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Biopirataria ou neocolonialismo: relações Norte-Sul

A biodiversidade tem emergido no centro de um dos debates mais polêmicos deste século. Para esse debate são críticas as dúvidas sobre como os países dotados de riqueza biológica podem alcançar o progresso econômico equilibrando as preocupações ambientais e sociais, e como se pode alcançar uma distribuição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da comercialização de recursos naturais obtidos em países com alta biodiversidade. De fato, a biodiversidade tem se tornado a plataforma sob a qual se abordam as questões Norte-Sul, até agora, caracterizadas por uma grande história de injustiças sociais e econômicas .

(Maurice M. Iwu, 2002)

O comércio formal, assim como, informal de recursos genéticos é tão antigo como a própria civilização humana. De acordo com Laird e ten Kate (2002), uma das primeiras expedições registradas de coleta de recursos vegetais partiu, em 1495 AC, em direção à região da Somália para obter espécies produtoras de incenso. A busca de espécies pelos europeus e a subseqüente colonização, estimularam a coleta de recursos genéticos e a introdução de novos cultivos, assim como, expandiram a implantação de cultivos já existentes (LAIRD; TEN KATE, 2002).

Muitos anos de intercâmbio entre culturas e continentes implicam que muitos recursos genéticos tenham saído de seu país de origem e se encontrem hoje, em coleções ex-situ alojadas em países desenvolvidos. Ainda assim, a enorme diversidade e novidade de recursos genéticos encontrados em determinadas regiões do globo continua sendo uma valiosa fonte para o desenvolvimento de novos produtos e, por isso, muitas empresas têm buscado o acesso a esses materiais (LAIRD; TEN KATE, 2002).

Porém, conforme afirma Macilwain (1998 apud LAIRD; TEN KATE, 2002) a diversidade biológica do mundo se distribui, em grande medida, na proporção inversa à capacidade tecnológica e científica.

Como resultado, muitos países ricos em biodiversidade com economias em desenvolvimento possuem uma infraestrutura científica limitada e não participam ativamente nos rápidos avanços científicos e técnológicos que desenvolvem novos e variados usos dos recursos genéticos. Ao mesmo tempo, as companhias e instituições de pesquisa com base em países desenvolvidos buscam diversidade e novidade nos recursos genéticos que estudam e utilizam e, muitos olham para além de suas fronteiras para novos descobrimentos (LAIRD; TEN KATE, 2002, p. 265).

A esse respeito, no ano de 1975, os países em desenvolvimento detinham apenas 1,7% das patentes mundiais e eram, contraditoriamente, responsáveis pela esmagadora maioria dos recursos genéticos do planeta (CARNEIRO DA CUNHA, 1999). Isso se torna ainda mais evidente diante do fato de que dos 12 centros de megadiversidade existentes, 11 encontram-se no hemisfério sul (CARNEIRO DA CUNHA, 1999).

Durante a década de 70 e início de 80, a resistência a uma possível privatização generalizada, tanto em relação ao acesso à biotecnologia quanto em relação ao acesso aos recursos genéticos culminou na Resolução Internacional sobre recursos Fitogenéticos da Organização das nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) que propunha que ambos os recursos, genéticos e tecnológicos, deveriam ser de livre acesso (CARNEIRO DA CUNHA, 1999). Tal proposta mostrou-se ineficaz e a década seguinte foi marcada pela seguinte dualidade: recursos genéticos e conhecimentos tradicionais eram considerados patrimônio da humanidade e recursos tecnológicos, considerados propriedade estritamente privada e, por isso, praticamente inacessíveis aos países em desenvolvimento. Tal fato pode ser melhor ilustrado ao se levar em consideração que dos 120 princípios ativos isolados de plantas superiores amplamente utilizados na medicina moderna, 75% têm utilidades que foram identificadas pelos sistemas tradicionais, apenas 12 destes são sintetizados por modificações químicas simples e os demais são extraídos diretamente das plantas e depois purificados (SHIVA, 200110 apud SANTILLI, 2004).

