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As Bestas do Apocalipse

2. O florescer de uma nova entidade: O Diabo no Vetero e no Novo Testamentos

2.19 As Bestas do Apocalipse

Nos Evangelhos, a figura do Diabo muda. Ele deixa de ser Satan o anjo de Deus e passa claramente a ser a personificação do Mal. Na iconografia, é representado como um Dragão40, dada a sua força e natureza malévola. O Apocalipse confere ao Diabo o papel principal na manifestação das forças malignas.Os dragões eram figuras míticas reconhecidas nas culturas pagãs pela força e poder, não propriamente, pela natureza maléfica. A batalha entre o dragão e os santos é tão emblemática quanto a batalha entre David e Golias. No entanto, a figura do Diabo descrita neste livro como um dragão é preponderante. Mais tarde, no panorama ocidental cristão, sobretudo na Idade Média, o dragão revela-se um animal mítico e fatal, sem qualquer característica humana e com claras associações ao Demónio (Delfin, 1989: 596).

Apareceu ainda outro sinal no céu: era um grande Dragão de fogo com sete cabeças tinha sete coroas e, com a sua cauda, varreu a terça parte das estrelas do céu e lançou-as á terra. Depois colocou-as diante da Mulher que estava para dar à luz, a fim de lhe devorar o filho quando ele nascesse.”, “Depois, travou-se uma batalha no céu: Miguel e seus anjos declararam guerra ao Dragão. O Dragão e os seus anjos combateram, mas não resistiram. E nunca mais encontraram lugar no céu: o grande Dragão, a Serpente antiga – a que chamam também Diabo e Satanás – o sedutor de toda a humanidade, foi lançado à terra; e com ele, foram lançados também os seus anjos (Ap 12, 3-4,7- 9).

A serpente antiga aqui mencionada refere o animal que no AT desviou a humanidade e suscitou o pecado entre os homens. Esta é, agora, encarnada na figura antropomórfica do Mal. Porventura, a serpente mencionada no Livro do Génesis (Gn 3,1-5) que NT se transformou em Dragão (Ap 12,9) é animal que retrata a figuração do Diabo na Bíblia e, posteriormente, tanto a serpente como o dragão são representados na

40 Ver Apêndice II, p.33.

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arte medieval em Igrejas, catedrais e baptistérios. Este dragão de fogo é a personificação das forças satânicas. As sete cabeças do Dragão como descreve a imagética do Apocalipse simbolizam a resistência à morte: os chifres e as coroas, o poder (Ap 12,3).41

No entanto, também vemos a serpente cósmica associada a outros mitos da Antiguidade, nomeadamente, ao mito pelásgico da origem do Mundo e dos deuses, que atribui a Eurínome, divindade feminina, o papel crucial nos mitos de Criação. Etimologicamente, a palavra “Eurínome”, significa “a que domina em grande extensão”, de eurys “extenso” e nomos “lei”, que por sua vez se liga ao verbo nemein, ou seja, “governar”, “dominar” (Ferreira, 2008:13).

Em Hesíodo (Teogonia 357 e também 907-909), Eurínome é uma oceânide, filha de Oceano e Tétis. Estes eram Titãs. Segundo os mitos greco-romanos, essa era a primeira geração de divindades, que representava sobretudo as forças da natureza. Esta deidade é a terceira esposa de Zeus e da união de ambos nasceram as três Graças: Aglaia, Eufrósine e Talia. Possuímos pequenos excertos acerca do seu culto, como uma notícia da Arcádia, em que Eurínome aparece como divindade das águas (cf. Pausânias 8.41.4-6), e outra da Tessália, onde havia um templo cuja imagem de culto era uma figura que, da cintura para cima, era humana e, da cintura para baixo, era representada com uma cauda de peixe (Ferreira, 2008: 13).

Em Apolónio de Rodes, Eurínome aparece como consorte de Ofíon (divindade órfica), tido como governante dos deuses antes de Crono (Argon. 1.503-506). A primeira deidade aparece como “deusa de todas as coisas que brota nua do caos” (Orf., Frag., 98, nº 29). Eurínome, vendo que não tinha onde pousar os pés, dançou para separar o céu do mar. Com isso, foi-se apercebendo da sua interacção com o vento de que, a cada movimento seu, nascia algo distinto. Porém, este vento forte que vem de Norte materializa-se nos seus braços, na figura de Ofíon, cujo termo grego orphis significa “serpente”. Nisto, encontramos a serpente cósmica nos mitos da criação: a Grande Serpente. É do desejo de Ofíon em unir-se a Eurínome que o mundo surge.

