• Nenhum resultado encontrado

2. ÍNDIOS XAKRIABÁ: TESSITURAS ETNOGRÁFICAS E TEÓRICAS SOBRE

3.2 Os contadores das histórias que ouvi

3.2.2. Deda Xakriabá, aldeia Imbaúba I

Deda é contador de histórias, morador da aldeia Imbaúba I. Aos 36 anos de idade, é também professor de Cultura na Escola Estadual Indígena Bukimuju e atua na frente de luta pela terra organizando e coordenando o grupo Jovens Guerreiros Xakriabá. Como Sr. Valdemar, Deda também é uma pessoa de referência em sua aldeia. Melhor, ambos são referência em todo o território Xakriabá. Na casa de Deda, a movimentação é constante, professores de Cultura de todo o território vêm aprender, se aconselhar, tirar dúvidas com o jovem conhecedor. Enquanto acompanhei Deda, pude ouvir uma variedade de histórias, conhecer plantas medicinais, o território, participar de reuniões e manifestações ligadas à luta pela terra e conhecer muitas manifestações da cultura Xakriabá.

Conviver com Deda foi também compartilhar o dia a dia com sua mãe Mera e seu pai Bioi, pois o jovem contador de histórias no período em que ocorreu a pesquisa de campo não havia se casado e morava na casa de seus pais. Foram longas noites de conversas e de contação de histórias em que nos reuníamos na cozinha, a princípio toda Figura 18: À esquerda Deda observa e brinca com o arco-íris, aldeia Brejo Mata Fome. À direita Deda se prepara para dança ritual na Várzea Grande (área de retomada) em reunião com vereadores do município de Itacarambi. Foto autora, junho 2017.

a família, incluindo os irmãos de Deda, mas, enquanto a noite caía e aos poucos um a um ia se deitar, ficávamos Deda, dona Mera e eu cortando a madrugada. Dona Mera e Sr. Bioi são os grandes mestres de Deda, com eles e seus avós ele aprendeu muitas histórias que hoje reconta às crianças e aos jovens com quem atua. Da forma específica como acontecem os modos de aprendizagem na TIX, Deda aprendeu desde criança,

É a história ela é muito importante na minha vida e na vida de muitos, né?, os Xakriabá, que essa história é passada, tem umas história que elas é passada de geração para geração. Isso é já veio dos meus avós, do meu pai da minha mãe, mais também veio de ôtras pessoas, né?, que também não era de uma família próxima, mais que era parentesco do povo Xakriabá. Tem até ôtras histórias também que a gente sabe também que é de outro povo de acordo com essa caminhada que a gente faz também. Que hoje é muito importante porque quando os nossos avós nos repassa a gente procura memorizá o máximo, né?, pra que a gente repassa da mesma forma que a gente recebeu, e… muito importante porque na época do meu avô, da minha ‘vó e do meus bisavô, ês sempre tinha o momento de reuni a noite, fazê as foguerinha os foguin de lenha na frente da casa, tinha uns que fazia ‘té mesmo uma foguerinha den’ de casa um foguin den’ de casa e ficava por ali pra, até tarde contano história, é uma estória do passado a vida deles, é uma história tamém que já veio dos avós, sempre de pessoas mais antiga, isso foi passano. E tem uma ôtras história tamém que foi conseguida com outras pessoas lá de fora tamém que não era índio, mais quando chegava e contava algumas história que era interessante, né?, aquelas pessoas que tava por aí contano as suas história, a história de seu povo também achava interessante e acatava também. Aí dessa forma eles contava, reunia aquel’s véio, uma quantidade boa de anciões e por ali tava u’as criançada também, tinha a juventude, né?, aqueles que parava pra ouvi as histórias, parava para ouvi. E aqueles que não parava pra ouvi as história, mais por ali já tinha u’as cantoria de roda, tinha um ritual e por ali ia se desenvolveno uma atividade ali, essa era automaticamente ali e já ia pegano e memorizano, né?, porque nessa época tamém na escrita era poucas pessoa que sabia escrevê, né?, tinha uns que nem sabia escrevê, mais tinha a forma tamém de i buscá. Tinha história que ês não conseguia pegá pela primeira vez pedia pra repeti porque achava interessante achava bonito e por ali ia conseguino aprendê, guardava tudo na mente. E hoje com essa tecnologia, né?, tem muita juventude que usa a tecnologia tamém a nosso favô, e no meu caso mesmo eu simplesmente eu sei ligá um celular fazê u’a ligação pra alguém se o número tivé lá eu ligo, ou as veiz se ligá pra mim eu atende, mais um outra num sei manuzeá esses aparei. Mais pra mim repassá os meus conhecimento que já veio passado dos meus parentesco, aí a gente passa na sala de aula reúne os alunos aquel’ que trabalho com eles e quem tivé presente ali também que seja a juventude, que seja adulto, ‘té mesmo um ancião também tem horas que a gente convida eles pra participá da nossa aula de cultura e por ali a gente repassa as histórias […] (Entrevista Deda, junho 2017)

