• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II: SERVIÇO SOCIAL, SAÚDE E SAÚDE MENTAL: uma análise da intervenção profissional

2.2. O Serviço Social na área da saúde: história, demandas e desafios profissionais

2.2.2. A Reforma psiquiátrica no Brasil e o Serviço Social na área da saúde mental

A Reforma Psiquiátrica brasileira foi gestada no bojo do movimento da Reforma Sanitária ocorrida no Brasil, no final dos anos 1970, sob a inspiração do modelo italiano, desenvolvido por Franco Baságlia, um médico psiquiatra. Em linhas gerais, esse movimento criticou e propôs mudanças na assistência psiquiátrica prevalecente até então, cuja ênfase estava no modelo médico-assistencial e no processo de institucionalização dos doentes mentais em hospitais psiquiátricos. Teve como principal expoente político o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, surgido, em 1978, e consolidado na década de 1980. As suas reivindicações centravam-se, essencialmente, na busca por melhores condições de trabalho nos hospitais psiquiátricos, críticas ao autoritarismo dessas instituições que eram marcadas por estruturas hierarquizadas e verticalizadas, em prol de um novo modelo de assistência na área, em substituição ao modelo médico-assistencial, dados os limites da atividade terapêutica estritamente biológica, dentre outros (AMARANTES, 1995; VASCONCELOS, 2006).

Além disso, o referido movimento efetuou sérias críticas e denúncias sobre a situação da internação dos grandes asilos e a crescente mercantilização e privatização da assistência psiquiátrica nos hospitais conveniados. Exigia-se a humanização dos hospitais e do cuidado. Com efeito, mudanças substanciais foram provocadas na fundamentação do modelo de atenção à saúde mental, cuja ênfase passou a ser o entendimento do adoecimento mental como uma situação social e a teleologia do atendimento interdisciplinar voltada para a reinserção social dos

usuários; na utilização de uma terapêutica de base mais comunitária; bem como a concepção dos portadores de sofrimento mental como sujeitos de direitos. Ganham destaque, nessa nova proposta de atendimento aos usuários, os Centros de Atenção Psicossocial/CAP’S. Segundo Machado (2009, p. 59), o horizonte atual e as tendências do trabalho em saúde mental

está calcado na busca de ruptura do binômio isolamento social/cura enfatizado pelo modelo biomédico de medicalização e focalização dos sintomas/patologia. Esse novo modelo está pautado em uma concepção ampliada de saúde, implicada em uma relação com o contexto econômico, social e cultural do país, ou seja, abrange situações de moradia, saneamento, renda, alimentação, educação, acesso a lazer e bens. Essa nova concepção busca abrir canais de democratização dos saberes profissionais, bem como das informações acerca do processo de saúde/sofrimento psíquico.

Sob esta ótica, os novos referenciais da reforma psiquiátrica remodelaram a assistência em saúde mental e uma série de conceitos e visões tradicionais sobre a loucura: “O louco deixou de ser visto como o portador de uma doença a ser curada e passou a ser percebido como uma pessoa que sofre. Visa-se não mais à doença, mas à experiência-sofrimento do paciente como ser social” (NICÁCIO, 2013, p. 127).

Surge, então, uma nova orientação para a assistência à saúde mental, a qual busca superar a lógica manicomial; trata-se da atenção psicossocial, assentada em serviços abertos articulados em rede integrada com base no território, não restrita à abordagem médica e psicoterápica do sofrimento psíquico, pois

A complexidade das demandas em saúde mental exige estratégias de ação interdisciplinares e multi-institucionais. Além dos recursos terapêuticos convencionais (remédios, psicoterapia, atendimentos aos familiares), esse campo envolve a criação de recursos de sociabilidade, convivência, oficinas expressivas, a mobilização das redes sociais do paciente e a promoção de estratégias de inclusão social (residências terapêuticas, cooperativas de trabalho protegido) (IDEM, ibidem).

Dessa forma, devido aos avanços trazidos pela Reforma Psiquiátrica, a qual enfatizou o social no processo de produção da loucura, bem como no processo de reabilitação, ampliou-se o campo para a intervenção profissional dos assistentes sociais, bem como as demandas direcionadas a este profissional na área da saúde mental. No bojo desse movimento, a partir da década de 1990, surgem os serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos convencionais, os chamados Centros de

Atenção Psicossocial (CAPS), cuja proposta ratifica a saúde mental enquanto um direito social e a reinserção social como finalidade permanente do tratamento (Lei 10.216/2001).

Leme (2013), ao analisar o trabalho dos assistentes sociais no CAPS, refere- se que o Serviço Social desenvolve, neste espaço, um trabalho diferenciado e uma prática indispensável no âmbito da saúde mental, nos marcos da Reforma Psiquiátrica, pois para esta autora, embora o conhecimento técnico especializado no campo “psi” seja muito importante para a discussão clínica dos casos, a questão política também tem especial relevância para analisar os problemas na área da saúde mental. Nesta perspectiva,

o profissional de Serviço Social tem muito a contribuir nessa discussão. Sua formação de base política, aliada ao papel fundamental que esse profissional tem em equipes multiprofissionais, torna-o apto a contribuir para a construção de uma prática interdisciplinar pautada nos princípios da política e da clínica na atenção psicossocial, entendendo essa última como algo que inclui reabilitação, cidadania e política (...) Sua capacitação, que o habilita a estar à frente das mais diversas realidades, ajuda-o a trabalhar com a saúde mental, que envolve de tudo um pouco. Vale lembrar que a questão social está presente em todos os lugares e se expressa nas mais diversas formas, trazendo impasses para as equipes multidisciplinares. Para o enfrentamento dessa realidade, portanto, faz-se necessário o trabalho do assistente social, que ocupa assim um lugar estratégico e diferenciado nessas equipes.

