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CAPÍTULO I: ESTADO E PODER JUDICIÁRIO: particularidades dos Tribunais Eleitorais no Brasil

1.3. O Poder Judiciário no Brasil: princípios, estrutura e desafios contemporâneos

A estrutura atual do Poder Judiciário no Brasil começou a ser delineada desde a proclamação da República, período em que se consolidou no país, um conjunto de transformações econômicas, políticas e sociais marcadas pelo declínio da economia agrário-exportadora, assentada na exportação de açúcar e no trabalho escravo, e ascensão da economia cafeeira, a qual exigia um outro tipo de mão de obra. Cabe ressaltar que esse cenário traz em seu bojo um novo tipo de organização do Estado. Conforme Alapanian (2008, p. 114), instaurou-se, no Brasil, um Estado liberal do tipo republicano; logo, “a primeira Constituição da República, a de 1891, expressava valores pautados em uma filosofia positivista e republicana e incorporava os institutos formais da democracia burguesa, baseados no liberalismo”. Nesse sentido, com a República, adotou-se, no Brasil, o sistema de divisão do Estado em três poderes – o Executivo, o Legislativo e o Judiciário - autônomos e independentes entre si, bem como do sistema de controle constitucional de freios e contrapesos9, cabendo ao Judiciário a função de fazer com que os dispositivos constitucionais sejam aplicados. De acordo com Alapanian (2008, p. 99), no Brasil,

As particularidades do nosso sistema judiciário são decorrentes das características próprias da formação do Estado brasileiro, sua herança colonial e a constituição da sua classe dominante (…) [e] as primeiras instituições judiciárias formaram-se no país no período colonial, organizadas a partir das necessidades, objetivos e interesses econômicos de Portugal.

9 O sistema de freios e contrapesos objetiva limitar o abuso de poder entre os Poderes de Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário), de forma que cada um tem autonomia para cumprir sua função constitucional, mas é controlado pelos demais poderes.

Da mesma forma, a referida autora (idem) registra que uma das questões mais significativas para a formação da consciência jurídica no país foi a criação dos primeiros cursos de Direito no país, para a formação da magistratura nacional, em Recife e em São Paulo, “cujo objetivo era funcionar como polos de sistematização do liberalismo enquanto ideologia, formando o quadro administrativo-profissional que iria compor as instituições nacionais”, bem como formar a “elite burocrática que iria controlar o poder” (p. 111).

Este quadro administrativo-profissional, segundo Alapanian (2008), foi formado, inicialmente, em Recife, por um “público que se desvinculava aos poucos da oligarquia agrária nordestina, que estava deixando de ser o centro do poder oligárquico do país” (p. 112). Em São Paulo, por sua vez, “a Faculdade recebia os filhos da elite econômica ascendente mais recente e se preparava para se tornar o centro de formação dos intelectuais destinados a compor a burocracia estatal” (idem).

Assim, como corolário de tais transformações, constitui-se o Poder Judiciário no Brasil, o qual é parte da organização do Estado moderno em sua face liberal, sendo composto por diversas organizações, incumbidas da operacionalização do direito. De acordo com Faria (1997, apud, ALAPANIAN, 2008, p. 77), este Poder

Como responsável pela aplicação das leis elaboradas pelos legisladores, funciona como elemento de controle social: absorver tensões, limitar conflitos, evitando a sua generalização, e reduzir as incertezas do sistema político são as funções que exerce na sociedade.

No que diz respeito à organização da justiça, o Poder Judiciário está assentado em um modelo federativo, o qual estabelece uma divisão entre justiça da União e justiça dos estados da Federação, com a finalidade de definir competências, tendo como orientação normativa máxima a Constituição Federal, em que pese a existência das Constituições Estaduais.

Alapanian (2008) apresenta uma criteriosa descrição da estrutura do Poder Judiciário Brasileiro, a qual será abordada aqui, dada sua importância para a compreensão do lugar da Justiça Eleitoral, como está constituída e qual sua missão na mencionada estrutura. Isto posto, destaca-se que, na esfera da União, existem os órgãos de cúpula deste Poder de Estado, representados pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, além dos órgãos de cúpula das justiças

especializadas (Tribunal Superior do Trabalho, Tribunal Superior Eleitoral e Superior Tribunal Militar). Na esfera dos estados da federação, tem-se a chamada justiça comum, a qual, de forma sintética, julga causas que não sejam afetas a essas justiças especializadas. Nesse sentido, do ponto de vista da organização vertical deste Poder, os tribunais estão divididos hierarquicamente em órgãos de primeiro e segundo graus e órgãos de cúpula (aspecto já abordado); e, de forma horizontal, estão divididos em justiça comum e justiças especializadas.