Nesta entrevista, em que ilustra os modos de aprender e ensinar as histórias no tempo dos seus avós, Deda nos dá um importante panorama de como algumas histórias foram introduzidas pelo contato e mistura em que se estabeleciam relações de partilha e não de conflito. De forma geral, as histórias do tempo em que os bichos falavam são consideradas de outras pessoas lá de fora e hoje compõem o vasto universo poético oral

do povo Xakriabá, sendo parte de sua cultura. Vemos que os modos de aprendizagem que envolviam e envolvem as histórias são mediados principalmente pela oralidade, como funcionam suas aulas de Cultura. Interessante verificar por meio de sua fala como as aulas de Cultura são espaços abertos de partilha, onde crianças, jovens e velhos se juntam para aprender.

A memória e a tradição oral ganham destaque nas palavras de Deda. Com o pouco ou nenhum contato com a escrita, o aprendizado haveria que se dar pela repetição e pela memorização, o que de certa forma garantia a constante performance de determinados textos orais. Penso que a presença marcante das rimas entre os índios Xakriabá está ligada a esta necessidade de memorização. Afinal, os padrões mnemônicos rítmicos moldados pela repetição oral são um recurso de memorização das culturas marcadas pela ausência ou quase total ausência da escrita. Hoje, mesmo com o recurso da tecnologia e vivendo em uma sociedade letrada, haja vista que Deda é da geração Xakriabá que completou a vida escolar com formação até o ensino médio dentro da TIX, Deda ensina as histórias da mesma forma como as aprendeu.

Na escola, quando chega todos “tomam a bença”, são todos parentes em menor ou maior grau. Suas aulas de Cultura estão sempre permeadas por narrativas e cantos da tradição Xakriabá. As histórias aprendidas com a família são recontadas às crianças e adicionadas a um repertório vasto entre muitas outras que nosso contador aprendeu a partir das trocas agenciadas com outros grupos indígenas com quem estabelece contato e relações por vias diversas. Deda está sempre fazendo viagens para fora, participando dos movimentos de luta indígena no que tange às questões territoriais, culturais, linguísticas e educacionais. É um homem jovem, mas que já se destaca entre as lideranças Xakriabá, sendo indicado pelos mais velhos líderes da aldeias de todo o território para coordenar e orientar o grupo dos jovens guerreiros Xakriabá. Função esta que Deda somente aceitou depois da autorização e apoio do pajé Vicente, com quem trabalha em parceria.

[…] É, nóis mesmo tem a juventude que quando o cacique não pode i, até mesmo em busca dos nosso direitos, nóis temos os nossos guerreros por parte da juventude que participa com as reuniões, né?, junto com os caciques e liderança e orientado pra ficá preparado quando fô em busca dos nosso direito em Brasília, em Governadô Valadares, em qualqué lugá q’ele precisá estamos pronto pra podê i lá. Se chegano lá tamém qualqué desafio, esses guerrero são preparado pra isso, pra podê contribui, né?, e fortalecê tamém os trabalho dos caciques. Porque tamém divide um poco essa tarefa. É mais um compromisso tamém pra juventude. Então é uma formação da juventude, né?, a gente é formado e formamos tamém os mais jovens. Então a gente tem esse

cuidado tamém pra não prejudicá o trabalho dos caciques e liderança, mais pra fortalecê a gente prefere trabalhá junto, e é isso. (Entrevista Deda, junho 2017)

