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Beatificação e canonização no Código de Direito Canônico de 1917

4 SURGIMENTO E BUROCRATIZAÇÃO DAS CANONIZAÇÕES: DO SÉCULO

4.4 Beatificação e canonização no Código de Direito Canônico de 1917

Constituída como corpo universal, a Igreja Católica precisa de normas que tornem visíveis sua estrutura hierárquica e orgânica. O Código de Direito Canônico (CDC) é o principal documento legislativo da Igreja e é baseado na herança jurídico-legislativa da Revelação e da Tradição. Compete ao CDC legislar sobre a hierarquia de seu governo, sobre o conjunto dos sacramentos, regras eclesiásticas e dogmas da Igreja, direitos e obrigações do clero e dos leigos.

O CDC de 1982, promulgado pelo papa João Paulo II (1978-2005), informa em seu prefácio que os dez primeiros séculos floresceram inúmeras coletâneas de leis eclesiásticas compostas, sobretudo por iniciativa privada, nas quais continham as normas dos antigos Concílios. Por volta do século XII, estas coleções e normas que por vezes tinham preceitos contrários entre si, foram compiladas pelo monge Graciano. Buscando a concordância destas leis, o Decreto Graciano constituiu a primeira parte da grande coleção das leis da Igreja que, a exemplo do Corpo de Direito Civil do imperador Justiniano, foi chamada Corpo de Direito Canônico, e continha as leis, que foram feitas durante quase dois séculos pela autoridade suprema dos Romanos Pontífices. (CÔDIGO DE DIREITO CANÔNICO, 1983).

Por volta de 1320 o papa Gregório IX (1227-1241), procurou reunificar a multiplicação das coleções pós-gracianas. Gregório IX (1227-1241) atribuiu ao dominicano Raymundo de Pennafort a incumbência de elaborar uma coleção de Decretais que não haviam sido acolhidas no Decreto de Graciano e que continuavam a ser observadas nos tribunais e no ensino do direito canônico. Para que não surgissem novas compilações, Gregório IX (1227- 1241) vetou novas publicações sem autorização da Santa Sé. As Decretais, como explicamos no capítulo III, tem caráter universal e obrigatório e contêm além de cânones apostólicos e conciliares, textos eclesiásticos e de direito romano. Contudo novos acréscimos foram feitos ao longo dos séculos, em especial com o papa Bonifácio VIII (1294-1303), que publicou as

Clementinas, ou seja, a coleção de Clemente V (1305-1314), promulgada por João XXII

(1316-1334).

Ainda de acordo com o prefácio do CDC de 1982, as leis seguintes, principalmente as da época da Reforma Católica/Concílio de Trento (1545-163), e as posteriores promulgadas

pelos diversos Dicastérios da Cúria Romana, nunca foram compiladas numa coleção, resultando num acúmulo de leis amontoadas ―… no qual não só a desordem, mas também a incerteza junta com a inutilidade e as lacunas de muitas leis fizeram que a própria disciplina da Igreja fosse posta, cada vez mais, em perigo e ao sabor da arbitrariedade‖ (CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO, 1983, p. XVI).

A fim de sanar este problema, no Concílio Vaticano I (1869-1870), foi pedido aos bispos que preparassem uma nova e única coleção de leis, mas, que devido a assuntos mais urgentes não puderam ser examinadas neste Concílio. Finalmente o Papa Pio X (1903-1914), logo no início do seu Pontificado, propôs coligir e reformar todas as leis eclesiásticas, encarregando a direção desta tarefa ao Cardeal Pedro Gasparri. A preparação do CDC de 1917 durou doze anos e com o falecimento de Pio X (1903-1914), ele foi promulgado no dia 27 de Maio de 1917 pelo seu sucessor Bento XV (1914-1922), entrando em vigor em 19 de Maio de 1918.

Portanto, foi no CDC de 1917 que todas as regras e procedimentos de beatificação e canonização provenientes dos papas Sisto V (1585-1590), Urbano VIII (1623-1644) e Bento XIV (1740-1758), foram organizadas e publicadas num documento único e universal. Estas regras estão contidas na segunda parte do CDC de 1917, que se chama "DE CAUSIS BEATIFICATIONIS SERVORUM DEI ET CANONIZATIONIS BEATORUM".33 Este Código, logo de início, afirma que fica a cargo da Congregação dos Ritos proceder sobre as causas dos santos e beatos e que tais causas podem ser sobre as virtudes ou martírios.