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A narração do monstro inspira-se em Dn 7,7 (nota) e 8,9-10; ver Jb 40,25-41,26 nota; Sl 104,25-26 nota; Is 27,1 nota; 51,9 nota; Ez 29,3 nota. As notas aqui referidas são notas adjacentes que estão redigidas na Bíblia dos Capuchinhos pela Difusora Bíblica e, têm como objectivo ajudar a esclarecer o leitor quanto a aspectos de origem religiosa, social, política, económica ou cultural que dizem respeito aos passos bíblicos em questão.

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Representada neste mito como pomba, Eurínome incuba na superfície das águas em que deposita o Ovo Universal e é através deste que tudo nasce. Ofíon, por sua vez, ajuda no processo de criação. Como serpente que é, enrola-se sete vezes nesse Ovo, de forma a separar o céu da terra, fazendo surgir todos os outros elementos que os constituem (Apolónio de Rodes, Argon. 1.503-506).

Ao contrário das restantes narrativas presentes na Bíblia, o Apocalipse vai buscar referências anteriores para explicar todo um cenário escatológico. Neste livro, fala-se assim da serpente, que como já vimos anteriormente não pertence somente ao AT como também faz parte dos mitos de Criação de outros panteões religiosos, nomeadamente, politeístas. No texto bíblico, reinvindica-se a vitória da Mulher, sendo esta uma imagem simbólica para representar a Igreja, e dos cristãos sobre o dragão ou serpente, que representam e são o Diabo.

The serpent of Eden is identified as also the sea-monster or dragon Leviathan, destined for escathological defeat by the sword of God (Is 27,1) … By fusing the two figures of the Genesis serpent and the eschatological Leviathan, Revelation has created a new image of ultimate evil. (…) From both OT and pagan precedents, the passage would raise readers’ expectation that the divine child will eventually destroy the dragon (Bauckham, 2007: 1296).

O Apocalipse não é o único livro bíblico que recorre a simbolismos. O Livro de Daniel 8,9-10 fala igualmente de um chifre de bode, como um elemento simbólico, que deitou por terra as estrelas do céu. Em Daniel, as estrelas podem representar os chefes do judaísmo que se deixaram subjugar por Antíoco IV Epifânio, (Dn 7,7 nota; 8,9, 10- 11 nota) ao passo que, no Livro do Apocalipse, as estrelas podem representar os cristãos que sucumbiram à perseguição, uma vez que nesta narrativa a queda das estrelas não se refere a uma queda de demónios, pois desenrola-se nos dias da vinda do anjo de Jesus à terra (Alves, 2008:2042).

O número sete simboliza a perfeição celestial. Ora, o Dragão, a Antiga Serpente, que é agora o Diabo, é antes de mais um anjo caído. As sete coroas que traz na sua cabeça representam a totalidade da soberania do reinado e, sendo o Diabo, como mencionavam os Evangelhos, o Príncipe deste mundo, estas coroas representam o seu reinado sobre os homens através da idolatria. As estrelas são por excelência a

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manifestação de Deus. Representam os anjos e até mesmo os homens de Deus, ou seja, os cristãos. A acção que o dragão representa sobre as estrelas manifesta o sofrimento que foi infligido em Israel e ao povo de Deus em geral. O mesmo é dito no Livro de Daniel, versículos 7,25; 12,7, em que se contabiliza o tempo até ao Juízo Final, em dias, meses e horas. Nesse momento, defrontar-se-ão as forças adversas através da batalha cósmica entre Deus e seu povo e o Diabo e seus seguidores (Bauckham, 2007:1296).

De facto, o texto não é explícito e também não se refere a uma queda dos demónios no começo dos tempos, uma vez que esta cena se desenrola nos dias da vinda do Messias (Gn 6,2-4 nota; Is 14,12-13 nota). Segundo a linha de pensamento da época e as ideias correntes do judaísmo, as estrelas podiam muito bem ser o local onde habitavam os anjos bons e os maus. E, segundo as mesmas ideias, é nesse espaço em que habitam as estrelas que se trava a grande batalha cósmica, em que o Demónio é derrotado, pela morte e ressurreição de Cristo (Alves, 2008: 2042).

