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Jesus o peregrino de Deus segundo o Evangelho de S Lucas

2. O florescer de uma nova entidade: O Diabo no Vetero e no Novo Testamentos

2.15 Jesus o peregrino de Deus segundo o Evangelho de S Lucas

O Evangelho de São Lucas é comummente reconhecido como uma colectânea dos elementos biográficos de Jesus Cristo, desenvolvida a partir de fontes textuais como os Evangelhos de S. Marcos e de S. Mateus (Franklin, 2007: 924).

Neste seu Evangelho, Lucas elabora uma história narrativa e biográfica de Jesus. Sendo Cristo fundamentalmente apresentado como o anunciador da chegada do Reino de Deus à terra. Pelos sucessivos milagres e exorcismos (tal como já abordado por Marcos) que Jesus leva a termo junto dos homens constitui essencialmente um testemunho da suma presença de Deus na terra. Este evangelho apresenta uma narrativa muito semelhante às composições de Marcos e Mateus (Franklin, 2007:922).

Nos vários estudos académicos, presume-se que este discípulo terá escrito o seu Evangelho algures entre os anos 80 e 85 da nossa era, pouco depois de Mateus realizar o

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seu trabalho, sob ímpeto de renovação e exaltação da fé cristã. O Evangelho de S. Lucas visa contar igualmente a história do filho eleito de Deus. Embora, este texto bíblico exponha os eventos da existência de Cristo num domínio histórico dos factos, a sua narrativa está igualmente sujeita à intervenção e juízo pessoal do autor, de modo semelhante ao que acontece no Evangelho de S. Marcos (Franklin, 2007: 923-925).

A acção de Jesus na terra, emanação da vontade e palavra de Deus nos céus, visa a redenção da humanidade e a subjacente libertação dos indivíduos dos poderes do Maligno. Através da fé e da palavra de Cristo até mesmo os homens humildes ou remetidos para as mais baixas franjas da sociedade da época podiam ser recompensados com a ressurreição. Jesus é assumido por Lucas como uma entidade ligada e comprometida com o Bem e com a salvação dos crentes.

No seu Evangelho, Lucas demonstra um especial entendimento da acção de Deus-pai e Jesus-filho como orientada para a inversão das fortunas dos homens, sendo que os mais ricos e poderosos, política e religiosamente seguros e bem colocados, enfrentarão como todos os outros homens o julgamento final de Deus descido à terra. Estes indivíduos e grupos abastados tendem a ceder à letargia e acomodação à respectiva condição, sobrevalorizando-se e isolando-se em face das oportunidades e desafios que Deus aporta à humanidade em seu todo através de Jesus, Messias salvador dos homens, por isso estes homens são tal como todos os outros, remetidos ao julgamento de Deus (Franklin, 2007:925).

O autor enaltece as figuras de João Baptista e Jesus Cristo, enquanto agentes primordiais da acção renovadora e redentora de Deus na terra, inspirados pela luz e energia do Espírito Santo.

Tendo convosco os Doze, deu-lhes o poder e autoridade sobre todos os demónios e para curarem doenças (Lc 9,1).

Mais uma vez, voltamos à temática do exorcismo, também mencionada por Lucas. Esta prática constitui uma actividade amplamente comum ao longo do ministério sagrado de Jesus entre os homens, tido como “O” verdadeiro exorcista, numa época em que muito se cria na manifestação do Mal por via da possessão demoníaca (Franklin, 2007:943): “Exorcism grew out of the New Testament accounts (…) The practice was

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introduced into the Christian church at a very early date, and exorcists formed one of the four minor orders of the Church (Robbins, 1959:181) ”.

Os setenta e dois discípulos voltaram cheios de alegria, dizendo: «Senhor, até os demónios se sujeitaram a nós, em teu nome!» Disse-lhes Ele: «Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago. Olhai que vos dou poder para pisar aos pés serpentes e escorpiões e domínio sobre todo o poderio do inimigo; nada vos poderá causar dano. Contudo, não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem; alegrai-vos, antes, por estarem os vossos nomes escritos no Céu.» (Lc 10,17-20).

Contudo, em Lucas é perceptível que Jesus era acusado por parte dos seus opositores, em terras de Israel, de executar exorcismos sob motivações e capacidades desconhecidas e incompreendidas por estes. Jesus seria por isso o Messias, o salvador da humanidade e não Belzebu -“ o Príncipe dos demónios” - como os seus opositores o apelidaram.

Outros, para o experimentarem, reclamavam um sinal do Céu. Mas Jesus, que conhecia os seus pensamentos, disse-lhes: (…) Se Satanás também está dividido contra si mesmo, como há-de manter-se o seu reino? Pois vós dizeis que é por Belzebu que Eu expulso os demónios. Se é por Belzebu que Eu expulso os demónios os vossos discípulos? Por isso, eles mesmos serão os vossos juízes. Mas se Eu expulso os demónios pela mão de Deus, então o Reino de Deus já chegou até vós (Lc 11,16-20).

Perante o ministério do Cristo, a figura de Belzebu – coadjuvante na acção desestabilizadora e maléfica sobre a humanidade – revela-se um poder alienado e subversivo, hostil a Deus (Javé), recaindo assim sobre Jesus a acusação de ser um agente de Satan, senhor do Mal e do Inferno. Esta é uma acusação que em Lucas é mencionada como resultando do facto de Cristo exorcizar as forças do Mal por meios muito próprios, sinal de uma autoridade muito específica distante da tradição dogmática da época, assumida e patente em terras de Israel.

No entanto, sendo Jesus o escolhido de Deus, Sua emanação, Seu filho, para a redenção e salvação da humanidade, torna-se evidente que a prática do exorcismo nos

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Evangelhos trata-se, antes de mais, do testemunho da chegada do Reino de Deus à terra. O poder de Jesus praticado através dos exorcismos apenas evidencia a palavra de Deus, apesar das acusações que lhe são feitas e que encontramos na narrativa de Lucas nada o iguala a Belzebu (Franklin, 2007:943-944).

Do ponto de vista cultural e sociológico, Jesus é a figura que “vive o acontecimento na oração”. A representação da luz interior de Cristo nos Evangelhos, através das suas palavras, práticas e acções, reflecte o sujeito divino, a máxima que deve ser encarada pelas populações como exemplo a seguir. Abençoado por Deus, Jesus é a manifestação viva do Espírito Santo, como tal, ele renuncia às tentações diabólicas. Podemos verificar esse exemplo em Mateus 4,4, em que Jesus afirma perante o Diabo que nem só do pão vive o Homem. A figura de Cristo rompe com toda a física tradicional do puro e do impuro, do sagrado e do profano, com toda a hierarquia estabelecida até data nas culturas dos povos do Próximo Oriente Antigo. Cristo denúncia a tentação de se possuirem inimigos e escravos. Para ele, estas palavras apenas eram usadas pelos homens para manifestar a sua angústia perante a vida e a morte. A partir desse momento, o filho de Deus quebra o elo que existia nas culturas antigas que ligava o sagrado à violência (Delumeau, 1997: 25-28).

Daí o mandamento paradoxal, no entanto, fundamental nas Escrituras Sagradas: amar os inimigos e sobretudo perdoar as suas acções.

«Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem» (Lc 23,34).