De forma geral, nas regras dos processos de beatificação e canonização do CDC de 1917, a Congregação dos Ritos estabelece que as seguintes demandas devem ser respondidas:

1. O candidato tem a reputação de ter morrido como mártir? 2. Se for confessor, praticou as virtudes cristãs34 em grau heroico?

3. Quais os fatos que estabelecem a reputação de martírio ou virtude heroica do candidato?

4. Existe algo em sua conduta, ou no conteúdo dos seus escritos, que sejam opostos à fé cristã e consequentemente sua candidatura possa ser negada?

33 O Código de Direito Canônico de 1917 pode ser consultado em Latim em: http://www.internetsv.info/Text/CIC1917.pdf Acesso: 12/04/12. E em Francês: http://www.clerus.org/pls/clerus/cn_clerus.h_centro?dicastero=2&tema=7&argomento=26&sottoargomento=0& lingua=1&Classe=1&operazione=ges_formaz&rif=454&rif1=454lunedi Nesta tese todas as citações do CDC de 1917 serão desta tradução. Acesso: 01/02/13.

34 O Catecismo da Igreja Católica explica que as Virtudes Cristãs se dividem em Teologais (Fé, Esperança e Caridade) e Morais ou Cardinais (Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança). Consultar http://www.vatican.va/archive/cathechism_po/index_new/prima-pagina-cic_po.html Acesso: 02/02/13.

5. Qual mensagem a beatificação e a canonização do candidato trarão a Igreja?

6. Os fatos ocorridos em detrimento à intercessão do candidato são inexplicáveis pela razão humana?

Se estas demandas forem respondidas de forma satisfatória à Congregação dos Ritos a causa seria aberta. Antes da causa ser aberta, era preciso ainda cumprir algumas etapas. A primeira dizia respeito ao fato de que o Can. 2101 estabelecia que para uma causa ser aberta era preciso ter transcorrido cinquenta anos da morte do candidato. Nesta fase preliminar, na qual ainda não havia nenhum processo estabelecido, algumas atividades poderiam ser realizadas pelos interessados na beatificação e canonização, como a arrecadação de dinheiro para os custos do processo, a seleção e documentação de relatos de favores divinos, e a publicação de biografias.

Esta etapa, como esboça Woodward (1992), era uma fase destinada à promoção do candidato e encorajamento da devoção privada com intuito de convencer o bispo da diocese no qual o candidato morreu que existia uma reputação persistente de santidade. Se o bispo da diocese julgasse que o candidato cumpria todas as normas estabelecidas pela Congregação dos Ritos, ele instaurava o Processo Ordinário. Quando concluído este Processo, outro era aberto em Roma na Congregação dos Ritos e era chamado Processo Apostólico. Antes de falarmos das regras dos processos de beatificações e canonizações do CDC de 1917, é preciso explicar, mesmo que de forma breve que eram e quais as funções de cada envolvido nestes Processos.

4.4.1 Os atores do processo ordinário e apostólico

Logo no início, no Processo Ordinário, quase todos os atores já faziam parte. Desta forma, todos os envolvidos (bispo, juízes, notários, requente e postulante, advogados da fé, advogados de defesa) deveriam manter sigilo sobre os acontecimentos e escritos. O Cânon 2037, § 3 preconizava também que além dos atores acima citados,

tous les témoins, sans exception ou dispense, doivent, outre le serment de garder le secret, jurer, avant d‘être interrogés, de dire la vérité, et après l‘avoir été, d‘avoir dit la vérité; les experts, les traducteurs, les réviseurs et copistes doivent jurer, avant d‘entreprendre leurs expertises, traductions, révision ou transcription, de bien accomplir celles-ci, et celles-ci terminées, de les avoir bien accomplies. Même l‘huissier doit jurer de bien remplir son office (CODE DE DROIT CANONIQUE 1917).35

35 Tradução Livre: Todas as testemunhas, sem exceção ou dispensa, deverão, além do juramento do segredo, jurar, antes de ser interrogado, dizer a verdade, e após ter jurado, os experts, os tradutores, os revisores

A partir da exigência do sigilo, temos idéia do montante de pessoas que faziam parte de um processo de beatificação e canonização. Desta forma, explicaremos brevemente as funções de cada envolvido neste Processo.

