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5. QUANDO “O CORPO PUXA A LÍNGUA”: A EDUCAÇÃO ESCOLAR XAKRIABÁ

5.3 Educação diferenciada no contexto escolar indígena Xakriabá

5.3.1. Peço licença para um parêntese, (Mas de que cultura e tradição eles estão

Nos dias em terras Xakriabá acompanhando Sr. Valdemar e os outros professores de Cultura da aldeia Prata, ouvi frequentemente as palavras cultura, tradição e costumes. Segundo eles, trabalhavam e eram procurados para falar da “tradição Xakriabá”, dos “costumes Xakriabá”, da “cultura Xakriabá”. Eles misturavam estas expressões e diversas vezes desconfiei que eram usadas como sinônimos. Neste ponto, eu também já desconfiava que as narrativas da luta diziam respeito a uma retomada não apenas territorial, mas também cultural, em que novamente ideias como cultura, tradição e costumes manifestavam-se a todo momento. Percebi que eu precisava organizar estas ideias para melhor compreender os significados dados a elas pelos Xakriabá.

Um dia conversando com Sr. Valdemar, já ansiosa por decifrar os códigos acima, eu tinha o gravador ligado e queria aproveitar o momento para fazer a pergunta. Mesmo estando convicta de que as observações talvez me dariam muito mais respostas do que uma simples pergunta, afinal eu já tinha minhas hipóteses acerca do assunto, eu

Figura 24: Deda Xakriabá e Romildo Xakriabá trabalham em parceria no preparo da aula de Cultura. Aldeia Imbaúba. Foto autora, junho 2017.

ainda queria perguntar. Ele estava falando de como viviam os antigos e novamente revelava-se o “trio” de palavras, que neste ponto já soavam como inquietantes para mim. Foi quando veio o silêncio:

Mas e cultura e tradição, o quê que é? Cultura com a tradição é uma só. E

a tradição é ligada na cultura. A tradição que a pessoa usa é o costume dele, antão é uma cultura. Pruque ó, as pessoa não índio ele tem a cultura deles, o que ele usa, que ele cresce de piqueno criado mais os pai veno virá uma cultura, agora se ele mudá é puquê ele qué, mas ele vai pegá o estatuto que ele foi criado. Às veiz tem um jove aqui mais ele nunca, se ele quisé ele nunca vai isquecê do jeito que nóis foi criado […] É um vivê, puquê se saí o grupo Xakriabá entrá lá na cidade cê separa ele de longe, cê óia o jeito, ês anda mais em grupo, é junto e… e aí condo cê chega na casa cê vê as diferença. Pruque as casa de pessoal branco num tem nada dipindurado assim ne parede, de índio tem. Então é custume. Cê vê fugão a lenha, fugão a lenha nessas casa é difícil tê, casa de índio tem. Tem ôta coisa, a casa do índio é pr’ocê chegá a madrugada a hora que o galo canta, cê chegá cê num vê a flecha do fogo acessa. O que tem aquele custume mais antigo, madrugada cê pode tê na certeza que ele tá acordado. (Sr. Valdemar, junho 2017)

Certa do cuidado que eu deveria ter para chegar a um entendimento do que significavam estes termos para o coletivo e não a partir de um ponto de vista individual, e de que eu estava somente começando o trabalho de campo, não busquei conclusões naquele momento. Procurei captar os sentidos dados à cultura, à tradição e aos costumes nas conversas e observações que fiz também na aldeia Imbaúba I, com Deda e com os outros professores de Cultura que o acompanhavam.

