• Nenhum resultado encontrado

BALNEÁRIO DOS PRAZERES E BARRO DURO: COEXISTÊNCIA DE MARCAS IDENTITÁRIAS PORTUGUESAS E AFRICANAS NA PAISAGEM COSTEIRA

LAGUNAR

Os topônimos são signos carregados de significados, são marcas culturais que expressam uma efetiva apropriação do espaço por um dado grupo cultural. Os topônimos se originam de duas formas básicas, verticalizadas e horizontalizadas (SANTOS, 1999). A primeira é quando o nome é implantado em um lugar sem vínculos, enquanto na segunda o nome surge, não por uma imposição, mas pela interação geográfica. E toponímia é, ainda, um poderoso elemento indentitário. Em

renomear rios, montanhas, cidades, bairros e logradouros têm um significado político

2011, p. 176).

Para Négre (apud

ia das vezes, é marcada por um grande conservadorismo. Os nomes modificam-se pela evolução da língua e pela mudança

- (CLAVAL, 2007, p.202).

A pesquisa toponímica permite o resgate linguístico, histórico e social do nome. Está carregada de uma profunda carga significativa, ressaltando a alteridade dos lugares, como sugere Claval:

O que se passa noutro lugar não se parece com o que se passa por aqui [...] as pessoas não têm os mesmos reflexos, os mesmos hábitos; não falam a mesma língua, não praticam a mesma religião. A alteridade dos homens se acrescenta à novidade e ao exotismo dos lugares (CLAVAL, 2014, p. 51).

Na citação acima, a experiência geográfica é vista como a diversidade de lugares e de homens e mulheres. Nesse sentido, o espaço geográfico da presente pesquisa apresenta-se como único, em que o tempo deixa marcas na paisagem, um tanto distintas dos outros balneários da Praia do Laranjal. A começar pela sua dupla identificação Barro Duro e Balneário dos Prazeres, além de diversos outros apelidos pejorativos que marcam a história do lugar e fazem parte do imaginário da cidade.

O nome Barro Duro é uma toponímia horizontalizada, sua origem é anterior à formação dos Balneários de Pelotas. Está atrelada à experiência dos antigos proprietários e frequentadores desse trecho da orla da laguna dos Patos, onde o solo por ser argiloso, petrificado permitindo a sensação de dureza ao ser tocado. Era e ainda é popularmente conhecido na região mais pela ironização da classe dominante, que associa o lugar à praia dos pobres, farofeiros, dos negros e macumbeiros, do que pelo entendimento da sua dinâmica natural.

O descaso do poder público com esse Balneário e a questão do preconceito racial foram debatidos na Câmara dos Vereadores pelo vereador Velocino Cardoso:

[...] sou um vereador eleito sem gastar nenhum centavo, vindo da classe mais pobre da periferia de Pelotas. A praia que hoje frequento e continuarei frequentando é o Barro Duro, minha praia do coração. Trata-se de uma praia muito bonita e arborizada, mas hoje vamos ao Barro Duro e nos sentimos tristes. Eu sou negrão e assumo minha raça e origem. Essa praia prefeitura investe todos os seus recursos nos outros balneários o que é uma lástima (Vereador Velocino Cardoso, em proposição verbal na sessão Nº015 Ata Nº003/93 da Câmara Municipal de Pelotas, em 18 de janeiro de 1993, p.10)

O vereador Velocino Cardoso, em sua proposição, fez referência ao termo

seus usuários sofrem na cidade de Pelotas. Atualmente, esse batismo do lugar não é mais usado, mas permanece na memória social da cidade.

O fato de o complexo natural que forma a paisagem desse trecho da orla ser apropriado para as práticas afro-religiosas marca o grau do vínculo territorial desses

onde, para eles, o sagrado se revela.

A apropriação dessa praia pelos atores afro-religiosos assume uma dimensão afetiva, derivada das suas práticas-rituais e Festa de Iemanjá ali espacializadas há mais de 60 anos. A gruta de Iemanjá é a marca da territorialidade das religiões étnicas de matriz africana na cidade de Pelotas. Segundo Kozel (2009, p.204), os lugares sagrados:

natureza não é exclusivamente natural, está sempre carregada de um valo

Assim, é possível afirmar que tantos os atores endógenos - moradores adquirentes dos lotes para a construção de segunda residências nos anos 1950- 1960, quanto os atores transitórios praticantes de religiões de matriz africana que se apropriam do espaço público da praia e matas, territorializam esse espaço costeiro transformando a paisagem e atribuindo-lhe valores não apenas materiais, mas éticos, estéticos, simbólicos, afetivos, espirituais (RAFFESTIN, 1998).

