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4. CULTURA ACÚSTICA E TRADIÇÃO XAKRIABÁ

4.3 Batuque, um canto dançado

O batuque é uma prática da cultura Xakriabá não atribuída à cultura dos antigos, mas sim entendida como um elemento da mistura, não menos importante. Como termo genérico a palavra batuque foi utilizada por pesquisadores diversos para designar todo e qualquer tipo de dança praticada no sudoeste da África como também as tradições africanas sobreviventes no Brasil. Assim, temos o uso do termo batuque frequentemente em estudos sobre grupos e culturas de tradição afro-brasileira. Em estudo sobre o batuque, Araújo (2017) faz uma análise da utilização do termo e do desenvolvimento de seus significados e usos por diferentes pesquisadores. Interessa-nos em sua análise a descrição do batuque como um canto e dançar acompanhado por palmas e pisadas no chão frequentemente acompanhadas de instrumentos que podem variar de região a região.

A condição dos africanos nas américas e o projeto colonizador de fragmentação das línguas, etnias e tradições colocou aos negros, como regra para sua sobrevivência, o reagrupamento social. Sendo assim, desprovidos de sua história, nomes, práticas coletivas específicas dos grupos étnicos, enfim, distanciados de seus pares, na diáspora, o povo negro africano havia que se reiventar. Esta adversidade provocou o apagamento de tradições singulares, sendo este o principal fator da dificuldade em se estabelecer um conceito definido e homogêneo do batuque. O que sabemos é que o termo foi frequentemente utilizado para classificar as reminiscências dos cantos de dançar africanos no Brasil. Podemos ver diferentes manifestações de cantos de dançar no Brasil que terão esta mesma designação.

Interessa-nos aqui que as formas específicas de transmissão da poiesis afro- brasileira nas comunidades tradicionais não se diferem das formas específicas de transmissão da poieis da tradição indígena, o uso da oralidade. Os cantos de dançar, como o batuque, de forma geral situados nos modos de transmissão oral, mantêm-se vivos pelos ensinamentos dos mais velhos. A continuidade de sua tradição se dá especialmente pelos processos da oralidade e da performance empreendidos pela coletividade.

Das vivências junto a Sr. Valdemar e Deda participei de algumas rodas de batuque acompanhando o grupo de cultura da aldeia Prata. O batuque é uma expressão da cultura Xakriabá aprendida com os negros, baianos, que se misturaram aos índios em diversos momentos da história – dois momentos específicos são mais significativos da chegada dos de fora: no período colonial quando os negros sob a condição de escravizados fugiam das fazendas e no período da grande seca na segunda metade do século XIX que assolou o nordeste brasileiro trazendo migrantes para o norte de Minas Gerais. Se os baianos poderiam ou não ficar no então chamado terreno dos caboclos, atual TIX, isto teria de ser permitido pela Onça Cabocla consultada pelos conversadores para dar o veredito de sua permissão ou negação.

Os que se instituíram na terra indígena passaram a construir laços de compadrio e parentesco através de inter casamentos nos termos de Santos (2010), assim se consolidavam as alianças. Vale lembrar que estes casamentos eram permitidos somente em algumas aldeias da TIX sendo o casamento entre índios e não-índios não permitido até os dias atuais, em algumas aldeias. Em outras permite-se o casamento entre índios e não-índios, mas não é permitido ao novo casal viver dentro da Reserva. Voltemos às alianças entre negros e índios estabelecidas pelos momentos acima citados, onde a mistura se fez pela partilha e pelas trocas culturais. O diálogo inter étnico e intercultural dentro da TIX permitiu aos Xakriabá compartilhar com os outros não só o sangue, mas também muitos conhecimentos em todos os âmbitos da vida: o trabalho, a roça, a religião, as festas, a música, as danças, as histórias contadas, entre outros. Um dia eu comentava com Sr. Valdemar sobre a noite anterior, a dança do batuque, quando ele me contou sobre as danças que havia na TIX,

Pruque o índio mesmo num era invorvido com negócio de forró não. Era batuque, uma contra-dança. Era contra-dança, frango, a roda, a dança de ariri, é esse… tal do chula que saía de um a um sapateano, sapateava e cabava batia no solado do pé com uma mão e dava tudo certo. Aí o frango era dado o braço, se um errá o oto erra tomém, aí é os par, ali tem os meero, um home e uma muié que cumeça na frente, aí eu dô o braço aqui recebo o que vem dali nesse braço o daqui nesse, trocado. E a contra dança é em dois, um vai bate no oto com o ombro e roda, sapateia e vem trazê contra-dança, aí sai andano assim torna virá e bate no oto de ombro é, é contra-dança. E o batuque esse é mais visto. (Sr. Valdemar, junho 2017)

Ao contar sobre as diferentes danças o narrador nos dá um panorama da diversidade artística e cultural tecida pelas relações de alteridade dentro do território

Xakriabá. Pelo batuque52, percebe-se como os índios Xakriabá traçaram uma conexão incorporando práticas em geral tidas como “afro”. O que nos oferece um campo de análise dentro das relações afro-indígenas. Pois, nas práticas incorporadas e vivificadas na alteridade as fronteiras étnicas e culturais de duas diferentes matrizes étnicas são deslocadas e (re)inventadas. É importante ressaltar o uso da expressão “relações afro- indígenas” pela orientação de Goldman (2014),

Trata-se, na verdade, de identificar e contrastar não aspectos históricos, sociais, ou culturais em si, mas princípios e funcionamentos que podem ser denominados ameríndios e afro-americanos em função das condições objetivas de seu encontro. Pois o que se deve comparar não são traços, aspectos ou agrupamentos culturais, mas os princípios a eles imanentes. (GOLDMAN, 2014, p. 216)

Deste modo, pensar a relação afro-indígena não se trata de algo que está no âmbito da identidade ou do pertencimento – à este ou àquele grupo, “indígena” ou “afro”, genético ou tipológico –, mas sim no âmbito do devir, ou seja, de potencial transformador. O batuque se configura como um destes elementos trazidos pelos de fora que incorporado pelos índios Xakriabá, hoje é parte importante de sua tradição. Entre os Xakriabá, o batuque em sua forma poética se constitui pelo diálogo entre o solo e o coro com formas métricas e rimas memorizadas e, por vezes, improvisadas pelo solista respondidas pelo coro atento, o que pode fazer com que o batuque se transforme também em um momento de brincadeira e desafio com palavras.

Pial nadô, pial nadô no mar

Pial nadô nadô, quero vê Pial nadá

Pial nadô, pial nadô no mar

Pial nadô nadô, quero vê Pial nadá

Arroz da rocha amarelô Mato seu viado comeu

Arroz da rocha amarelô Mato seu viado comeu

Tá doida muié Tá doida muié minha

A muié matô o marido Com a faca na bainha

A corporeidade do batuque Xakriabá marcada pelas palmas, pelas pisadas e pelos giros e seu corpo musical pelas caixas e pelas palmas. A presença das mulheres é marcante dançando e cantando – essa substancial presença feminina pode também ser observada em outros batuques no Brasil. Nas noites de fogueira onde o batuque se fez presente, foi impossível não ser capturada pelo vibrar das caixas e das vozes agudas das mulheres, pela conversa das pisadas e do giro dos corpos, correspondi com meu corpo e me entreguei à dança.