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CAPÍTULO I: ESTADO E PODER JUDICIÁRIO: particularidades dos Tribunais Eleitorais no Brasil

1.4. Os Tribunais Eleitorais no Brasil e a democracia

Para compreender a intervenção profissional do assistente social na saúde mental dos servidores públicos dos Tribunais Eleitoral, no Brasil, inicialmente, foi necessário conhecer a missão, os objetivos e a estrutura organizacional deste espaço sócio-ocupacional e, fundamentalmente, o lugar do serviço social nesse

espaço, para, então, poder se aproximar sucessivamente do objeto de estudo proposto neste trabalho.

Conforme foi acima referido, a Justiça Eleitoral é um órgão integrante do Poder Judiciário, de jurisdição especializada, cuja missão constitucional é a garantia do respeito à soberania popular e à cidadania política, portanto à democracia; sua criação é resultado de um processo histórico, determinado pelas contradições de classe, consubstanciadas no conflito de interesses entre capital – trabalho, o que no Brasil ocorre com maior vigor na década de 1930. Vincula-se, assim, à instituição da democracia representativa no Brasil, no bojo do Estado Democrático de Direito. Sendo assim, o surgimento da Justiça Eleitoral está diretamente vinculado ao processo de institucionalização dos conflitos sociais inerentes à participação na vida político-eleitoral, ocorrido com o desenvolvimento da República brasileira, momento em que a burguesia começa a se afirmar como classe politicamente dominante, implicando também, pelas contradições de classe, no surgimento do operariado, o qual também começou a se organizar, exigindo o reconhecimento de seus direitos também na esfera da política. Nas palavras de Coutinho (2008, p. 62),

as conquistas da democracia enquanto afirmação efetiva da soberania popular – o que implica, como condição mínima, o direito universal ao voto e à organização (em suma, o direito à participação) – têm resultado sistematicamente das lutas dos trabalhadores contra os princípios e práticas do liberalismo excludente, defendido e praticado pela classe burguesa.

Nesse sentido, é com a instituição da democracia representativa, consubstanciada no exercício do poder político pelo povo de forma não direta, mas por meio de representantes eleitos, que surge e se desenvolve a Justiça Eleitoral. Segundo Coutinho (2008), a democracia de base representativa é imprescindível no mundo moderno, em decorrência da complexidade alcançada pela estrutura social e, notadamente, pela sociedade civil, constituída por uma diversidade de sujeitos políticos coletivos (partidos de massa, associações profissionais, sindicatos), imbuídos da tarefa de defender os interesses das classes sociais e suas frações. Tem-se, então que, na modernidade, a situação peculiar aos primeiros Estados liberais, qual seja a existência de indivíduos atomizados lutando por seus interesses econômicos e do Estado como representante único do interesse público, deixa de existir. “Surge uma complexa rede de organizações, de sujeitos políticos coletivos” e “o pluralismo deixa de ser um pluralismo de indivíduos atomizados para

se tornar um pluralismo de organismos de massa” (COUTINHO, 2008, p. 27). Sendo assim, foi criada em 1932, a Justiça Eleitoral brasileira, por meio do Decreto nº. 21.076 que instituiu o Código Eleitoral; segundo Sadek (2005, p. 109), esta instituição nasce como

condição para a realização daquilo que se denominava de 'verdade eleitoral'. Essa grande bandeira trouxe também consigo o voto secreto. A Justiça Eleitoral tornou-se responsável pelo alistamento, pela apuração dos votos e pelo reconhecimento e proclamação dos eleitos. Também ficou incumbida de expedir instruções complementares à legislação eleitoral, dividir municípios em seções eleitorais, distribuir os eleitores pelas seções e formar mesas receptoras.

Os Tribunais Regionais Eleitorais, por sua vez, surgiram no bojo do processo de redemocratização, pós-ditadura do Estado Novo, quando, por força do Decreto- Lei nº 7.586/1945, foi restabelecida14 a Justiça Eleitoral e determinado o alistamento eleitoral em todo o país. A partir de então, iniciou-se o processo de divisão interna dos estados em Zonas Eleitorais. Desta forma, segundo Coutinho (idem), a socialização da participação política coloca a necessidade de socialização dos mecanismos e processos para governar a vida social, ou seja, coloca em pauta a questão da socialização do poder, questão que traz inúmeras implicações ao trabalho nos Tribunais Eleitorais, pois, como visto, a esta Justiça cabe mediar esta relação de disputa pelo poder político.

No bojo dessa discussão, compreender as particularidades desses Tribunais ou missão, faz-se necessário fazer uma distinção entre os conceitos de democracia política, consubstanciada no sistema representativo e o de democracia social, pois, embora, estes apresentem uma relação de complementariedade15, são processos que possuem peculiaridades. A esse respeito, Sadek (2005, p. 103) esclarece que a democracia política refere-se a um “sistema de governo, a um sistema político, que envolve, antes de tudo, competição e eleições, eleições limpas, eleições competitivas”; ao passo que a democracia social diz respeito a “direitos sociais, ou seja, à possibilidade de participação de maneira igualitária nos bens de uma

14 Com o endurecimento do regime político do governo Vargas, conhecido por Estado Novo, a Justiça Eleitoral foi extinta, assim como foram abolidos os partidos políticos, foram suspensas as eleições livres e estabelecidas eleições indiretas para a presidência da República, com mandato de seis anos.

