linguagem seja concebida desse modo? Essa indagação deve encontrar-se com a clarividência de que a LA adota pressupostos transdisciplinares, que servem à laboriosa análise de enunciados concretos, históricos, ideológicos, valorados, com autor e destinatário reais, em que interagem subjetividades e se constroem identidades. A concepção de linguagem como prática discursiva pode ser interpretada como uma releitura da linguagem como lugar de interação, respeitando-se a complexidade e a responsabilidade de se posicionar desse ângulo na apreciação dos usos do discurso.

É sabido que a LA irrompe em um cenário ainda protagonizado pelo positivismo, de modo que seu berço bélico, metaforicamente, inspiraria lutas institucionais para superar essa tradição. A palavra contexto31 é fulcral para a LA que, diferentemente do que pode sugerir seu próprio nome, não se restringe à mera aplicação de teorias linguísticas ou ao (in)cômodo consumo da produção epistemológica da Linguística.

Em verdade, o surgimento desse campo de conhecimento, nos fins da primeira metade do século XX, foi decorrente do ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras durante a 2ª Guerra Mundial, período em que a dominação de povos e territórios dependia da subjugação cultural e linguística. Assim, a LA, honrando suas origens, inicialmente, voltou-se para questões/problemas no ensino de língua estrangeira, tornando-se tributária imediata da Linguística.

Todavia, essa próspera área do conhecimento passou por viradas e rupturas que ressignificaram sua existência e granjearam sua autonomia, afastando-a do que se fez durante um tempo considerável da sua já longeva história: aplicar uma teoria linguística à descrição e ao ensino de línguas estrangeiras, predominantemente, a inglesa, a partir de categorias e princípios abstratos.

Há, contudo, um laço que mantém seminal a relação com a Linguística, mas, cabe enfatizar, não somente com ela. Trata-se da concepção de linguagem que é sustentáculo para a pesquisa aplicada. A LA, por sua entonação para o conceito,

31

Leia-se “contexto” não apenas como exterior ou entorno social fora do sujeito, mas como imbricado à constituição de sua própria identidade, como prevê a perspectiva bakhtiniana.

70 considera a prática discursiva a partir de uma perspectiva socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais (MOITA LOPES, 2003).

Assim, uma prática social em que a linguagem desempenha papel central constitui-se objeto potencial para a LA, cujo horizonte de interesse é orientado em direção à prática, à agência de sujeitos responsivos e responsáveis, nas suas relações sempre mediadas pela linguagem/discurso, na lida concreta com ideologias, posicionamentos axiológicos, crenças e avaliações marcadas espácio-temporalmente. Nesse sentido, a própria pesquisa é vista como acontecimento, como prática discursiva, e, portanto, empreendida por um pesquisador envolvido, no pleno exercício de suas competências interpretativas na construção de um trabalho de abordagem histórico- cultural (FREITAS, 2010).

Compreender a linguagem como prática discursiva na sua dimensão intersubjetiva, situada social, histórica, cultural e institucionalmente, é uma atitude que inclui um compromisso com as questões sociais emergentes nas fronteiras. Primeiro porque, atualmente, há a preocupação de se trazer à tona problemáticas periféricas, transitivas, fortuitas, complexas e centrífugas. Segundo, porque a LA se pretende posicionada nos encontros, nas relações, nos diálogos entre as disciplinas, menos abolindo a individualidade de cada uma delas do que as articulando em um programa que responda às indagações plurais que habitam a (cons)ciência hoje.

A natureza dos objetos da Modernidade Líquida (BAUMAN, 2001) é fluida, indisciplinada, múltipla, transgênica, glocalizada32. As identidades, por sua vez, são construídas nessa conjuntura e, portanto, inacabadas, multifacetadas, difusas. Nessas condições, a orientação transdisciplinar torna-se prioritária, como uma possibilidade que a inteligência parece encontrar para dar conta de fenômenos gestados na interface entre homem(ns) e mundo(s).

Ter em vista essa realidade culmina na percepção da certeza que envolve a adoção das práticas discursivas como objetos de análise. Isso significa o próprio fazer científico da LA que se define como crítica, mestiça, transgressora, in/transdisciplinar. Crítica porque pensa o homem contemporâneo no mundo contemporâneo com uma

32 Neologismo resultante da fusão dos termos globalização e localização. Refere-se à presença da

dimensão local na produção de uma cultura global. No ocidente, o primeiro autor a explicitar a ideia de “glocal” foi o sociólogo Roland Robertson.

71 direção política; mestiça porque honra suas questões únicas, mas não singulares, combinando saberes e referências para produzir inteligibilidade e/ou soluções que não façam o outro sofrer; transgressora por atender temas que pareciam estar aquém da outorga da ciência, problematizando o diferente, o desigual, o marginal; e in/transdiciplinar, pela vocação sensível para lançar luzes sobre um tempo que tende a recusar a indiferença entre saberes isolados e autossuficientes.

Assumir a linguagem como prática discursiva, acaba por ser, pois, caracterizar a pesquisa aplicada, uma vez que a unidade metodológica de análise torna-se o enunciado concreto, com autoria, destinatário, tempo, história e valores. Essa realidade autentica a relevância de um fazer científico responsivo a nossa época e se estabelece em nosso estudo.

Para realizar o propósito de analisar a abordagem do anúncio publicitário no livro didático de língua portuguesa, recompondo seu horizonte de interpretação, parece- nos necessária a imersão nessa prática discursiva, entendendo sua materialidade linguística e sua corporeidade social. Nesse sentido, na busca por compreender o trabalho com práticas sociais (multi)semiotizadas, isto é, com práticas discursivas (sobretudo as que suscitam os multiletramentos), torna-se imperativa uma fundamentação teórico-metodológica sobre os significados e as implicações da linguagem em funcionamento para o estudo aplicado. Na lida de nossas práticas, como antecipado, engajamos um conjunto de ideias legadas do que se convencionou cunhar como Círculo de Bakhtin.