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A visão do Inferno no Apocalipse

No documento As origens das figurações medievais do diabo (páginas 105-108)

2. O florescer de uma nova entidade: O Diabo no Vetero e no Novo Testamentos

2.20 A visão do Inferno no Apocalipse

No Livro do Apocalipse são também nomeados o fogo e o enxofre, enquanto símbolos utilizados no AT para designar o castigo dos ímpios e de todos aqueles que renegaram o Reino e a Palavra de Deus, comummente associados à concepção medieval de Inferno. De facto, a ideia do Inferno surgiu posteriormente no universo cristão e teve como contributo as concepções dos povos semitas e da cultura greco-romana.

Ainda um terceiro anjo seguiu os dois primeiros e clamava com voz forte: «Se alguém adorar a Besta, esse também há-de beber do vinho do furor de Deus, derramado sem mistura na taça da sua ira, e será atormentado com fogo e enxofre, diante dos santos anjos e diante do Cordeiro.» (Ap 14,9-10).

O fogo e o enxofre são imagens associadas a Geena – à terra dos mortos –, que na antiga concepção semita era o local onde jaziam todos os corpos sem que com isso se elaborassem juízos ou formulações éticas (Lv 18,21; Ne 11,30; Is 30,33; Jr 7, 31-34). Nas culturas do Próximo Oriente Antigo, utilizava-se com frequência a metáfora da “casa do pó”, onde nada existia a não ser pó. Esta visão faz parte da divisão tripartidária do mundo, produto de uma reflexão antropológica ecuménica.

Nas culturas da Mesopotâmia o conceito de «pó» refere-se à terra, isto é, à argila. Para estes povos, os homens e os seres vivos foram criados a partir da argila, regressando a essa matéria primitiva após a sua morte. A concepção hebraica sobre a morte deve entender-se, de facto, como um estado oposto à vida. Ora, se a vida representa movimento e o todo, a morte representa por contrapartida a inércia e o nada.

Porém, se observarmos no mundo bíblico as palavras que evocam o nada, estas nunca se aplicam à morte, provavelmente porque os Hebreus não concebiam a sua morte como um desaparecimento, uma aniquilação do cosmos, mas sim, como uma

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transição. A morte seria talvez uma passagem que levasse ao Além. A morte é provavelmente a história mais antiga das religiões, independentemente de serem religiões do Oriente ou do Ocidente, todas elas tem uma explicação para a sua existência. No entanto, como podemos compreender nas culturas da Mesopotâmia a morte era um fim e não uma oferta de vida noutra esfera existencial.

As religiões mostram amiúde interesse em explicar e manter a ordem em face do caos, em definir a moral e os valores, sobretudo, quando não há crença sobre a existência de um julgamento dos mortos ou de uma compensação ou punição após a morte, como acontece com os povos semitas (Coelho, 2004: 204-205).

Além disso, quando falamos em Geena, evidencia-se o nome de Ben-Hinom, o vale a sudoeste de Jerusalém, que foi primitivamente dedicado ao deus Moloc44. O culto deste deus segundo o AT incluía, por vezes, sacrifícios humanos. Contudo, especialistas como Weinfeld e Deller defendem que Moloc tratar-se-ia possivelmente de um culto às divindades. Segundo estes autores, os rituais associados a Moloc eram sacrifícios simbólicos que os povos do norte da Mesopotâmia faziam como oferendas aos seus deuses em troca de prosperidade. De facto, não existem registos suficientes daquilo que hoje apelidamos de infanticídios e, por sua vez, a “acção de passar pelo fogo”, naquela época, deve ser interpretada em sentido figurado, pois o fogo para os Cananeus, Fenícios e Assírios era um elemento sagrado e purificador (Weinfeld, Deller apud Wagner y Cabrero 2007:17-21).

Aliás, o fogo e o fumo são símbolos da presença de Deus, símbolos de purificação, e fazem parte da encenação das teofonias. No entanto, para os hebreus este era um culto pagão, um ritual influenciado pelas relações com a Assíria e, considerado uma heresia na literatura judaica profética (Lourenço, 2008: 1261).

