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Uma das formas de exercício da soberania popular é a eleição de seus representantes mediante voto direto e secreto, de acordo com o art. 14, caput, da CRFB/88. Nem mesmo será objeto de deliberação proposta de emenda à Constituição tendente a abolir o sigilo do voto, por se tratar de cláusula pétrea insculpida no art. 60, § 4º, II, da CRFB/88.

Segundo Maria Arair Pinto Paiva68, “o voto secreto visa a preservar a liberdade de

escolha do votante. A legislação eleitoral, ao proteger o segredo do voto, livra o cidadão de possíveis represálias, pressões ou coações, proporcionando uma manifestação de vontade individual mais livre e independente.”. Todavia, a tutela da liberdade do voto não se limita exclusivamente à garantia do seu sigilo. Para Eduardo Fortunato Bim69, o caráter sigiloso do

voto não basta para garantir a liberdade e a independência do eleitor, uma vez que antes mesmo do ato de votar, a vontade popular já pode ter sido maculada. É preciso que se garanta, além do sigilo do voto, a igualdade de condições entre os candidatos e a liberdade de acesso aos cargos. Em seu voto-vista, proferido na ADI 4.578, o Ministro Gilmar Mendes70 , ao

discorrer sobre os mecanismos de controle disponibilizados nos regimes democráticos aos cidadãos, acentua a umbilical relação entre o caráter secreto do voto e a sua liberdade, considerando ainda a inafastável necessidade de garantia da igualdade de oportunidades entre os candidatos. Para o mencionado jurista,

Embora não esteja explícito nessa norma constitucional, é evidente que esse voto tem outra qualificação: ele há de ser livre. Somente a ideia de liberdade explica a ênfase que se conferiu ao caráter secreto do voto. [...]

O voto secreto é inseparável da ideia do voto livre.

A ninguém é dado o direito de interferir na liberdade de escolha do eleitor. A liberdade do voto envolve não só o próprio processo de votação, mas também as fases que a precedem, inclusive relativas à escolha de candidatos e partidos em número suficiente para oferecer alternativas aos eleitores.

68 PAIVA, Maria Arair Pinto. Direito político do sufrágio no Brasil (1822-1922). Brasília: Theasaurus, 1985, p.

54.

69 BIM, Eduardo Fortunato. O polimorfismo do abuso de poder no processo eleitoral: o mito de Proteu. Revista

de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 230, p. 113-139, 19 fev. 2015, p. 120-121. Disponível em:

<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/45918/45106>. Acesso em: 30 nov. 2017.

70 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.578. Brasília, DF, 16 de

fevereiro de 2012. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 7 dez. 2017.

Tendo em vista reforçar essa liberdade, enfatiza-se o caráter secreto do voto. Ninguém poderá saber, contra a vontade do eleitor, em quem ele votou, vota ou pretende votar. Portanto, é inevitável a associação da liberdade do voto com uma ampla possibilidade de escolha por parte do eleitor. Só haverá liberdade de voto se o eleitor dispuser de conhecimento das alternativas existentes. Daí a inevitável associação entre o direito ativo do eleitor e a chamada igualdade de oportunidades ou de chances (Chancengleichheit) entre os partidos políticos. [...]

Ressalte-se que o caráter livre e secreto do voto impõe-se não só em face do Poder Público, mas também das pessoas privadas em geral. Com base no direito alemão, Pieroth e Schlink falam de uma eficácia desse direito não só em relação ao Poder Público, mas também em relação a entes privados (Drittwirkung) (Cf. Pieroth e Schlink, Grundrechte – Staatrecht II, 2005 p. 277).

Assim, a preservação do voto livre e secreto obriga o Estado a tomar inúmeras medidas com o objetivo de oferecer as garantias adequadas ao eleitor, de forma imediata, e ao próprio processo democrático.

Mais que simplesmente cercear a liberdade de voto do eleitor, a cooptação ilícita de sufrágio fere o ideal democrático71 apregoado na Constituição Federal. Segundo Luís Roberto

Barroso72, a ideia de Estado Democrático de Direito nela assentada deriva de dois conceitos

que, apesar de próximos, são inconfundíveis: o de constitucionalismo e o de democracia. Enquanto a democracia representa a soberania popular e a vontade da maioria, o constitucionalismo traduz a supremacia da lei e a limitação desse poder soberano, emanado pelo povo, em prol de todos. A soberania é tida, por parte considerável da doutrina, como conceito relativo e histórico. Relativo porque, dantes considerado elemento essencial à constituição do Estado, atualmente é pouco visada, e até malvista, sob a perspectiva do direito internacional. Histórico por ter sido concebido sob égide do Estado moderno73, sendo desconhecida pelos

povos antigos, como os gregos74.

Relativamente considerada, a soberania pode ser encarada sob perspectiva interna e externa. A primeira diz respeito ao exercício da soberania nos limites do território estatal, onde não se subordinaria a nenhuma outra, enquanto a segunda se refere às relações desenvolvidas entre Estados soberanos, em tese, juridicamente iguais ainda que de fato não o

71 Eduardo Fortunato Bim assevera que “Os princípios por ele maculados [abuso de poder] estão relacionados

diretamente com o republicano e o democrático.”. (BIM, Eduardo Fortunato, op. cit., p. 118. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/45918/45106>. Acesso em: 30 nov. 2017).

72 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a

construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 108-109.

73 Segundo Lenio Streck e Jose de Morais, “O conceito de soberania foi firmado no século XVI, servindo de base

da ideia de Estado Moderno, uma vez que até o fim do império romano não há conceito correlato.”. (STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, Jose Luis Bolzan de. Ciência política e teoria do estado. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 161).

sejam, as quais pressupõem o mútuo reconhecimento da condição soberana75.

Ao longo dos tempos, a questão da titularidade da soberania conduziu ao surgimento das doutrinas teocráticas, que assentam a legitimidade do soberano em fundamentos de ordem divina e transcendente ao homem, e das doutrinas democráticas, que reconhecem o povo como fonte da qual emana o poder soberano76. A despeito desta dicotomia, é possível

identificar, logo no início da Carta Magna, que a doutrina relativa à titularidade da soberania adotada pelo Brasil é de natureza democrática, uma vez que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio dos seus representantes ou diretamente”, segundo o art. 1º, p. único, da Constituição Federal77.

Nesse jaez, o voto é o instrumento por meio do qual o povo expressa a sua vontade majoritária soberana na escolha dos seus representantes para, em seu nome, conduzir o funcionamento do Estado, garantindo-lhes seus direitos e exigindo-lhes seus deveres. Todavia, não é a única forma de exercício da soberania popular. Com o advento da Constituição Federal de 1988, consagrou-se tanto o exercício direto da soberania popular, através do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular legislativa, quanto o indireto, mediante a eleição dos seus representantes. Tais formas de manifestação da soberania popular estão imiscuídas no âmbito dos direitos políticos. Segundo José Jairo Gomes78,“extrai-se do Capítulo IV, do Título II, da

Constituição Federal, que os direitos políticos disciplinam as diversas manifestações da soberania popular, o qual se concretiza pelo sufrágio universal, pelo voto secreto (com valor igual para todos os votantes), pelo plebiscito, referendo e iniciativa popular.”.

A captação ilícita de sufrágio viola não somente a liberdade do voto, mas também a soberania popular79 e, consequentemente, a democracia, uma vez que a vontade expressada

pelo povo na escolha dos seus representantes somente pode ter a sua autenticidade constatada quando manifestada livremente, sem qualquer influência ilegítima por parte dos candidatos.