Essas formas de apropriação enfatizam os poderes invisíveis que podem

2008, p. 69). Ambos os grupos de atores endógenos e transitórios, neste caso, demonstram sentimentos de pertencimento e um forte vínculo territorial com este lugar, como será detalhado nos próximos capítulos.

Já, o outro topônimo Balneário Nossa Senhora dos Prazeres é uma repetição do nome da Fazenda, herdada pela família Assumpção. Esse nome está associado a uma das imagens católicas mais antigas da cidade de Pelotas, a qual fora trazida de Portugal para o rincão das Pelotas, para proteger o lugar territorializado pela coroa portuguesa.

A imagem de Nossa Senhora dos Prazeres, esculpida em madeira, encontra-

espirituais e do grande arraial, [...] na sede da antiga estância do Laranjal junto à residência da família, para abençoar as lavouras, as vinhas, os pomares, as fáb

Assim, esse trecho da orla em Pelotas passou a ter duas nomenclaturas: Barro Duro e Balneário dos Prazeres. A primeira é mais antiga e mais lembrada pelos atores sociais transitórios, também utilizada pelos atores e agentes exógenos, estando presente em trabalhos científicos e alguns documentos públicos, já o segundo batismo é considerado uma marca europeia e católica. Para os atores endógenos, moradores mais antigos, é a nomenclatura oficial, pois é a aquela dos registros da propriedade privada.

propriedade privada está ligado ao individualismo. Aparece na Declaração dos Direitos do Homem, tão imprescritível e sagrado como a liberdade e a segurança que lhe protege dos intrusos (CLAVAL, 2007). Daí a importância que os moradores dão ao nome oficial do bairro.

Percebe-se que o lugar ficou sendo venerado tanto pelos católicos quanto pelos afro-religiosos. Todavia, a coexistência dos topônimos não é de todo harmônica, já houve registros de tentativas de sobrepor o nome Balneário dos Prazeres sobre o nome Barro Duro. Este caso ocorreu no ano de 1998 e foi registrado na imprensa local. Uma moradora e empresária demonstrou o seu descontentamento com a toponímia Barro Duro, por este estar grafado para sinalizar a linha do transporte coletivo e na entrada do Balneário:

[...] peço respeitosamente, que em nome da história e do povo não seja modificado esse nome Balneário dos Prazeres por Barro Duro, seria um desrespeito com o lugar e com as pessoas que lá vivem, [...] pois na entrada desse Balneário dos Prazeres, lê-se o nome Barro Duro (DIÁRIO DA MANHÃ, fev. 1998).

Observo que, na matéria da imprensa local, a palavra povo representa apenas os moradores do Balneário, aqueles considerados os proprietários fundiários (o proprietário pode fazer o que quiser com a terra; ela lhe oferece a estabilidade econômica, permitindo-lhe satis

concebido em um sistema de representação, batizado [...] ele transforma-se em

Em muitos outros lugares, as relações de domínio social sobre o espaço ocorrem pelas marcas sobre o terreno, pelos seus limites naturais como rios e florestas. Junto às populações tradicionais os territórios são construídos a partir das práticas sociais, incluindo as cosmogonias e percepções dos lugares. Conforme aponta Henriques sobre o caso africano,

O território define-se pela relação que sustenta com a história e que se exprime não só na presença dos espíritos dos antepassados, mas pela acumulação de sinais e de marcadores, uns criados pela natureza e reinterpretados pelos homens, outros provindos do imaginário do indivíduo e da sua sociedade (HENRIQUES, 2003, p. 5).

Desse modo é possível perceber que a toponímia se torna um elemento de disputa simbólica entre os grupos culturais, os quais, a partir de suas territorialidades e da consciência que se tem delas, definem a trama de lugares cujo traçado no solo constitui um território. Nomear os lugares é também impor contextos culturais ao o

Cabe ressaltar que as tentativas de sobreposição da toponímia Balneário dos Prazeres sobre a toponímia Barro Duro ocorreram em um período de grande afluência dos grupos populares à praia, durante a sazonalidade do verão e da chegada de moradores novos. Esse ponto será discutido no próximo item com enfoque para os diferentes tipos de usos e apropriações territoriais da praia.