Quando o Dragão se viu precipitado na terra, lançou-se na perseguição Mulher que tinha dado à luz um menino. Mas à Mulher foram dadas as duas asas da águia-real, a fim de voar para o seu refúgio, no deserto, onde ia ser alimentada durante três anos e meio, longe da Serpente. Então, a Serpente, na perseguição da Mulher, lançou da sua boca um rio de água, a fim de a arrasar na corrente (Ap 12,13-15).

Apesar de na narrativa o Dragão aparecer derrotado nas alturas pelo Cordeiro, representação do Cristo, o Diabo continua o combate contra a Mulher, que aqui simboliza a Igreja (Ap 12,7-14). O simbolismo continua ao longo do Livro do Apocalipse. A batalha cósmica está travada. Como tal, dá-se o segundo sinal, em que a Besta que subia do mar42 com características de dragão, simboliza aqui o Império Romano que perseguia os “santos”, nome pelo qual são designados os cristãos no Novo Testamento (Ap 13,1-7; Act 2,44 nota; 9,13; 20,32 nota; 1 Cor 1,2 nota; 6-13 nota). A Besta chega a proferir blasfémias e todos estes monstros são hostis ao Reino de Deus,

42 Nas mitologias antigas, incluindo as cosmogonias da Mesopotâmia, as forças adversas da criação são

representadas pela água, daí esta analogia, da besta que sai do mar. Em termos simbólicos, a serpente representa mais do que as origens da humanidade. Este animal representa também as forças adversas, o caos primordial e daí estar muitas vezes associado à àgua.

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recebendo poder de Satanás (o dragão). Esta Besta chega mesmo a imitar Jesus, sendo inúmeras vezes chamada de falso profeta, pois, no seu ímpeto, pretende enganar e seduzir a humanidade conduzindo-a à desgraça.

Depois vi uma Besta que subia do mar. Tinha dez chifres e sete cabeças; sobre os chifres tinha sete coroas, e sobre as cabeças tinha nomes blasfemos (…) E, maravilhados, todos os habitantes da terra foram atrás da Besta. E adoraram o Dragão porque tinha dado o seu poder à Besta. E adoraram também a Besta (…) (Ap 13,1-6).

Seguindo-se à Besta que subia do Mar – o Império Romano –, o Apocalipse refere um terceiro sinal manifestado por outra Besta, que subia da terra, de um lugar identificado com a Ásia Menor. O autor parece referir-se aos círculos que propagavam o culto do imperador. Por isso, esta Besta, apesar de parecer mansa, tinha chifres de cordeiro e falava como um dragão, fazia prodígios e levava os homens a prestar culto à Besta marítima. Esta Besta, que se coloca ao serviço da primeira, será chamada de «falso profeta».

“Vi ainda outra Besta que subia da terra; tinha dois chifres como um cordeiro, mas falava como um dragão. Tinha todo o poder da primeira Besta e exercia-o na sua presença. Obrigava todo o mundo e os seus habitantes a adorar a primeira Besta – a que tinha sido curada da ferida mortal (…) incitando-os a fabricar uma estátua da Besta, a ponto de ela falar e dar a morte a quantos não adorassem a estátua da Besta” (Ap 13,11-14).

Voltando ao valor simbólico do Livro do Apocalipse, o número 666, mencionado neste livro, pretende que cada letra do alfabeto grego e hebraico corresponda a um determinado número. Por questões simbólicas, pode interpretar-se o número 666 como uma ideia de imperfeição intensificada e associada à Besta43. Esta dedução deriva de haver três 6, por relação com o 7, que é tido como o número perfeito e que por sua vez representa a corte celestial. Quanto ao número 3, ele traduz a ideia de ênfase ou intensidade. Por outro lado, dada a opressão do regime imperial romano sobre os

43 Ver Apêndice II, p.26.

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cristãos nesta época, o número 666, em letras hebraicas, equivale à expressão utilizada para escrever o nome do príncipe Nero, que foi imperador romano na época. Daí que Nero tenha sido commumente identificado com este número. Mas, em parte, essa identificação deveu-se também ao comportamento de Nero para com o povo cristão.

“E assim, quem não tivesse o sinal, o nome da Besta ou o número do seu nome não podia comprar nem vender. Aqui é preciso sabedoria: o que é inteligente decifre o número da Besta, que é um número de homem; o seu número é seiscentos e sessenta e seis.” (Ap 13,17-18).