15 Trata-se de uma relação de complementaridade, pois a democracia social, na visão marxista, é um processo muito mais amplo, relacionado à socialização da riqueza e do acesso aos bens socialmente produzidos, sendo incompatível com o capitalismo.

determinada sociedade”. Ora, se a contemporaneidade é marcada pelo avanço do Estado neoliberal cujo caráter é restritivo aos direitos sociais, conforme já abordado, só pode ter como resultado uma série de insatisfações e desejos de mudança da população brasileira.

Nesse processo, a conquista do poder político é elemento de extrema importância para as classes sociais imporem seus interesses e seus projetos societários particulares, ou seja, é elemento fundamental na luta pela hegemonia, conforme apresentado por Gramsci em sua visão de Estado ampliado, em que as classes e suas diversas frações disputam a direção da sociedade, tanto na sociedade civil quanto na política. Diante disso, não é difícil deduzir o potencial de conflito e tensão social presente no processo político-eleitoral, pelo nexo existente entre eleições e a suposta democracia (SADEK, 2005). Segundo esta autora, é impossível existir democracia sem eleições, uma vez que estas correspondem a uma “forma de escolha, uma forma de seleção da elite governante, do grupo com posições de mando” (idem, p. 103), responsável pela condução da vida política e social das nações. A esse respeito Balbachevsky (2006, p. 192) refere-se que

a existência de oposição é um fato inerente a todo e qualquer processo político. Tomado em sentido amplo, é através da política que toda a sociedade enfrenta uma questão crucial: quais os critérios que irão presidir a alocação da riqueza e dos valores socialmente produzidos. Uma vez que esta riqueza e estes valores são finitos, a insatisfação é um resultado previsível em qualquer decisão política. Isto significa que o processo político sempre traz latente uma dose de competição que pode no máximo ser abafada, mas nunca eliminada. Pois bem, a 'invenção moderna' está em criar mecanismos para absorver esta competição, institucionalizando procedimentos capazes de dar voz à insatisfação, ao mesmo tempo que neutralizam os componentes desagregadores presentes na atividade da oposição, tornando-a alternativa de governo.

Sob esta ótica, a Justiça Eleitoral tem a finalidade constitucional circunscrita à preservação dos direitos e garantias fundamentais relacionados ao processo eleitoral, necessários à construção e ao exercício da democracia brasileira (BRASIL, 1988). No que tange à sua estrutura, conforme já tratado neste trabalho, esta Justiça é formada por uma instância superior - o Tribunal Superior Eleitoral, com sede em Brasília, sendo constituída por este e pelos Tribunais Regionais Eleitorais localizados um em cada estado brasileiro e um no Distrito Federal.

Com relação à estrutura administrativa dos Tribunais Regionais Eleitorais, esta é composta, em essência, e de forma permanente, por: uma Secretaria, que

tem por finalidade a execução dos serviços administrativos do órgão, e por Zonas Eleitorais, cujas atribuições estão diretamente relacionadas à sua finalidade precípua, qual seja: o gerenciamento e execução do processo eleitoral, sendo consideradas, por isso, unidades de importância estratégica. Esta justiça especializada possui uma dinâmica diferenciada, explicitada, dentre outras particularidades, pelo fato de não possuir uma magistratura própria, organizada em carreira, o que permite que atuem, em sua esfera, magistrados de outros tribunais como, por exemplo, do Supremo Tribunal Federal (STF), do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e da Justiça comum Estadual, esta no âmbito dos Tribunais Regionais Eleitorais.

O trabalho nos Tribunais Regionais Eleitorais está voltado, em essência, para a organização do processo eleitoral (alistamento eleitoral, votação e apuração dos votos, diplomação dos eleitos, dentre outros), o qual ocorre bianualmente, intercalando a realização de eleições para a escolha dos representantes políticos municipais (prefeito e vice-prefeito e vereadores) e a efetivação das eleições voltadas à escolha do Presidente e Vice-presidente da República; governadores; deputados federais; deputados estaduais e senadores.

O quadro funcional é composto por servidores públicos com vínculo efetivo, ocupantes dos cargos de analista e técnico judiciários, os quais ingressam no órgão por meio de concurso público; e por outras categorias funcionais, tais como: servidores públicos requisitados de outros órgãos (em sua maioria, municipais e estaduais); servidores removidos de outros órgãos; servidores sem vínculo com o serviço público (ocupantes de cargos comissionados); funcionários terceirizados e estagiários, os quais atuam como suporte às atividades desenvolvidas no Órgão.