Foi também na década de 1990 que o nome Barro Duro passou a ser ressignificado na criação de um conto literário - 90

associado a ideia de lenda do Barro Duro. Esse conto foi escrito pela professora pelotense Maria Helena Vargas da Silveira, com o objetivo de subsidiar estudos na área de Educação e Gênero. Este encontra- - Fantasia e

sagrado para essa etnia. Esse conto literário traz termos iorubanos integrados à Língua Portuguesa, numa tentativa de revitalizar palavras restritas às práticas religiosas de matriz africana e ao samba de enredo. Devido à tradicional ocupação dessa praia pelos negros afro-umbandistas e africanistas, os quais realizam a festa de Iemanjá há mais de 60 anos de forma ininterrupta, convencionou-se chamar o conto de Nioro de Lenda do Barro Duro. Assim ela nos conta:

Nas Terras do Laranjal, na fazenda de Nossa Senhora dos Prazeres, quando Sinhá Dona morreu, deixou testamento. Donga, escrava da fazenda, ficaria alforriada. Entre outras heranças de muito valor, Sinhá Dona deixava trezentos mil réis para repartirem com três mulheres brancas e pobres a fim de se vestirem decentemente para frequentar as missas. Quem devia repartir o dinheiro era um padre novo, recém-chegado da Bahia.

O padre, sabendo que os negros eram mais de Batuque do que da Igreja, planejou conquistar Donga para a devoção católica. Deu-lhe de presente os 90 O Mito é uma linguagem objeto, neste específico o seu significante é a figura da mulher negra descendente de escravos, afro-religiosa e católica, que vivia nas terras do Laranjal, vendendo doces, lutando contra a sua condição social e a de seu filho Nioro. Seu significado é a apropriação territorial negra e afro-religiosa no Balneário dos Prazeres, batizado por esta etnia de Barro Duro.

trezentos mil réis que seriam das brancas, em troca da sua frequência à igreja, aos Santos Ofícios Católicos. Recomendou-lhe que levasse Benedito, seu marido, e Nioro, seu filho. Desta forma, outros negros a seguiriam. Seria bom se levasse também Joaquim e Inácia, pretos de muita liderança e estimados pelos outros.

O padre novo desviou o testamento. Afinal, Sinhá Dona, defunta, não podia reclamar nada. Donga, alforriada e com trezentos mil réis, batia cabeça para Oxum, agradecia a Oxalá, rezava Ave-Maria para Nossa Senhora dos Prazeres. Donga era um todo fragmentado. De um lado, terreiro, do outro, Igreja. Os mil réis foram escondidos no fundo de uma cacimba que só a Donga conhecia, bem pertinho da vertente mais límpida dos matos dos laranjais.

De vez em quando, guardava mais dinheiro que ganhava fazendo doces para as Sinhás, donas das charqueadas. No fundo da cacimba, a negra Donga acalentava um sonho. Enquanto os dias passavam, seu filho Nioro ia crescendo bonito, amado de pai e mãe, correndo pelos laranjais, na Fazenda. O menino desfrutava de toda aquela energia cósmica do verde das plantas, das águas da Lagoa dos Patos, da brisa suave, da areia gostosa de pisar.

Assim, o menino ia crescendo. Donga desejava o filho lendo, escrevendo, seu doutor, negro senhor. Não queria ver Nioro um salgador de carne, escorrendo sangue de bicho pelas pernas, servil e maltratado. Dentro da cacimba, escondia-se o tesouro para a realização dos desejos de Donga. Foi então que apareceu o professor Quintilha. Não possuía escola, nem giz, nem caderno, nem cadeira, nem livro, mas, mesmo assim, ensinava as primeiras letras. Nioro aprendia a lição quase à beira da praia, sentado sob as aroeiras. Donga pagava o Quintilha, e o filho estudava, escondido.

Das primeiras letras do Quintilha, o menino passou para o Mestre Gonzáles. Aprendeu Gramática, Latim, Matemática, Geometria e Francês. Donga pagava o Gonzáles, e o filho estudava, escondido.