A adoração idolátrica deste deus amonita estava largamente difundida nas culturas da Mesopotâmia. Esta divindade tinha sido mencionada no AT pelo profeta Jeremias, que refere o tofet (local onde sacrificavam crianças) e Ezequiel também o denuncia na sua narrativa (Jr 7,30-34; 19,6-13; 32,34-35; Is 30,33; Ez 16,20-22; 20,31;

44 Ver Apêndice II, p.42. Ver também as deidades estrangeiras que fizeram parte do processo de

diabolização do monoteísmo cristão, em Apêndice II, “Camós” divindade hebraica que representava o fogo, p. 31; “Adramélec e Anamélec”,p. 15; “Ámon”, p.15; “Asima”, p.18; “Astarte”, p.19; “Nergal”, p. 42; e, por fim, “Nicaz”, p. 43.

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23,37). Depois do Exílio queimavam-se, naquelas terras, os cadáveres dos impuros, um facto que veio mais tarde despertar a ideia de um castigo escatológico para os pecadores.

A Eneida de Virgílio é um exemplo das narrativas que contribuiram para a construção das ideias sobre o Inferno no pensamento cristão e que influenciam a concepção do Inferno no Apocalipse. Esta obra foi uma encomenda do imperador Augusto ao poeta Virgílio, com o objectivo de enaltecer o principado e as grandezas do Império. A Eneida seria, portanto, como uma bíblia para o povo romano, um livro em que os destinos gloriosos dos Romanos ficassem eternamente evidenciados.

A Eneida é poema épico com 952 versos, escritos na Sicília e na Campânia durante onze anos. Esta obra narra a história da fuga do herói Eneias de Tróia, filho de Anquises e da deusa Juno. O poema fala sobre o estabelecimento dos Troianos no Lácio e, por consequência, da origem da cidade de Roma. Na verdade, este livro ordena diversas lendas que existiam sobre a formação de Roma, narrando a visita de Eneias a Dido, a rainha de Cartago. Entre peripécias e querelas que o herói vai passando ao longo da sua viagem, no livro VI, os Troianos desembarcam em Itália e Eneias desce aos infernos, ou seja, ao submundo, onde encontra a alma de Dido e a de seu pai, Anquises, entre outras. O pai, por sua vez, fala-lhe sobre as leis que regem as almas, como elas acabarão por permanecer ali e ainda lhe mostra os seus descendentes e suas glórias futuras.

Uma vez que o caminho do Inferno começa aqui, na lagoa do rio Aqueronte convulso, leva-me logo à presença da sombra do pai extremado. Mostra-me a entrada a transpor, escancara-me as portas sagradas. Por entre flamas aos centos, milheiros de setas aladas, o carreguei nestes ombros, salvei-o das turmas inimigas.

Meu companheiro de viagem, comigo enfrentou os perigos inumeráveis das ondas, do céu carrancudo e sombrio, comquanto inválido fosse, apesar da velhice inamável. Sim, ele mesmo o ordenou, implorou-me insistente que viesse falar-te agora. Por isso suplico-te, ó Virgem, apieda-te do pai, do filho aqui vindo. Tens grande poder. Não debalde Hécate te colocou como guarda dos bosques de Averno. Se pôde Orfeu evocar dos Infernos os manes da esposa, só confiado na

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lira da Trácia, de cordas cantantes: se conseguiu remir Pólux o irmão, alternando com ele a própria morte (…) De Jove também eu provenho.

Dessa maneira, com a mão sobre o altar o Troiano expressou-se A profetisa lhe disse em resposta: De origem divina, filho de Anquises, Troiano! Descer ao Averno é mui fácil: sempre está aberta de dia e de noite a porteira do Dite. Mas, desandar o caminho e subir outra vez para o claro, eis todo o ponto, o trabalho mais duro. Bem poucos, amados do grande Jove, ou os que ao céu se elevaram por mérito próprio, filhos de deuses, de fato o alcançaram (Vírg., Enei.,6 ).

Importante é perceber a forma como o mundo escatológico da Eneida parece salientar a ideia de condenação. Este mundo escuro, o Inferno, um submundo em que as almas vagueavam, mostrava uma ideia completamente diferente do “nada” transmitido no AT.

No documento As origens das figurações medievais do diabo (páginas 105-108)