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Buscar compreender a presença dos contadores de histórias na educação escolar indígena Xakriabá foi para mim uma tarefa prazerosa e complexa. Naveguei pelos conhecimentos acerca do reconhecimento como povo indígena Xakriabá e sua presença no território, sua organização social, aspectos de sua cosmologia e processos próprios de transmissão do conhecimento. Fui levada a entender a forma como é interpretado o contador de histórias na “cultura” Xakriabá e como a presença deste “homem- memória”, e dos saberes que o circundam, como professor de Cultura na escola, produz ressonâncias na educação escolar indígena Xakriabá. Pude também construir leituras sobre o diálogo entre a oralidade e a escrita nas práticas destes narradores professores e tecer conclusões que ressoam como a tradição oral, uma história que não se encerra.

O repertório dos contadores de histórias Xakriabá é vasto e variado, nas narrativas podemos perceber a composição do universo cosmológico Xakriabá, bem como sua cosmociência e cosmopolítica. A palavra de nossos contadores tem também a influência de diferentes culturas e isso se deve, principalmente, aos processos de contato e mistura, em que trocas diversas foram agenciadas. Sr. Valdemar Xakriabá e Deda Xakriabá têm uma participação ampla nas questões políticas, educacionais, sociais e culturais que envolvem seu povo, são lideranças e, além disso, possuem intenso contato com os de fora76 e outros povos indígenas, pois estão sempre saindo de suas terras para

participação em lutas diversas. Na educação Xakriabá, a palavra destes sábios de duas diferentes gerações – Sr. Valdemar tem 70 anos de idade e Deda tem 36 anos de idade – é semeada, cuidada e colhida, muitos procuram nossos narradores no intuito de aprender com eles. Suas palavras fazem ressoar conhecimentos da cultura, dos costumes e das tradições Xakriabá.

A oralidade, a ludicidade e a performance presentes no corpo e na construção da pessoa dos dois contadores de histórias professores de Cultura que acompanhei são o reflexo de muitos outros contadores de histórias que fizeram e fazem parte da história Xakriabá. A força motriz da memória é constitutiva dos saberes de homens e mulheres que buscam “viver o presente sem esquecer o passado”, utilizando uma expressão lema para o povo Xariabá que precisou reinventar-se, buscando na memória imaterial e material de seus antepassados (re)afirmar sua indianidade. Nesta cultura acústica, a

76 Este contato não é uma especificidade dos contadores de histórias que acompanhei. Vimos que está no âmago da história de mistura dos índios Xakriabá.

palavra é dotada de grande importância. Como um povo da palavra, os Xakriabá mantêm vivas muitas expressões da tradição oral amparadas no corpo e na memória, em diversas vozes que se inscrevem na performance.

Vimos a tradição oral como uma arte da movência que produz em suas performances ressonâncias, ao ter as narrativas transmitidas por diferentes corpos, tempos e lugares. Em uma cultura acústica, teremos sempre entrecruzamentos de vozes dos quais afloram a criatividade da performance e o dialogismo, pois as polifonias passam pelas pessoas que constituem a coletividade, o que faz com que em um discurso sejam acomodados outros discursos. Afinal, a memória que se transmite é a todo momento impulsionada por deslocamentos e transformações.

Estas reflexões permitiram compreender os contadores de histórias professores de cultura também como um espelho para os índios Xakriabá, pois estão profundamente envolvidos com diversos aspectos de sua cultura. O intenso movimento de Sr. Valdemar e Deda dentro e fora do território, as constantes visitas para conversas em busca de novos conhecimentos que recebem em suas casas e suas práticas como professores de Cultura nos dizem de suas posições como lideranças, mas, principalmente, revelam o lugar de conhecedores, sábios e mestres que ocupam no grupo Xakriabá. São guardiões, repositores e multiplicadores da ciência, da crença e da sabedoria, seus conhecimentos compartilhados nas aulas de Cultura, nas Noites Culturais, em reuniões das Associações Indígenas, em encontros como no I Encontro da Juventude Indígena Xakriabá no ano de 2017.

Nas vivências junto aos contadores de histórias e depois nas análises de suas narrativas foi possível compreender como se articulam a oralidade e a escrita nos processos de aprendizagem e de circulação do conhecimento e dos saberes passados de geração em geração. Os Xakriabá compreendem muito bem a força da confabulação entre a oralidade e a escrita. A forma complementar como se utilizam da oralidade e da escrita, e esta última como instrumento de luta e de possibilidades de construção de diálogos resistentes com a sociedade nacional, nos diz também como a escola para os Xakriabá é um lugar de reinvenção onde circulam a cultura e a “cultura”.