4.4.2 O postulante e/ou requerente da causa

Os postulantes e requerentes eram, como afirma Woodward (1993), os empresários do sistema. O requerente, como o próprio nome diz, era aquele que requeria a causa e reunia os meios financeiros para o pleno andamento desta. O requente poderia ser o postulante, ou escolher outra pessoa entre os arrolados pela Congregação dos Ritos para sê-lo. O postulante geralmente era pago pelo requerente, ao não ser que o fizesse por caridade.

Sua responsabilidade era representar os que a suscitavam, e orientar a causa. Estes apresentavam a causa aos juízes, escolhiam as testemunhas do processo, pagavam as contas, e determinavam quais dos favores divinos teriam maiores chances de serem aceitos como milagres. Contudo o dinheiro para dar prosseguimento à causa, como explicamos acima, não advinha do postulante e sim de um requerente ou grupo interessado na causa, em geral, ordens religiosas que queriam ver um dos seus beatificados. A exemplo podemos dizer que a causa de beatificação de Chiara Luce foi financiada pelo Movimento dos Focolares, grupo religioso no qual ela participava como leiga. Este dinheiro, de acordo com o Cânon 2007, 2° parágrafo, deve ser administrado de acordo com as normas dadas pela Santa Sé.

O postulante ainda acompanhava a causa até o fim, ou seja, a festa de beatificação e depois de canonização, rascunhando os textos para as homilias do papa e escolhendo as músicas. A partir do Can. 2004, o CDC de 1917, dispõe sobre as regras dos postulantes e requerentes. O CDC afirma que o postulante poderia agir em nome próprio ou de terceiros, ser laico ou sacerdote regular em Roma. Os que agiam em nome de terceiros deveriam apresentar o seu mandato no tribunal antes de serem autorizados a exercer o seu cargo. De acordo com Woodward (1993), na época de sua pesquisa quando a Congregação dos Ritos já havia se transformado em Congregação dos Santos, existiam cerca de 288 postulantes arrolados. Contudo, não conseguimos dados sobre o número de postulantes à época do CDC de 1917.

e copistas devem jurar também diante das traduções, revisões ou transcription que desempenharam um bom trabalho. Mesmo o oficial de justiça deve jurar por seu ofício.

4.4.3 Relatores e promotores da fé

Estes dois atores estavam presentes em todo o processo, desde a instauração do Processo Ordinário até o final do Processo Apostólico. Eram designados pela Santa Sé e cabia ao relator escrever tudo que foi discutido no decorrer dos processos. O Promotor da Fé, ou popularmente chamado de Advogado do Diabo, devia por sua vez, investigar a fundo a vida do candidato à beatificação, observando, e principalmente se detendo, em partes da biografia do candidato, se existissem, que poderiam ser alvo de objeção a sua santidade. Cabe lembrar, como citamos no III capítulo, que a criação dos Promotores da Fé data de 1625, quando o papa Urbano VIII (1623-1644) reformulou as regras de beatificação e canonização da Congregação dos Ritos.

4.4.4 Notários e advogados de defesa

Os notários ou tabeliães eram aqueles dotados de fé pública que formalizavam juridicamente a vontade das partes, certificando ainda a autenticidade dos documentos apresentados e expedindo cópias fidedignas dos originais. Estes deviam participar dos Processos anotando e verificando a autenticidade do que foi escrito pelos relatores, do que foi dito pelas testemunhas e Promotores da Fé, e autenticar ainda todos os documentos, cartas, livros, que compunham o processo de exame das virtudes ou martírio do candidato.

Cabia aos advogados, ao contrário do Promotor da Fé, defender o candidato a beatificação. O Can. 2018 informa os requisitos dos Advogados de defesa. Eles devem ter doutorado em direito canônico, ou, pelo menos, licenciatura em Teologia. Devem ainda ter feito um estágio ou com os advogados ou com a Promotoria Geral Adjunta da Congregação dos Ritos. Por fim, devem também portar o título de Advogado da Rota Romana.