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CAPÍTULO I: ESTADO E PODER JUDICIÁRIO: particularidades dos Tribunais Eleitorais no Brasil

1.1. O Estado Moderno nos clássicos da teoria política

1.1.1. As bases do Estado liberal

É importante destacar que Montaño e Duriguetto (2011), ao analisarem o Estado moderno e a sociedade civil com base nos clássicos da teoria política, esclarecem que esta instituição não tem origem na idade moderna, uma vez que, desde a Grécia antiga, na pólis grega, passando pela res publica romana, existiam preocupações e estudos sobre o Estado e as formas de governo. Na modernidade,

entretanto, tais autores (idem) ressaltam que as concepções de Estado e de sociedade civil estão embasadas originariamente nas teorias contratualistas do direito natural ou jusnaturalistas, as quais datam dos séculos XVII e XVIII, e tem como principais expoentes Hobbes, Locke e Rosseau.

As teorias jusnaturalistas, em essência, forjam doutrinas políticas assentadas em uma forte tendência individualista e liberal, cabendo ao Estado a missão de “legitimar os direitos inatos dos indivíduos, o que reduz o exercício do poder estatal a uma função derivada dos direitos individuais. A ordem política é concebida com a finalidade de coibir qualquer violação desses direitos” (MONTAÑO, DURIGUETTO, 2011, p. 22). Nesta tradição, portanto, há uma cisão entre Estado e sociedade civil, pois enquanto o primeiro representa a sociedade política constituída pelas instituições do poder soberano, a segunda é o local do privado, a base da vida social. Desse modo, o fundamento do Estado e a fonte de legitimação de seu poder político está na formação de um consenso entre os homens, os quais realizam um contrato ou pacto social, renunciando às suas liberdades individuais ou naturais, sob a autoridade de um poder soberano, que estabelece normas de convivência social e leis. Nesse sentido, “o Estado seria o produto do contrato social, ou seja, da conjunção de vontades individuais” (idem, p. 23).

Em que pese as particularidades das concepções de Estado segundo Hobbes, Locke e Rosseau, neles se encontram as bases da concepção liberal de tal instituição, surgidas no bojo do questionamento ao poder absolutista, na transição do feudalismo para o capitalismo, período em que a burguesia começa a se consolidar como classe hegemônica. Para Hobbes, o Estado aparece como uma instituição fundamental de regulação das relações humanas, uma vez que o homem, por seu estado de natureza é considerado um lobo do próprio semelhante, na medida em que é guiado por seus impulsos, desejos e pulsões egoístas. Sendo assim, a liberdade e a igualdade, aliadas ao estado de natureza humano, gerariam descontentamento, ambição e guerra, necessitando-se de um poder soberano capaz de garantir a preservação da vida e do interesse comum.

Segundo Hobbes, o Estado seria um poder soberano e sua constituição registra a passagem desse estado de natureza para a formação da sociedade civil ou sociedade política. Desta feita, pelo contrato firmado, “os homens transferem ao soberano (que pode ser um homem ou uma assembleia), o direito natural que cada

um possui sobre todas as coisas. Esse acordo impõe aos indivíduos a obrigação de obedecer a tudo aquilo que o soberano ordenar” (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2011, p. 24).

Em Locke, por sua vez, o poder político regulador do Estado está voltado, sobretudo, para assegurar e conservar o direito natural do homem à propriedade, uma vez que este precede a sociedade civil ou política. Sob esta ótica, não cabe ao Estado restringir tal direito, o que levava tal pensador a criticar a ideia de um Estado absoluto, construído por meio de um pacto de subordinação dos súditos, conforme preconizava Hobbes. Locke, portanto, defendia a divisão de poderes, atribuindo supremacia ao poder legislativo, considerado supremo. Ressalte-se que as formulações de Locke influenciaram sobremaneira as revoluções burguesas e liberais da modernidade, dentre as quais se destaca a norte-americana e a francesa, cujos princípios inspiraram a Declaração da Independência dos Estados Unidos (1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, instituído com a Revolução Francesa (1789), difundida por todo o Ocidente. Segundo Mello (2006, p. 88), “os direitos naturais inalienáveis do indivíduo à vida, à liberdade e à propriedade constituem para Locke o cerne do estado civil e ele é considerado por isso o pai do individualismo liberal”.

Por fim, Rosseau apresenta importantes considerações sobre a relação Estado e sociedade civil, radicalmente diferentes das ideias contratualistas de Hobbes e Locke, uma vez que, na perspectiva rosseauniana, o homem nasce bom e a sociedade, pelo processo de socialização e de instauração da propriedade em seu bojo, corrompe-o. Sendo assim, a propriedade privada estaria na raiz das grandes desigualdades de acesso à riqueza, levando ao egoísmo como motivação elementar da vida social. Apesar de ter denunciado as implicações negativas da propriedade privada para a sociabilidade, Rosseau não defendeu sua eliminação, limitando-se a propor o controle dos excessos e a garantia de acesso a mesma por todos os indivíduos. Desta forma, propôs a realização de um contrato social, no qual o homem orientar-se-ia pelo interesse comum e o Estado seria o responsável para assegurar tal garantia e o atendimento à soberania popular ou vontade geral do povo. Sendo assim,

Em Rosseau, o fundamento da ordem e da legitimidade sociopolítica (republicana ou democrática) resulta de um pacto ou contrato social em que cada um coloca a sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da

vontade geral. Significa que cada indivíduo se aliena totalmente e sem reserva, com todos os seus direitos, à comunidade. Assim, o contrato social repousa numa noção e num critério básico que é a 'vontade geral'. A vontade geral é entendida como o que traduz, o que há de comum nas vontades individuais e não a simples soma de vontades particulares ou da maioria. O que dá suporte à vontade geral é, pois, o interesse comum, que é entendido como o interesse de todos e de cada um enquanto componentes do corpo coletivo. É com base no interesse comum que a sociedade deve ser governada (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2011, p. 29).