Como referimos, no tempo em que o Apocalipse foi redigido, assistiu-se a um período conturbado, quer em termos políticos quer religiosos. O texto refere-se às constantes perseguições dos cristãos por parte dos Romanos. Nero e Domiciano seriam os imperadores de então. No entanto, as perseguições aos cristãos perduram após a morte deles. No tempo de Nero, o sucessor de Claúdio, os Cristãos já se encontravam bem enraizados na sociedade romana, ou pelo menos o suficiente para serem perseguidos de forma brutal após o Grande Incêndio de Roma, em 64 d. C., servindo assim como bodes expiatórios para com o sucedido. As perseguições continuaram de forma esporádica nos duzentos anos seguintes. A culpa dos cristãos duplicou aos olhos dos Romanos. Aqueles eram tidos como uma organização clandestina e, sobretudo, recusavam-se a participar no culto estatal dos deuses romanos, incluindo o dos imperadores deificados. A intransigência cristã a este respeito conduziu à indignação por parte do imperador Domiciano (81-96 d. C.), um dos príncipes que insistia em ser reconhecido como um deus, uma fórmula que os cristãos não podiam aceitar (Allan, 2006:130-131).

Segundo Rodrigues, uma das primeiras medidas tomadas por Nero em relação aos Judeus em Roma foi a designação de Aristobulo, filho de Herodes de Cálcis, como rei da Arménia Menor. Este facto confirma a existência de uma rede de influências junto da família imperial nos vários tronos orientais, o que permitia a Nero ter uma maior expansão de poder. Porém, este não se limitou apenas a nomear Aristobulo para governar os territórios orientais, tendo nomeado, para Galileia, Agripa II que chefiou as cidades de Tiberíades, Tariqueia, Julíada, uma cidade de Pereia, como ainda algumas

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aldeias dependentes. Nero parecia cooperar até com os sacerdotes do Templo de Jerusalém. De facto, este até perdoou a afronta dos Judeus na construção do Templo e as transformações que nele fizeram, o que se deve também em parte às disputas arquitectónicas entre Agripa II e Festo. Por esta altura, manifestavam-se na Judeia grupos político-religiosos, como por exemplo os Zelotas. Estes grupos indignavam-se frequentemente de forma violenta contra as autoridades judaicas e romanas, espalhando mensagens messiânicas que vinham ao encontro das doutrinas defendidas pelos Judeus, e da necessidade de estes se manifestarem contra o domínio romano (Rodrigues, 2004: 562-563).

No tempo de Nero, havia na corte uma facção judaica tanto política como economicamente influente. Exemplo desta influência são certas construções de túmulos e sarcófagos marmóreos contendo epitáfios, entre outros elementos religiosos, que exigiam certamente a posse de riqueza na sua construção. Um dos factores que está na origem da perseguição de Nero aos cristãos deverá ter sido as relações diplomáticas que os Judeus mantinham com os Romanos, para discutir problemas de cariz social e político. Conhecemos bem o exemplo de José Ben Matias, também conhecido por Tito Flávio Josefo. O ano da sua missão diplomática coincide com um dos tempos em que os cristãos mais sofreram com a intervenção romana. Talvez aquele tenha, na sua missão, alegado alguma preocupação com esta denominada seita religiosa. De facto, os cristãos foram inclusive acusados, anos antes, de terem provocado o incêndio que deflagrou na cidade de Roma durante dias. Estes factores contribuíram para a perseguição aos cristãos (Rodrigues, 2004: 600-601).

Há que não esquecer que os primeiros cristãos, incluindo os que começaram a elaborar uma doutrina e uma teologia cristã eram de origem judaica. Por exemplo, Simão Pedro e Paulo de Tarso eram judeus. E, para os judeus ortodoxos, as doutrinas desta nova religião não passavam de manifestações das apirações de homens na ascensão social, com base nos fundamentos judaicos. Aparentemente, os judeus contam sobretudo com a ajuda do imperador e dos seus representantes, para dizimar aqueles que por insistência na sua doutrina contrapunham os costumes e crenças da sociedade romana e revindicavam ser fiéis a um Deus verdadeiro (Rodrigues, 2004:587).

Como mencionado anteriormente neste subcapítulo, dado ao cariz simbólico das narrativas do Apocalipse é possível que as alusões às Bestas do mar e da terra

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representem os meios onde se propagava o culto do imperador. Por sua vez, a adoração e idolatração dos reinos dos homens não são vistos como correctos aos olhos dos cristãos. Para os cristãos só Deus e os seus anjos são dignos de adoração, logo, qualquer tipo de culto prestado aos imperadores, que eram homens como todos os outros, era tido como um culto ao Demónio.