Nas aulas que observei dos contadores de histórias professores de Cultura, o ensinamento está ligado à vida nas aldeias, com forte presença da corporalidade, a experiência fica profundamente gravada no corpo e na memória. Vemos que, diferentemente da forma como os conhecimentos circulam na nossa escola ocidental, os conhecimentos indígenas não são disciplinares ou compartimentados. A escola, que

chega como uma fôrma pronta para os Xakriabá, vai ganhando ao longo dos anos seus moldes próprios, principalmente pela atuação dos “professores de Cultura”, nesta pesquisa também contadores de histórias. As aulas de Cultura são práticas vivenciadas por todos, assim como a “cultura”. As situações de aprendizagem acontecem com pessoas de diferentes idades, quando cada uma participa e aprende a seu modo. As práticas das aulas de Cultura são para os Xakriabá instrumentos de empoderamento para sua autonomia, tendo como base o fortalecimento da identidade e da cultura indígena.

Vimos ainda que para os índios Xakriabá a luta não se finda. A conquista dos direitos à educação, cultura, terra, enfim, o direito a uma vida em conformidade com seus modos próprios de produção e transmissão do conhecimento é, como diz Sr. Valdemar, “para quem ‘inda num chegô nessa terra”. Tendo a educação como ferramenta de luta e como espaço de fronteira, permitindo o diálogo intercultural, foi possível vivenciar nesta pesquisa momentos em que jovens indígenas se encontram intensamente envolvidos nos saberes e fazeres de seu povo, buscando nos conhecimentos tradicionais e na sabedoria dos anciões Xakriabá a afirmação de sua identidade.

É importante ressaltar o significativo momento de organização da juventude indígena Xakriabá, com o objetivo de fortalecer as bases de diálogo e de luta, como também fortalecer a população Xakriabá em sua organização política e social, tendo na cultura, tradição e costumes a sustentação. Rememorando as palavras de Sr. Valdemar: “Educação é a luta, Toré é a sustentação”. O protagonismo da juventude Xakriabá em todos os âmbitos e assuntos de seu povo é também um reflexo da configuração da educação e da escola no território. Constituída principalmente pelos processos de transmissão onde a “cultura” é exaltada e valorizada, a escola Xakriabá não se olvidou de ser um instrumento importante para os índios nas lutas pelo reconhecimento. Observamos a escrita, as práticas de letramento desde os primórdios da instrução escolar na TIX como ferramenta de luta.

A cultura acústica Xakriabá ressoa na voz de seus conhecedores, nela coabitam a cultura, a tradição e os costumes Xakriabá. Os contadores de histórias são os conhecedores que fazem circular as narrativas históricas e identitárias, numa palavra que tem sabedoria, ludicidade e poder. Sobre os professores de Cultura, Sr. Valdemar nos disse: “o distino dele é sê conhecedô”. São conhecedores ao modo dos mestres de nossa cultura popular, aquele que sabe e ensina, compartilha seu saber mantendo vivas a memória e a tradição de forma inventiva, fluida, consistente e resistente, como as águas

do rio São Francisco, cujas margens em uma porção no município de Itacarambi deverão ser devolvidas aos Xakriabá. Após compreender quem são estes dois sujeitos no contexto Xakriabá, entendo que as categorias “contadores de histórias” e “professores de Cultura” são sinônimas.

E que a força dos encantados, da espiritualidade, da “cultura” e dos sábios continuem presentes na escola Xakriabá, construindo uma educação viva e fortificada na memória, no saber-fazer e no ser Xakriabá.

Os escritos deste trabalho deixam também a reflexão para nós educadores não índios. Que, a exemplo da forma como os índios Xakriabá (re)inventam sua escola, a escola não indígena possa também agir em resposta a um projeto hegemônico de educação colonizada, subordinada ao colonialismo, instrumento de dominação com base em técnicas e conhecimentos a serviço da homogeinização. O espaço de ensinar e aprender na educação Xakriabá não presta serviço a uma cultura única, de um único mundo, mas sim tece conhecimentos em conformidade com a “cultura” e a cultura, construindo uma formação humana que os possibilita transitar e aprender com e nas fronteiras.