Assim, em que pese existam diferentes concepções sobre o Estado entre Hobbes, Locke e Rosseau, um elemento é indiscutível nas formulações dos contratualistas acerca do Estado é que este foi “instaurado como portador de uma razão própria que seria a garantia de uma vida que fosse ao mesmo tempo a garantia dos interesses particulares e do interesse universal” (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2011, p. 30). Desta forma, destaca-se que as principais características do Estado liberal são: a não intervenção do Estado na economia; a validade do princípio da igualdade formal1; a teoria da separação de poderes de Montesquieu2 e a defesa da Constituição como instrumento limitador do poder governamental e garantidor das liberdades individuais.

Cria-se, desse modo, um formato de Estado estreitamente ligado à configuração do poder à época, em que a burguesia emergente detinha o poder econômico e necessitava criar instrumentos capazes de neutralizar possíveis investidas da nobreza e da realeza que detinham o poder político. Neste sentido, surge a necessidade histórica de se criar instrumentos de controle constitucional capazes de impor limites jurídicos ou mesmo éticos ao poder do Estado, dando origem ao Estado democrático de direito, como forma de reconhecimento institucional dos direitos fundamentais dos homens, pressuposto básico da filosofia do liberalismo, no qual estava assentado. Segundo Marmelstien (2013, p. 33),

1 A igualdade formal refere-se a um princípio do liberalismo baseado no ideário de que todos os homens são iguais perante a lei. Embora não desminta a existência de diferenças de classes, tal fato é omitido na tradição liberal.

2 Montesquieu foi um cientista político que desenvolveu a teoria dos três poderes, também conhecida como teoria da separação dos poderes e teoria da equipotência. Nesta, este pensador estabeleceu “como condição para o Estado de Direito, a separação dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e a independência entre eles. A ideia de equivalência consiste em que essas três funções deveriam ser dotadas de igual poder” (ALBUQUERQUE, 2006, p. 119) e uma deveria moderar a atuação das demais.

a noção de direitos fundamentais como normas jurídicas limitadoras do poder estatal surge justamente como reação ao Estado absoluto, representando o oposto do pensamento maquiavélico e hobessiano. Os direitos fundamentais pressupõem um Estado juridicamente limitado (Estado de direito/separação de poderes) e que tenha preocupações éticas ligadas ao bem comum (direitos fundamentais/democracia).

Com base em tais premissas, a finalidade ética do Estado assume especial relevância e, a partir de então, “não é mais a mera satisfação dos interesses de um ou poucos indivíduos [o seu intento], mas a busca do bem comum” (MARMELSTIEN, 2013, p. 36). Para tanto, foram criados mecanismos jurídicos objetivando possibilitar a participação popular na tomada de decisões políticas e instrumentos capazes de limitar e coibir possíveis abusos do poder estatal. Sendo assim, destaca-se que a noção de direitos fundamentais e a instauração do Estado democrático de direito, no início do século XVIII, marcam a instituição de um modelo de Estado que até hoje continua válida, pois foi adotado pela maioria dos países ocidentais e, posteriormente, na América Latina e outros países do mundo.

Tal modelo “transfere para o povo a responsabilidade pela elaboração das leis, obriga o governante obedecer ao que nelas for estabelecido e divide as funções estatais em diferentes órgãos (Legislativo, Executivo e Judiciário)” (idem). Registra- se, entretanto, que, ao contrário do que defendem os jusnaturalistas, cujos pressupostos estão assentados na ideia de que os direitos são inerentes à condição humana, há uma corrente que defende a historicidade de tais institutos como produtos históricos, resultantes das lutas de classes em busca de transformações das condições de vida.

Assim, explica-se o surgimento dos direitos na sociedade ocidental. Acompanhando o movimento histórico, aparecem, inicialmente, os direitos considerados de primeira geração – os civis e políticos, conquistas datadas dos séculos XVIII e XIX; em seguida, os de segunda geração - direitos sociais, os quais vêm sendo construídos desde o século XIX, atingindo maior evidência no século XX, cuja garantia se dá pela intervenção do Estado; e, no século XX, os direitos de terceira geração - de natureza coletiva e também difusa (direito ao desenvolvimento, à paz, à autodeterminação dos povos).

Contudo, à medida que o poderio da burguesia foi se consolidando e o capitalismo se expandindo, novas leituras do Estado foram sendo construídas, com

base nas novas configurações da sociedade moderna. Destacam-se, aqui, as contribuições dos pensadores marxistas e, por fim, a dos liberais na contemporaneidade.