Santos (2010) procurou em sua investigação compreender a ideia de cultura para os Xakriabá. Na sua experiência etnográfica, compreendeu que o que os índio Xakriabá entendiam como cultura era construído nas interações com outras agências, outros povos e “culturas”. O autor percebeu que havia um consenso entre os índios Xakriabá de que tinham perdido a cultura e que, estando perdida a cultura, precisaria ser levantada, retomada. Assim, a ideia de cultura entre eles estava intimamente relacionada ao processo de levantamento da cultura em que buscam retomar os conhecimentos dos antigos, estes conhecimentos podem ser tanto um artesanato, como uma pintura corporal, a língua... Para tanto, estabelecem uma rede de relações entre eles, outros povos ou até mesmo não-índios trabalhando com instituições parceiras. Foi neste processo que os Xakriabá passaram a apontar determinados aspectos importantes à sua trajetória enquanto grupo, como, por exemplo, a relação com os mais velhos e com as reminiscências dos seus antepassados.

No cenário Xakriabá,71 a ideia de cultura ganha força, em um primeiro momento, à medida que, nos contextos de relação com os brancos, necessitavam provar sua indianidade durante o processo de reconhecimento do território. O processo de mistura, que no caso Xakriabá foi produtor de uma identidade, também nos dá um importante panorama do que os índios Xakriabá chamam de cultura. Afinal, vemos que a relação com a diferença se deu na incorporação de pessoas e consequentemente de costumes de fora. Neste sentido, é possível afirmar que cultura, na definição antropológica do termo, passa a fazer sentido para este povo no encontro com não índios.

Na acepção antropológica, o conceito de cultura percorreu um longo percurso histórico. Do século XIX, quando a antropologia toma para si o estudo da cultura, até os dias atuais, muitas formulações foram empregadas para o entendimento da cultura. Por sua realização como expressão da diferença, o termo cultura é constantemente atualizado. Na concepção de Geertz (1989), cultura é entendida como o processo pelo qual o homem confere sentidos ao mundo. Símbolos pelos quais indivíduos, sociedades e grupos identificam e organizam sua realidade. Sendo assim, através da cultura, o homem pratica a sua realidade. Conforme aponta Geertz, a cultura não pode ser considerada um conjunto de comportamentos concretos, seus símbolos ganham sentido no compartilhamento e nos significados que os grupos atribuem a eles e, portanto, estão em constante transformação.

Roy Wagner (2017), ao nos dizer de invenção da cultura – mas não invenção no sentido do que não é real ou do que é artificial, e sim a invenção como capacidade criativa; inventividade, capacidade de criar e colocar em prática –, nos chama a atenção para o fato de que o termo cultura por sua ambiguidade e seu sentido metafórico pode estabelecer dicotomias. A exemplo, entre invenção e convenção, pode ser uma invenção dos modos de vida e da própria vida, mas também algo que condiciona e fixa. Cultura é uma noção incorporada, um conjunto de convenções compartilhadas para dizer dos costumes, histórias, modos de fazer, enfim tudo o que é compreendido em suas vidas e, fazendo um deslocamento para o contexto atual, também para defender seus direitos e seus modos de viver e estar no mundo. O autor nos diz da necessidade da invenção da cultura para que os sujeitos possam abrir canais de comunicação entre diferentes contextos de cultura.

Podemos então pensar a proposição de Manuela Carneiro da Cunha (2009). A autora faz pensar como a noção de cultura é transformada e incorporada pelos povos indígenas e nos chama a atenção sobre os significados que a cultura assume nestes grupos. Pensando em formas de abrir canais de discussão e entendimento dos conflitos que situações de contato inter étnicos podem suscitar, a autora faz uma importante distinção entre cultura e “cultura” (com aspas), construindo interfaces interessantes para a compreensão de formas diversas de vida e de se relacionar com o saber, como é o caso dos diferentes grupos indígenas. A autora afirma existir uma expressiva dessemelhança entre as duas, mesmo que possamos identificar enunciações não tão distintas entre ambas, cultura e “cultura” não pertencem a um mesmo universo de discurso.