Vieram muitos professores e Nioro aprendeu tudo que lhe ensinavam. Não havia mestres para Nioro, nas Terras do Laranjal. Donga pescou todos os mil réis da cacimba. Nioro viajou, pegou carreta, navegou navio, foi longe... As negras e os negros da fazenda continuavam suas lidas, comandados humildes de serventia braçal. Donga fazia doces, curtia licores. Sentava próximo à escadaria da igreja e vendia seus quitutes num tabuleiro colorido e cheiroso de erva-doce dos pães, dos licores, das cocadas, rapaduras de leite, quindins e bolos de milho. Sempre a mesma lida, transformava doce em mil réis para os estudos de Nioro.

Quando Nioro retornou às Terras do Laranjal, estava mais sabido e mais letrado que todos os seus mestres. Foi recebido com toque de tambor, dança de mina, festa alegre de negro contente.

Não esqueciam de pedir proteção para o padre novo que ajudara Donga. Bendiziam-no indo de vez em quando à Igreja, ficando todos de pé, bem visíveis.

Naquelas bandas do Laranjal de Pelotas não conheciam negro professor, nem negro doutor. Nioro era o primeiro negro professor doutor. Seria apenas um negro e nada mais nas Terras do Laranjal? Nioro sem escola, sem alunos, sem clientes, chorava sob as aroeiras. As árvores choravam juntas, gotejavam lágrimas do negro.

Donga desesperou-se com o sofrimento do filho. Rezava para Iroko, pedindo que fizesse passar depressa aquele tempo maldito. Implorava-lhe a mudança do Odu de seu filho. Tomada pelo desalento, consultou Ifá e sugestionou-o a tornar melhores os dias de seu Nioro. Ifá, compadecido da negra Donga, determinou obrigação.

Teria de encontrar junto com o filho um lugar nas Terras do Laranjal que fosse mais pródigo em natureza do que todos os outros lugares. Deveria ser um lugar verde e azul, ao mesmo tempo, campos e água, matas e areias divinas. Ao encontrar o lugar, Nioro ficaria ali deitado, aguardando chover.

A obrigação estava marcada. Nioro adormeceu em terras divinas do Laranjal. Recebeu chuva miúda na cabeça. Eram lágrimas de Nanã, chegando ao Sul, mudando o destino do moço negro.

Donga aguardava, ao lado do filho, tudo que fora prometido por Ifá.

Quando Nioro despertou de cabeça lavada, tornou-se Mindolé-Miandombé (preto-branco). Donga não o reconheceu, e o filho não reconheceu a mãe, nem seu povo. Entende? Donga ficou tomada de desespero, mas Nioro foi ser professor, doutor, tudo que sonhara para o seu filho negro.

Ifá havia sido muito cruel, retirando a negritude de um negro, em vez de ensinar-lhe a guerrear para vencer.

Pobre Donga! Andava pelas Terras do Laranjal em total obsessão. Encontrou Omolu, que a convidou para seguir-lhe os passos até onde Nioro havia feito obrigação. Louca de saudade de seu filho, ao ver o local tão lindo, junto à praia em que ele estivera adormecido, jogou-se nas águas da lagoa e morreu. Omolu carregou-a para o céu de Orum para acabar de vez com seus sofrimentos.

Contam que os pescadores encontraram o corpo de Donga às margens da praia, e que, ao tocá-lo, transformou-se em BARRO DURO, escuro e brilhante, espalhando-se pela orla. Gritaram assustados: BARRO DURO, TERRA DE NEGRO. Assim batizaram o lugar em que Donga virou barro de tanta saudade de seu filho negro branco.

O Barro Duro tornou-se um lugar mágico. Todos os negros são atraídos para lá, porque Oxalá permitiu-lhes consolar a Negra Donga. Por isso, o Barro Duro é uma irmandade de negros dos mais diferentes níveis socioeconômicos e culturais.

Preservem o Barro Duro. Donga não pode ficar sozinha, sem carinho. Precisa de apoio como todas as mães pretas que acreditam mudar o destino de seus filhos para dias melhores. Precisa coragem.

Cuidem bem das aroeiras, elas guardam as lágrimas de Nioro. Todos os negros devem saúda-las com bom-dia, se for noite; e com boa-noite, se estiver dia. É uma brincadeira dos Exus, fazendo com que recordem de Nioro que Ifá fez parecer o que não era.