Fazer pesquisa com Deda de fato é estar em meio à juventude. Sua casa é um ponto de referência para os jovens e isto fez com que eu me aproximasse cada vez mais da juventude Xakriabá, mas este é um assunto para outra pesquisa. O fato é que a movimentação de Deda em função das questões espirituais, de luta pela terra e coordenação dos jovens me levaram a vivências muito diferenciadas das que eu esperava antes de ir a campo. Fui percebendo que seu envolvimento com o grupo de jovens ia muito além das questões organizativas e de sua enorme capacidade de reunir as pessoas, ele “segurava” o espiritual junto aos pajés e anciões. Numa de nossas noites de conversa, sua mãe me revelou que Deda quase morreu quando era criança, porque vivia doente, mas foi com muita pajelança e remédio do mato que ele se curou. Seus desmaios pararam depois que os pais passaram a seguir uma série de interdições para a criança, descobriram por meio dos trabalhos espirituais que Deda não era uma criança comum. Outros fatos e o que o diferenciava dos outros era segredo. Eu tinha que ampliar o meu olhar. Imediatamente, liguei a história da infância de Deda à de duas outras crianças que não puderam se pintar no dia em que fizeram as pinturas corporais na aula de Cultura, eu ainda tinha muito a aprender com a ciência, a espiritualidade e o segredo Xakriabá.

Assim, durante os 20 dias de trabalho de campo em que estive diretamente com Deda, aprendi sobre muitas coisas além das histórias. A todo momento, Deda era solicitado em sua casa para algum atendimento a pessoas doentes ou em busca de remédios. Percebi, com relação aos remédios, que Deda trabalha sempre em parceria com sua mãe dona Mera, pajé Vicente e Preta, pois ambos são conhecedores de muitos remédios do mato. Preta Xakriabá é raizeira e parteira da aldeia Imbaúba I, conhecedora da ciência do rapé e consequentemente da ação das ervas, raízes, cascas, folhas e extratos animais que curam. Acompanhei Deda em alguns atendimentos, em outros fui impedida pelo segredo. Entendi que muitos males que Deda curava não dependiam somente de seus conhecimentos sobre as plantas, mas também de sua relação com a espiritualidade e a religiosidade indígena, segundo ele, para algumas coisas que ainda não está preparado, chama pajé Vicente.

De escuta sempre aberta e atenta, é benzedor, raizeiro, contador de histórias, artesão, jovem guerreiro, professor, pesquisador, conselheiro, sábio, aprendiz. Está

sempre envolto na busca pelos conhecimentos Xakriabá. Tem a presença e a força de um mestre ritual reconhecidas e solicitadas pelas comunidades da TIX em momentos onde o foco principal é o trabalho com a cultura e as tradições Xakriabá. Com Deda e os professores de cultura de sua geração começaram as noites culturais, reuniões quinzenais de aldeia em aldeia para o fortalecimento da cultura Xakriabá.

[…] E na comunidade é, por exemplo eu trabalho com a turma de aluno na sala de aula, mais também temos uma equipe que é da juventude juntamente com os anciões a gente forma esses grupos em cada aldeia pra nosso fortalecimento da cultura e nós fazemos as noite culturais. Sempre quando a gente pode é de 15 em 15 dia a gente faz. Mais quando não dá pra fazê as noite culturais de 15 em 15 dia nas aldeia isso é em rodízio, vai circulano ne todas as aldeia até passá e chegá pela segunda vez na nossa aldeia de novo. Isso fortalece porque muitos anciões que não consegue i nas ôtras aldeia pelo meno naquela aldeia que é a aldeia ’onde ele mora, tem uns que consegue i, né?, e quando vai e conta aquelas historia, aqueles ôtros juventude que tá participano que é de ôtra aldeia fica informado de muitas histórias. Histórias sobre luta da terra, terrô, muitos guerreros que tenha participado, né?, ôtros fala sobre as histórias dos curadô, as pessoa diferentes que tinha, os benzedô, raizeros, de parteros. […] Cada professô de cultura ou a comunidade que mora mais perto daqueles professô de cultura se reúne pra podê fazê um ritual, contá uma história e passá informação das reuniões e de ôtros encontros. É assim que vai repassano tamém a notícia, né?, é uma forma de repassá, de comunicá, é desse jeito. Isso sempre os nosso véios fazia assim, ‘travéz de um ritual, né?, e hoje sempre tem o dia especial que a gente faz não importa a distância que seja. Vamo supô, sai uns seis cumpanheros daqui pode sê juventude, saí lá pá Bahia, pra Brasília, enquanto nóis estamos lá com uma equipe os ôtros lá nessa data especial tão também concentrado ne ôtras regiões, pode sê distante. Aí dessa forma é uma forma tamém de a gente se comunicá através de nosso ritual e fortalecer os companheiros que tão na luta de frente. Os que não vai sempre fica fortaleceno de cá buscano esse fortalecimento, né?, pras energias sê sempre positiva. (Entrevista Deda, junho 2017)