Em resposta a esses fatos, em 1992 foi decidida em um foro das Nações Unidas no Rio de Janeiro, a CDB. Este tratado internacional vincula explicitamente a conservação e o uso da

10 SHIVA, V. Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento. Tradução de Laura Cardellini Barbosa de

biodiversidade, tanto no sentido de que o uso sustentável11 é necessário para conservar a diversidade biológica, como no sentido de que o “uso” deve contribuir para a conservação sendo necessário um maior desenvolvimento mediante benefícios equitativamente compartilhados (ALEXÍADES ; LAIRD, 2002). De acordo com esses autores, a CDB proporcionou a primeira abordagem política compreensiva sobre a conservação da biodiversidade e ao fazê-lo, incorporou provisões explicitamente éticas.

Hoje, passadas quase duas décadas da CDB, ainda são crescentes os conflitos sobre o acesso e o uso de recursos culturais e genéticos. De acordo com Rezende (2008), existem dois conceitos que podem esclarecer de que forma se dá a dinâmica de apropriação dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais na sociedade capitalista: a bioprospecção e a biopirataria. A bioprospecção pode ser entendida como “a prospecção da biodiversidade em busca de recursos genéticos e bioquímicos de valor comercial” (LAIRD; TEN KATE, 2002) e abrange diversas categorias de atividades comerciais incluindo os setores farmacêutico, biotecnológico, de sementes, proteção de cultivos, hortícola, medicina botânica, cosmética e cuidado pessoal, alimentação e bebida (TEN KATE; LAIRD, 199912 apud LAIRD; TEN KATE, 2002).

Para Shiva (2001 apud REZENDE, 2008) a biopirataria apresenta-se como uma reedição do colonialismo através do processo de apropriação indébita do conhecimento tradicional e dos recursos genéticos. Assim, a autora enfatiza o que seria uma nova forma do capital invadir as “colônias” e dar continuidade ao seu processo de acumulação, renovando-se em nova forma de pacto colonial.

Embora não haja uma definição jurídica para o termo biopirataria, seu conceito político se baseia na premissa de que os recursos genéticos e o conhecimento cultural associado a eles não são bens públicos e sim bens de interesse público e por isso, algumas comunidades têm direito de propriedade sobre os mesmos (ALEXÍADES; LAIRD, 2003; SANTILLI, 2006). Esse enfoque tem sido seguido por iniciativas legislativas regionais e nacionais que buscam definir os direitos sobre os recursos genéticos e as condições sob as quais se pode garantir o acesso a terceiros (ALEXÍADES; LAIRD, 2003).

11 Definido pela CDB como “o uso dos componentes da diversidade biológica em uma forma e um ritmo que não

leva ao declínio da diversidade biológica a longo prazo, mantendo seu potencial para satisfazer as aspirações das gerações presentes e futuras”. Ver: http://www.cbd.int/convention/articles.shtml?a=cbd-02.

12 TEN KATE, K; LAIRD, L. The commercial use of biodiversity: access to genetic resources and benefit-

De acordo com Rezende (2008), esses termos, mais do que meras designações, tomaram ao longo do tempo conotações político-ideológicas opostas. Para este autor “a biopirataria configura-se como um discurso de reivindicação dos direitos que tem sido históricamente negados às populações tradicionais e povos indígenas”, e a bioprospecção “partiria de uma visão contratualista e apolítica, segundo a qual, resumidamente, dever-se-ia vender a biodiversidade e os conhecimentos tradicionais para salvá-los” (REZENDE, 2008, p. 93). Assim, Rezende (2008) afirma que a idéia de bioprospecção faz alusão ao modo como países do Norte atuam em face aos sistemas locais de conhecimento e aos recursos genéticos dos países ricos em biodiversidade, enquanto a concepção de biopirataria ilustraria a perspectiva dos países do sul frente à problemática da apropriação indébita dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais e à imposição de um modelo iníquo e insustentável.

De acordo com Laird e ten Kate (2002), para alguns, qualquer uso comercial dos recursos genéticos constitui biopirataria dado que se considera que o ambiente legal e político não assegura adequadamente o consentimento prévio informado e uma adequada participação nos benefícios. Por outro lado, conforme os mesmos autores, arranjos de participação justa e equitativa nos benefícios, dentro do contexto de um marco político adequado, podem considerar os interesses de todos os referentes envolvidos, incluindo governos, instituições de pesquisa, comunidades e companhias, tanto nos países provedores, como nos usuários. Porém, conforme pontuam esses autores “o pobre entendimento dos mercados, a falta de experiência para formas participativas e marcos políticos inadequados ou difusos, implicam que atualmente existam poucas histórias de êxito para apoiar esta posição” (LAIRD; TEN KATE, 2002, p. 266).