Cabe ressaltar que existem quatro justiças especializadas: a Justiça do Trabalho, a Justiça Eleitoral e a Justiça Militar estabelecidas com base no critério da matéria a ser julgada, sendo que esta última pode atuar também na esfera dos estados, no que tange às questões envolvendo as polícias militares; e a Justiça Federal, cuja missão constitucional consiste em julgar causas em que a União, entidades autárquicas ou empresas públicas federais estiverem envolvidas.

No que concerne aos órgãos componentes das justiças especializadas, na esfera federal, estes estão organizados em primeiro e segundo graus. A Justiça Federal, por exemplo, possui juízes federais distribuídos em varas federais (unidades jurisdicionais de uma mesma comarca, esta considerada uma unidade do território dos estados federativos, divisão adotada para fins de administração da justiça) distribuídas pelo país em todas as capitais e em outras localidades definidas por lei; bem como é formada pelos tribunais regionais federais, em segundo grau de jurisdição. A Justiça do Trabalho, por seu turno, no que tange ao primeiro grau, é formada pelos juízes do trabalho em varas federais e, diante da inexistência dessa figura, as causas podem julgadas por um juiz da justiça comum estadual.

A Justiça Eleitoral compõe-se de juntas10 e juízes eleitorais, em nível de primeiro grau, e por Tribunais Regionais Eleitorais, em segundo grau, sendo um em cada estado da federação e um no Distrito Federal. A Justiça Militar é exercida por juízes e tribunais militares, em primeiro graus, e pelo Superior Tribunal Militar, em

10 As Juntas Eleitorais são órgãos deliberativos constituídos 60 (sessenta) dias antes do pleito, com a competência de: a) Apurar, no prazo de 10 (dez) dias, as eleições realizadas nas Zonas Eleitorais sob sua Jurisdição; b) Resolver as impugnações e demais incidentes verificados durante os trabalhos da contagem e da apuração; c) Expedir os boletins de apuração contendo o resultado de cada seção; d) Expedir diploma aos eleitos para cargos municipais. Nos Municípios onde houver mais de uma Junta, a expedição de diplomas será feita pela que for presidida pelo Juiz Eleitoral mais antigo (Art. 40, parágrafo único, do Código Eleitoral). Cada Junta Eleitoral é composta de um Juiz de Direito, que será o presidente, e de 2 (dois) ou 4 (quatro) cidadãos de notória idoneidade (Art. 36 do Código Eleitoral), os quais não precisam ter formação jurídica (Fonte: http://www.tre- se.jus.br/institucional/justica-eleitoral/juntas-eleitorais).

segundo grau. Por fim, tem-se a justiça comum, no âmbito dos estados-membros, a qual é exercida pelos juízes estaduais em varas situadas nas comarcas e, em nível de segundo grau, pelos Tribunais de Justiça em cada um dos estados. Trata-se de toda uma estrutura organizada com a missão de efetivar a justiça social; contudo, diante do agravamento dos problemas sociais, este Poder tem sido alvo de constantes pressões e cobranças da sociedade no sentido de ser mais efetivo no cumprimento de sua missão.

Essa situação está no âmago do que se convencionou chamar de crise do Judiciário (ALAPANIAN, 2008), a qual revela os limites do sistema jurídico em administrar as consequências da crise em decorrência das dificuldades em apresentar soluções para as expressões da questão social, que, apesar de se manifestarem de forma individualizada nos tribunais, na verdade são problemas de toda a sociedade. Dentre os fenômenos relacionados à crise, Souza Santos (1997, apud ALAPANIAN, 2008) destaca que está em curso, desde o século XX, um processo de explosão de litigiosidade nos países capitalistas, o qual rebate no sistema de justiça, em seu processo de adaptação à nova conjuntura econômica e social. Ao analisar a realidade dos países atrasados, Faria (1997) refere-se que a explosão de litigiosidade está relacionada ao movimento de despolitização dos conflitos sociais, os quais são transformados em questão de ordem econômico- corporativa, ou seja, são retirados do campo político da luta de classes e reinseridos no aparelho burocrático do Estado como mera questão técnica, ocorrendo o que o autor chama de tecnificação da política.