A noite cultural foi tema de um dos trabalhos desenvolvidos no âmbito do SIE- Xakriabá no ano de 2015, quando trabalhei com professores da escola da aldeia Santa Cruz. É um rico momento em que acontece a contação de histórias ao pé da fogueira, jogo de versos e desafios em rima, cantigas de roda, batuque, samba, o que é o que é?, comidas dos antigos, enfim, as coisas da tradição. Será diferente em cada aldeia e sempre muito animado. Verifica-se na fala de Deda como a noite cultural foi criada como uma estratégia de diálogo entre aldeias e gerações, e como o fortalecimento dos costumes e tradições Xakriabá, com forte atuação da juventude neste sentido. Um aspecto novo para mim é a dimensão espiritual que toma a noite cultural, compreendo então o significado de “fortalecer” para os Xakriabá, que passa sempre pelo trabalho espiritual e identitário.

histórias nas suas aulas de Cultura. No caso de Deda está sempre acompanhado de Romildo Xakriabá e, por vezes, de Neguinho Xakriabá, dois jovens professores de Cultura da Escola Bukimuju, moradores da aldeia Imbaúba I e Imbaúba II respectivamente, ambos também muito atuantes em movimentos internos e externos do grupo Jovens Guerreiros Xakriabá. Romildo mora na mesma aldeia de Deda, são vizinhos muito próximos e agora parentes, pois em fevereiro de 2018, Deda se casou com a prima de Romildo. Romildo é um jovem professor de cultura que trabalha na escola sede e vinculada nas aldeias Brejo Mata Fome e Imbaúba I e por isso está dia a dia em parceria com Deda nas aulas, é um jovem aprendiz que tem em Deda um de seus mestres.

Com Deda e Romildo fiz diversas caminhadas nas matas, pude conhecer os caminhos antigos, trilhos no mato onde hoje passam também as motocicletas, participar da feitura de artesanatos, rapé, remédios, da fogueira de São João, das quadrilhas que são um fenômeno à parte e merecem uma investigação específica pela peculiaridade de sua performance. Finalizo com uma das rimas criadas por Deda para ensinar às crianças sobre a história do cacicado Xakriabá, escutá-la foi uma oportunidade de vê-lo em uma performance muito diferente do que eu tinha visto nos outros momentos de contação de histórias, seu corpo tomou uma nova dimensão e sua voz ecoou grave e firme,

Olha o canto deste guerrero Quando sai para caçá Mais quando chega no mato Ouvi os passos cantá Esse canto faz relembrar Dos guerreros que já tombou Um deles que venceu a luta Depois Jesus lhe chamou Quando lembro deste guerrero Dá vontade de chorá

É o saudoso Rodrigão Que por nós pos a lutá Este guerrero tinha uma frase Que nos faze relembrá: - Enquanto vivo estiver, pretendo continuá!

Figura 19: Aula de Cultura na Escola Bukimuju, Deda conta histórias para as crianças. Aldeia Brejo Mata Fome. Foto autora, 2017.

Figura 20: I Encontro da Juventude Indígena Xakriabá, Deda ao lado de lideranças. Aldeia Imbaúba I. Foto autora, outubro 2017.

Gavião bateu asas e rodopiô Gavião bateu asas e rodopiô A onça pintada dançô e cantô A onça pintada dançô e cantô

Sacudiu o maracá até assobiá Sacudiu o maracá até assobiá Quero ver gavião e a onça dançá Quero ver gavião e a onça dançá

Pianaheeei Pianahá Pianaheeei Pianahá Pianaheeei Pianahá Pianaheeei Pianahá

Gavião bateu asas e rodopiô Gavião bateu asas e rodopiô A onça pintada dançô e cantô A onça pintada dançô e cantô

Sacudiu o maracá até assobiá Sacudiu o maracá até assobiá Quero ver gavião e a onça dançá Quero ver gavião e a onça dançá

Pianaheeei Pianahá Pianaheeei Pianahá Pianaheeei Pianahá Pianaheeei Pianahá45 45 Faixa 4 CD – Anexo 1