Ainda que sejam diferentes, como aponta Cunha (2009), cultura e “cultura” podem coexistir e as pessoas têm consciência de sua própria “cultura” ou alguma coisa parecida e também vivem na cultura. Ou seja, as pessoas tendem a viver ao mesmo tempo na “cultura” e na cultura. O pensar sobre a cultura tem efeitos dinâmicos, tanto sobre aquilo que ela reflete – cultura, no caso – como sobre as próprias metacategorias como “cultura” (CUNHA, 2009, p. 359-363). Assim, podemos entender a “cultura” como uma metalinguagem, ao mesmo tempo que os grupos indígenas utilizam esta ideia internamente em suas vivências cotidianas, também a utilizam de forma política para reivindicar direitos em situações de contato com o não índio, em um campo de permanentes negociações.

Em um levantamento sobre os usos e significados de cultura no interior dos grupos sociais, Barros (2009) elabora uma noção que julgo ser interessante aqui,

Como fenômeno anterior e exterior ao indivíduo, a cultura realiza-se quando incorporada e tornada identidade. Nessa linha de raciocínio, é possível afirmar que não existem culturas estáticas; existem, sim, sociedades em que o lembrar ocupa centralidade estruturante e outras em que a memória possui menor pregnância do passado, caracterizando-se pela multicentralidade. Lembrar e esquecer são, no entanto, dois momentos de toda e qualquer cultura. (BARROS, 2009, p.28)

Desta forma, a faculdade de lembrar e esquecer numa dada cultura transforma seus repertórios trazendo aos indivíduos novas possibilidades de vida entre si e no meio em que vivem. A cultura pode ser assim transformada, reinventada pelas reminiscências do passado e pelas vivências do presente. Como a ideia de “repertório” articulada por Taylor (2013), já descrita anteriormente, e como a ideia de invenção fomentada por

Wagner (2017), citada nesta sessão. Neste ponto, gostaria de retomar a prerrogativa deste último para dizer de tradição, esta estaria na mesma linha da cultura, seria inventada. Tomarei como base as ideias do historiador Éric Hobsbawn.

No que diz respeito à tradição, Hobsbawn (2017) se utiliza do termo “tradição inventada”. Propondo sua utilização em um sentido mais amplo, o termo inclui as tradições propriamente inventadas, construídas e institucionalizadas e também as tradições que surgem “repentinamente” e, da mesma forma, se estabelecem como as outras (construídas e institucionalizadas). O autor entende a tradição inventada como um conjunto de práticas de natureza ritual ou simbólica; estas práticas teriam por objetivo incorporar valores e comportamentos definidos por meio da repetição em um processo de “continuidade em relação ao passado”.

O autor explica o aspecto de invariabilidade das tradições, impondo práticas fixas como as repetições, em oposição ao costume, caracterizado por não impedir inovações e mudar até certo ponto. Mas o costume é limitado pela “exigência de que deve parecer compatível ou idêntico ao precedente”,72 tendo assim a função de

continuidade histórica. Destaca ainda que é relativamente desconhecido o processo pelo qual os complexos simbólicos e rituais são criados, considerando que a invenção de tradições seria um meio de formalização e ritualização sempre se referindo ao passado, mesmo que pela repetição. Contudo, acredita-se que a invenção das tradições produza sempre novos padrões quando as velhas tradições perdem a capacidade de serem flexíveis e adaptáveis.

No caso das elaborações sobre cultura, tradição e costumes no contexto do povo Xakriabá, não podemos perder de vista sua extensa capacidade de reinventar-se, mas sempre em conexão com as práticas e as comunicações simbólicas do tempo dos antigos. Não como um movimento nostálgico de voltar para o passado, mas de voltar ao passado revisitando a memória e performatizando os tempos na busca do bem viver. Observo ainda, entre os contadores de histórias professores de Cultura, o uso destes termos como sinônimos. Neste caso, optei por assim utilizá-los nesta pesquisa.

5.4 Professor de Cultura ou contador de histórias: modos de aprendizagem e