No bojo das críticas dirigidas ao Judiciário, na contemporaneidade, cabe ressaltar que a estrutura rígida e hierarquizada desse poder de Estado, balizada em uma lógica legal-racional profundamente burocratizada e submissa à norma e à lei, está sendo questionada e julgada incompatível com a realidade e as necessidades produzidas pela economia global, pois

As expectativas no poder que o Judiciário tem de dirimir conflitos, expectativas estas alimentadas pela força ideológica do liberalismo, confrontam-se com a incapacidade dos tribunais de dar respostas ao profundos problemas que assolam cada vez mais pessoas na sociedade capitalista em crise. É o agravamento das contradições próprias do regime capitalista que inviabiliza a possibilidade de aplicação das leis. Contudo, é o Poder Juduciário que, através de seus organismos (tribunais, juizados, etc.), experimenta cotidianamente as consequências dos problemas sociais, e dele a sociedade cobra soluções” (ALAPANIAN, 2008, p.95).

Diante desse quadro, critica-se a morosidade deste Poder em julgar os processos judiciais, pelo excesso de formalismo do ordenamento jurídico brasileiro (FERMINO, 2011), o que acaba criando uma imagem de ineficiência do Judiciário, para a sociedade, e gerando retrabalho para seus servidores. Segundo este autor, outro fator que concorre para tal morosidade é a negligência do Estado em proporcionar investimento adequado para dotar o Judiciário de estrutura física e de pessoal para atender à explosão de demandas então existentes. Sendo assim, apoiado na empiria e na análise de alguns autores, Fermino (2011, p. 01) destaca que

Em realidade, observa-se que a estrutura judicial brasileira é demasiada precária, especialmente no que concerne à Justiça Estadual. Ocorre que o Poder Judiciário conta com um baixo investimento em infraestrutura, situação que reflete diretamente na qualidade dos serviços jurisdicionais prestados, pois para atender sua função pacificadora, necessita-se de "pessoal adequadamente treinado e em número suficiente para imprimir a esperada celeridade do procedimento judicial" (LIMA, 2006, p. 03). Para se ter uma ideia, em breve consulta ao sítio do Conselho Nacional de Justiça, mais especificamente em seu relatório denominado "Justiça em Números 2009", constatou-se que a despesa anual de toda a Justiça Estadual brasileira atingiu a marca irrisória de 0,67% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional referente ao ano de 2009. O mesmo relatório apontou que em todo o território nacional, existem apenas 14.886 cargos de magistrados na Justiça Estadual, incluindo tanto os de primeiro quanto os de segundo grau, para atender uma população de aproximadamente 190.755.799 de habitantes. Infere-se, pois, que a estrutura do Judiciário não coaduna com os novos anseios sociais, porquanto não tenha se qualificado do ponto de vista material e humano para enfrentar a demanda crescente de litígios. A quantidade de juízes, funcionários e auxiliares da justiça não é proporcional ao fluxo de processos, e isto ocorre, sobretudo pelo baixo repasse de verba ao Judiciário que não consegue ampliar seus quadros e, por conseguinte, suprir suas necessidades (FEITOSA, 2007, p. 33).

Além desse quadro da realidade da Justiça Comum citado acima, cabe mencionar que muitas Zonas Eleitorais funcionam nos prédios pertencentes a esta Justiça; por conseguinte, os servidores dos Tribunais Regionais Eleitorais (TRE’s) também vivenciam tais dificuldades, embora se perceba que, atualmente, certos gestores dessa justiça estejam se movimentando no sentido de aquisição de prédios para a implantação de Sedes próprias, no âmbito dos TRE's. Sendo assim, impõe-se a este Poder “o desafio de alargar os limites de sua jurisdição, modernizar suas estruturas organizacionais e rever seus padrões funcionais, para sobreviver como poder autônomo e independente” (FARIA, 2001, p. 09), o que não ocorre sem custos

sociais, pois, conforme afirma este mesmo autor (idem), “o tempo do processo judicial é o tempo diferido. O tempo da economia globalizada é o tempo real”.