A maldição de Nioro é uma alergia que dá em qualquer negro que fica chorando sob as aroeiras da vida, em vez de ir à luta, acreditando nas possibilidades de inverter posições sociais, conservando a negritude (SILVEIRA, 1993).

Nessa narração, os fatos históricos são modificados pela imaginação popular ou poética, criando a lenda do Barro Duro. No sentido antropológico, a narrativa pode ser vista como uma solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade (CHAUI,

para explicar o presente e construir o futuro. Procede-se uma reconfiguração

A lenda do Barro Duro ou Mito de Nioro tem sido utilizada por educadores e educadoras para tratar de questões afirmativas e patrimoniais, valorizando a cultura e reconhecendo a identidade afro-brasileira na cidade de Pelotas, como consta em Ávila e Ribeiro (2014), Silva e Peres (2008). Mas também cumpre o papel de reafirmar a apropriação territorial afro-brasileira nessa praia, visto as disputas

simbólicas existentes entre ambientalistas, afro-religiosos e os moradores não religiosos. Cada grupo faz uma apropriação diferenciada do lugar, de acordo com suas crenças, valores e vivências, ao atribuir um significado especifico para o espaço em questão.

O mito de Nioro, ao relacionar a apropriação territorial negra com o trecho de orla batizado de Barro Duro, traduz a história de luta do povo negro contra as estruturas de dominação e marginalização do negro brasileiro. Como a questão racial no Brasil é um fenômeno estruturante, situações envolvendo racismo e desigualdade racial marcam a história desse lugar na cidade de Pelotas. Derivam, dessa apropriação material e imaterial negra do espaço-praia, todos os estigmas imputados sobre o lugar, os quais terão implicações sobre as ações sociais e práticas espaciais conflitivas, vivenciadas pelos atores sociais territorializados.

A negra Donga e seu filho Nioro representam o povo negro escravizado que viveram nas terras do Laranjal e atribuíram subjetivamente um conjunto de valores e marcos geossimbólicos (BONNEMAISON, 2002), conferindo ao lugar um sentido, uma ética e uma espiritualidade.

Esse mito, ao se aproximar do inconsciente coletivo que vê esse trecho de orla lagunar como um lugar simbólico, expresso pela gruta da orixá Iemanjá, pela presença de belezas naturais, por ser parte de roteiros devocionais para católicos, umbandistas e africanistas, explica, também, o evento do encontro das imagens de Iemanjá e Nossa Senhora dos Navegantes em uma homenagem mútua nas águas da Laguna dos Patos, em frente à Gruta de Iemanjá. Momento em que a fé e a devoção se sobrepõem ao cotidiano do lazer de sol e praia.

Um importante efeito do mito de Nioro é que ele atua na reafirmação da apropriação afro-brasileira no espaço público da praia. O vínculo com o passado que remete à presença da ancestralidade e dos orixás na praia abordada no texto, é presente na memória social dos praticantes de religião de matriz africana, como ..] ao entrar no mato e sentir o contato com a natureza, se sente a espiritualidade e a presença

Esse relato é apenas uma das diversas evidências da força do vínculo das territorialidades religiosas com essa praia. Marilene, pertencente à religião afro-

brasileira Nação, também se reporta à praia em estudo, com sentido simbólico e mítico:

A natureza, a lagoa, a calunga grande que é a lagoa para nós, porque é o cemitério, tem a calunga pequena onde todos usam e a calunga grande que para nós é o cemitério, nós temos o cruzeiro de Matas, temos a mata onde vários orixás, caboclos, pretos velhos, exus respondem aqui (Marilene, 2016).91

Assim, o Balneário dos Prazeres, ou Barro Duro, reúne um conjunto de representações que engendram um complexo universo simbólico.

Como se trata de duas toponímias com conotações sagradas, uma católica e outra afro-brasileira, apesar do sincretismo religioso, ainda existem tensionamentos. ue passa a ser o motivo para as tensões no espaço social e para a imposição da territorialização do Estado, controlando o espaço e o tempo da territorialização dos moradores, veranistas e praticantes de religião de matriz africana no espaço costeiro laguna

sagrados. Para as religiões afro-gaúchas92, a natureza é o espaço dos orixás ou guias: a mata, dos caboclos; a cachoeira, de Oxum; o rio, das caboclas; a praia, de