No que tange às tarefas executadas, tais servidores desenvolvem ações relacionadas à efetivação do processo eleitoral, o que envolve: inscrição de eleitores; emissões de certidões eleitorais; registros de candidaturas; revisão de eleitorado; vistoria e preparação de locais de votação; preparação das urnas eletrônicas; análise de prestação de contas de partidos políticos; fiscalização de propaganda eleitoral; fiscalização de contratos administrativos; atividades de pesquisa de legislações; elaboração de pareceres técnicos/jurídicos; autuação e instrução de processos judiciais; execução de atividades relacionadas com o planejamento e à operacionalização de projetos, programas e planos de ação estratégicos; etc.

Importa ressaltar que as referidas atividades se intensificam em ano eleitoral, entretanto, não se restringem a esse período, uma vez que os atos administrativos, jurídicos e de planejamento referentes às eleições são executados de forma contínua pelos tribunais. Conforme pode ser constatado, cabe assinalar que o trabalho na Justiça Eleitoral possui características particulares, delineadas, sobretudo, pela mediação essencial que determinou a criação dessa instituição na sociedade brasileira: a instauração do regime democrático recente em nosso país e todo seu potencial de conflitos, demarcado por disputas políticas acirradas entre os projetos societários divergentes.

Trata-se da existência de um tensionamento permanente entre os sujeitos em disputa pelo poder (partidos políticos), especialmente no período eleitoral, o que redunda em pressão política acirrada e vigilância constante dos serviços prestados nas Zonas Eleitorais. Na realidade, tal contexto reflete o acirramento das contradições na relação capital-trabalho e da conflitualidade que lhe é inerente, os quais assumem dimensões ímpares na disputa eleitoral, afetando a própria dinâmica de trabalho deste Órgão. Desse modo, acompanhando o movimento histórico marcado pelo avanço da política neoliberal e por inúmeras restrições impostas à efetivação dos direitos sociais, portanto, por retrocessos na construção da democracia social, a Justiça Eleitoral chega à contemporaneidade com inúmeros desafios ao cumprimento de sua missão.

Desafios estes expressos na precarização do serviço público, ocasionada pelas reformas do Estado e do Judiciário, conforme já exposto, o que degrada as condições de trabalho e de vida dos trabalhadores, em geral, e em particular, dos servidores deste ramo especializado da Justiça, atingindo, consequentemente, a saúde dos mesmos, especialmente, no que se refere à saúde mental. Sendo assim, essas mediações são importantes para entender o processo de saúde-adoecimento apresentado pelos servidores desta justiça especializada e possibilitam a compreensão do surgimento de novas demandas para o Serviço Social neste espaço sócio-ocupacional, no âmbito da saúde mental dos servidores.

Cabe destacar que, no Poder Judiciário, a inserção histórica do Serviço Social esteve atrelada à chamada área sócio-jurídica, na qual os conflitos são resolvidos pela impositividade do Estado (BORGIANNI, 2013). Aqui, inserem-se as ações relacionadas à área jurídica como o sistema de segurança, o sistema penitenciário, os sistemas de proteção e acolhimento, dentre outros (FÁVERO,

2003, apud BORGIANNI, 2013). Assim, segundo Fávero, Melão e Jorge (2005, p. 47), “os assistentes sociais começaram a atuar no Judiciário Paulista, no então denominado Juizado Privativo de Menores, como comissários de vigilância” e, no início dos anos 1980, houve uma ampliação das demandas para esta área especializada, circunscrita à saúde dos servidores do Tribunal de Justiça de São Paulo, com a criação, à época, da Unidade do Serviço Social do Trabalho.

Sendo assim, Souza (2004), por exemplo, situa o surgimento e expansão do Serviço Social no Judiciário, em Brasília, no movimento de redemocratização do país, na década de 1980, que resultou no reconhecimento dos direitos coletivos e sociais e no reordenamento da estrutura jurídico-legal e sócio-institucional dos órgãos do poder judiciário locais, quando:

ao judiciário coube dar, de um lado, as garantias tanto jurídico-legais de acesso dos cidadãos, agora sujeitos de direitos, aos seus direitos individuais, coletivos e sociais e, de outro, as garantias sócio- organizacionais de acesso dos seus servidores, trabalhadores também na condição de sujeitos de direitos, a serviços sociais voltados para o seu bem estar (SOUZA, 2004, p. 120).

Na Justiça Eleitoral, particularmente, nas instituições que se constituem como campo da presente pesquisa, ou seja, os Tribunais Eleitorais, esta inserção vem ocorrendo também na área da saúde do trabalhador, no lastro dos anos de 2000. Em essência, conforme relato dos assistentes sociais, esta área especializada passou a compor as equipes de saúde dos referidos Órgãos, pela necessidade de intervenção destes profissionais nas demandas relacionadas aos afastamentos dos servidores do trabalho por motivo de adoecimento, cujas estatísticas estavam crescendo.

É mister destacar que todos os profissionais sujeitos desta pesquisa foram unânimes em afirmar que as demandas relacionadas à saúde/adoecimento mental de servidores são frequentes nesse espaço sócio-ocupacional, com destaque para os quadros de depressão e ansiedade. Assim, cabe analisar como se desenvolve e quais as particularidades da intervenção profissional do assistente social na área da saúde, em especial da saúde mental.

CAPÍTULO II: SERVIÇO SOCIAL, SAÚDE E SAÚDE MENTAL: uma análise da