Com efeito, os referenciais do projeto ético-político da profissão31 contribuem significativamente para qualificar a intervenção profissional nessa área, ao defender valores éticos, fundamentados em uma visão mais abrangente de compromisso com os usuários, com base na liberdade, na democracia, na cidadania, na justiça e na igualdade social.

31 O Código de Ética do Assistente Social (Lei 8662/1993) expõe os princípios fundamentais da profissão, dentre outros: I- Reconhecimento da liberdade como valor ético central e das demandas políticas a ela inerentes - autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais; - II. Defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo; - III. Ampliação e consolidação da cidadania, considerada tarefa primordial de toda sociedade, com vistas à garantia dos direitos civis sociais e políticos das classes trabalhadoras; - IV. Defesa do aprofundamento da democracia, enquanto socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida; - V. Posicionamento em favor da equidade e justiça social, que assegure universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, bem como sua gestão democrática; - VI. Empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das diferenças; (...) - VIII. Opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova ordem societária, sem dominação, exploração de classe, etnia e gênero; (...) - X. Compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população e com o aprimoramento intelectual, na perspectiva da competência profissional (CFESS, 2011).

À esteira dessa análise, a intervenção profissional do assistente social na relação saúde mental e trabalho, segundo Seligmann-Silva (2011), tem um papel “especial e decisivo junto às famílias dos acidentados e adoecidos pelo trabalho”, uma vez que “essa atuação é essencial em diferentes fases, no caso dos trabalhadores expostos ou atingidos pelos transtornos psíquicos” (2011, p. 342). Sendo assim, a autora destaca que essa intervenção se materializa em uma série de ações, tais como: articulação interinstitucional, destacando o conhecimento profissional referente à legislação e às instituições previdenciárias, instituições jurídicas e serviços de saúde; realização do estudo social dos casos para fechamento de diagnósticos, envolvendo sobretudo as condições sócio-econômicas e relacionais; acolhimento, tratamento e apoio ao trabalhador intoxicado; orientação profissional para esclarecer a família sobre o quadro clínico; encaminhamentos sociais para que sejam acionados os mecanismos e instituições voltadas para o reconhecimento da causalidade e ações indenizatórias correspondentes; mediação entre o serviço de saúde, a empresa e o trabalhador, objetivando a realização de reabilitação do trabalhador em atividades adequadas à sua capacidade para o trabalho e sua reinserção social; acompanhamento do processo de reabilitação do trabalhador, considerando os aspectos psicossociais e profissionais; informação e apoio às famílias dos trabalhadores vitimizados, etc.

Segundo Bisneto (2007, p. 182), para a intervenção profissional do assistente social na área da saúde mental se faz necessário a este profissional “conhecer a sociedade capitalista contemporânea e a saúde mental”, a fim de “articulá-las com alienação social, loucura, sofrimento mental, apropriação social pelas instituições, modos de subjetivação social, institucionalização dos sujeitos”. Esses requisitos possibilitarão a ampliação do olhar deste profissional sobre a saúde mental e a compreensão do significado de sua atuação nessa área. Apesar de que a intervenção profissional nessa área foi legitimada desde os anos 1970 e, assim, ratificada a sua importância para a saúde mental dos trabalhadores, constatam-se inúmeras contradições.

O Serviço Social na área da saúde mental é repleto de polêmicas: uma delas refere-se ao argumento de que a saúde mental não é um campo de trabalho para o Serviço Social, sob a alegação de que o objeto desta área é a subjetividade e não as expressões da questão social considerada a matéria-prima da profissão. A esse respeito, Robaina (2010) assinala que coexistem nessa área, duas abordagens

sobre a intervenção profissional do assistente social na saúde mental: a primeira é identificada com a área “clínica”, subordinada à homogeneização dos saberes psi; por isso, a autora a considera uma abordagem que trai o projeto ético-político, deixando uma lacuna histórica no projeto da Reforma Psiquiátrica:

Assim, o Serviço Social vem privando o campo da saúde mental da riqueza de seu saber próprio, fértil de contribuições para que a Reforma Psiquiátrica alcance o seu projeto ético-político: uma sociedade igualitária, que comporte as diferenças! Não se trata aqui de negar que as ações do assistente social no trato com os usuários e familiares produzam impactos subjetivos — o que se está colocando em questão é o fato de o assistente social tomar por objeto esta subjetividade! (IDEM, p. 345).

A segunda, por sua vez, está relacionada à preservação da identidade da profissão, circunscrita à intervenção nas expressões da questão social presentes nesse campo e à identificação dos determinantes sociais envolvidos no processo de adoecimento (idem, 2010).

Com relação à polêmica sobre a intervenção profissional embasada no enfoque clínico, registra-se que há incompreensões e descaminhos na forma pela qual as demandas de saúde mental são apropriadas por alguns assistentes sociais, o que reflete nas abordagens profissionais centradas na visão sistêmica da realidade e na realização de terapias. Este enfoque tem sido objeto de crítica e resistência das entidades da categoria profissional dos assistentes sociais, conforme explicitado na Resolução CFESS 569, de 25 de março de 200932. Além dessas, existe outra polêmica que perpassa a discussão sobre a intervenção profissional do assistente social na saúde mental: trata-se da discussão sobre o conceito de subjetividade, a qual se apresenta como uma temática pouco acolhida no debate profissional.

Na verdade, alguns autores embasados na perspectiva crítica (SILVEIRA, 1989) esclarecem que o debate sobre a subjetividade foi negligenciado no âmbito do

32 A Resolução CFESS 569, de 25/03/2009, apresenta o posicionamento do Conselho Federal de