Esta realidade atinge sobremaneira a saúde dos trabalhadores da justiça, tanto os operadores quanto os operários do direito11 (RIBEIRO, 2009), pois, ao mesmo tempo em que a estes são dirigidas inúmeras cobranças por resultados, não lhes são fornecidas condições necessárias para o alcance desta finalidade. Sendo assim, a cobrança por melhores resultados, além das mudanças substanciais nas estruturas dos órgãos judiciários, traz diversas implicações para a organização do trabalho nesse Poder e para a saúde dos servidores, pois, segundo Alves e Palmela (2011), a ofensiva capitalista não compreende somente o enxugamento da máquina pública, mas diz respeito, sobretudo “... a inovações tecnológicas e organizacionais de impacto, isto é, à introdução de novas tecnologias e “choque de gestão” que intensificam o trabalho estranhado com perdas e danos irreparáveis à saúde do trabalhador” (IDEM, p. 50-51).

Desta forma, em um contexto marcado pela crescente judicialização12 dos conflitos sociais, portanto, de intensificação do trabalho no Poder Judiciário, pressões pela produtividade do trabalho, aliadas a um contexto caracterizado por relações de trabalho rígidas e hierarquizadas, “de cariz autocrático características da organização do trabalho nas esferas de poder do Estado brasileiro” (IDEM, p. 53), evidenciam outra forma de precarização do trabalho nessa esfera. Trata-se da precarização do trabalho relacionada ao processo saúde-adoecimento dos trabalhadores resultante da “voracidade da reestruturação produtiva – traduzida na pressão por metas e intensificação das tarefas” (idem), bem como em outras estratégias, como a definição de avaliação de desempenho individual dos servidores13.

11 Operadores e operários do direito referem-se a termos utilizados por Ribeiro (2009) para classificar os magistrados e os servidores públicos que trabalham no Poder Judiciário, respectivamente, no sentido, inclusive, de desmistificar a ideologia que impede os servidores públicos de perceberem sua vinculação de classe.

12 A judicialização ou tribunalização dos conflitos sociais refere-se ao complexo fenômeno de transformar em uma questão administrativa e institucionalizada questões sociais cujas origens estão nas relações sociais, ou seja, quando o Judiciário é acionado pelos “excluídos” para dirimir conflitos relacionados ao processo de expropriação da riqueza e dos benefícios sociais (FARIA, 2001).

13 Servidores públicos é o termo utilizado para designar os trabalhadores vinculados ao Estado, são pessoas que ocupam cargos públicos.

Segundo Ribeiro (2009, 2008, apud Alves e Palmela, 2011), nos anos 2000, no Judiciário, surgem com maior frequência problemas de insatisfação no trabalho e adoecimento dos servidores, ocorrendo uma grande incidência de traumas e adoecimentos decorrentes das relações de trabalho autoritárias e estressantes ou do cumprimento de ordens judiciais de caráter perverso, a exemplo das ações de reintegração de posse, que despejam famílias carentes, no caso dos oficiais de justiça (RIBEIRO, 2009). Na mesma linha de análise, ao apresentarem as repercussões do trabalho na saúde dos servidores do Tribunal de Justiça de São Paulo, Delía e Seligmann-Silva (2014) destacam alguns fatores que possibilitam a compreensão da relação saúde – trabalho – adoecimento nessa instituição judiciária, quais sejam: a ampliação das demandas para o Judiciário pelo processo de judicialização da questão social, sem o aumento do contingente dos servidores e sem uma reestruturação do Órgão para atender às transformações econômicas, políticas, sociais e culturais em curso; a descrença na instituição pública e, consequente, desvalorização da função do trabalho público na sociedade moderna; a escassez de funcionários e a lentidão burocrática na implementação de concursos para ampliação dos quadros, dentre outros fatores mais relacionados à organização do trabalho.

Além destes, outros obstáculos impõem-se ao Judiciário, dificultando o cumprimento de sua missão constitucional de dirimir conflitos e de aplicar as leis, diante do agravamento das contradições sociais: está-se falando da tarefa de mediar a disputa democrática pelo poder político via processo eleitoral. Trata-se das particularidades da Justiça Eleitoral, cuja atuação está voltada para operacionalizar o poder arbitral do Estado, com a finalidade de “gerir e arbitrar o processo eleitoral” (LAMOUNIER, 2005, p. 40), está, portanto, circunscrita ao campo conflituoso e contraditório inerente ao processo de democratização da política.