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O poder que tinha o soberano de expor o corpo do infrator aos suplícios, o espetáculo das mil mortes, passa por uma metamorfose com o advento das técnicas disciplinares, que fazem da pena de encarceramento a nova universalidade do poder de punir. Na sociedade de soberania, cabia ao soberano causar a morte dos que infringiam a lei, entendida como expressão de sua vontade. Agora, revira-se o infrator que lesa o soberano, em criminoso, delinqüente, o que deve ser corrigido para que a sociedade seja defendida, mas que permanece administrado no interior do regime dos ilegalismos, gerando positividades e lucratividades para o regime dos castigos e a economia política da pena.

Essa metamorfose não marca apenas o aparecimento de uma nova tecnologia de poder. Ela está no exercício do poder de punir, acoplada a uma série de transformações históricas, na Europa, que podem ser indicadas, em linhas gerais, como a expansão mercantilista, o surgimento das cidades, os efeitos de hegemonia da burguesia, a ascensão do princípio de igualdade jurídico-política. São mudanças que marcam um novo objeto e um novo objetivo do exercício de poder: não mais uma soberania sobre o território, não mais uma sociedade de confisco, mas do seqüestro, um poder que se interessa pela vida; a vida de cada corpo a ser disciplinado e a vida de um novo objeto do governo, a população a ser tratada como corpo-espécie.

“Concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do século XVII, em duas formas principais; que não são antitéticas e constituem, ao contrário, dois pólos de desenvolvimento interligados por todo um feixe intermediário de relações. Um dos pólos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina; no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controles eficazes e econômicos — tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível da saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles

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reguladores: uma biopolítica da população. As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois pólos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida. A instalação — durante a época clássica, desta grande tecnologia de duas faces — anatômica e biológica, individualizante e especificante, voltadas para os desempenhos do corpo e encarando os processos da vida — caracteriza um poder cuja função mais elevada já não é mais matar, mas investir sobre a vida, de cima abaixo” (Foucault, 2001: 131).

Administração dos corpos e gestão calculista da vida, eis como Foucault caracteriza o exercício moderno do poder. A fabricação de um sujeito dócil e produtivo e a regulação e gestão da saúde do conjunto destes sujeitos como população. Esse interesse especial sobre a vida é que dá acesso aos corpos, incidindo precisamente sobre o domínio da sexualidade. Assim, essa regulação não recai sobre o sujeito de direito, mas sobre o sujeito como ser vivo. A lei funciona como norma e as instituições de justiça são acrescidas de uma série de aparelhos e saberes (médicos, sociológicos, antropológicos, criminológicos, etc.) que objetivam regular os degenerados, construídos na confluência entre o saber médico e o saber jurídico, a partir do monstro político (o anarquista e o déspota), o incorrigível (a ser redimensionando como delinqüente) e a criança onanista (a sexualidade infantil), vistos agora, pelo crivo da norma, como anormais (Foucault, 2002c).

Essa construção do mostro, do anormal, é chave para que esse exercício de poder de normalização — que se ocupa da vida, que se faz em favor da saúde da população — possa matar. Foucault no curso Em defesa da sociedade, de 1975-1976, perguntará próximo ao final da última aula: “Como esse poder que tem essencialmente o objetivo de fazer viver pode deixar morrer? Como exercer o poder da morte, como exercer a função da morte, num sistema político centrado no biopoder?” (Foucault, 2002a: 304). A essa questão, não de Foucault, mas colocada pela própria tecnologia de poder biopolítico, a resposta foi: por meio da reativação do racismo.

Segundo Foucault “o que inseriu o racismo nos mecanismos do Estado foi mesmo a emergência desse biopoder. Foi nesse momento que o racismo se inseriu como mecanismo fundamental do poder, tal como se exerce nos Estados modernos, e que faz com que quase não haja funcionamento moderno do Estado que, em certo momento, em certo limite e em certas condições, não passe pelo racismo” (Idem, Idem). E racismo,

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aqui, entendido como função específica dessa tecnologia de poder bipolítico: uma função específica de realizar um corte entre o que deve viver e o que pode ser entregue à morte, promovendo uma relação positiva que vincule a morte dos anormais, dos componentes da sub-raça, com a prosperidade e a saúde da espécie sadia. Separação biológica entre os sãos e os doentes curáveis, e morte dos demais em defesa da sociedade saudável.

Por se tratar de uma tecnologia de poder não estamos no campo do racismo como prática de ódio mortal entre diferentes raças e/ou etnias, mas uma prática social, de recorte biológico, que separa os que devem ser defendidos dos devem ser eliminados, entregues a morte. Por isso, também, não estamos diante de uma prática exclusivamente estatal, mas defronte de um modo específico de relação entre indivíduos ou entre grupos que atuam segundo uma lógica, ou uma racionalidade específica, que pontifica que a “minha” saúde, a saúde dos “meus”, depende da eliminação do “meu” inimigo; dos outros, dos impuros, dos estranhos, dos anormais.

Ainda que Foucault explicite que esse recurso do exercício do poder biopolítico efetive-se, historicamente, como racismo de Estado, sublinhando que “apenas o nazismo levou até o paroxismo o jogo entre o direito soberano de matar e os mecanismos do biopoder, [e que] tal jogo está efetivamente inscrito no funcionamento de todos os Estados” (Idem: 312), esse recurso ao discurso de eliminação do inimigo se mostrará, mesmo depois do nazismo, uma prática social largamente difundida. Essa lógica da eliminação do outro, como a saúde do “nós”, é comum, mesmo que veladamente, entre grupos políticos, étnicos, religiosos nos tempos atuais. E ela é mais explícita entre comandos, gangues, facções, bondes41, etc., que atuam no interior das prisões e nas periferias das grandes cidades; compondo o complexo e flexível regime dos ilegalismos na sociedade de controle.

De imediato, é possível afirmar que mesmo havendo na sociedade de controle uma predominância da preocupação com a saúde e a segurança que vai do indivíduo ao planeta (ecopolítica), acoplando-se à promoção da saúde da população como espécie

41 Bondes ou famílias são grupos de jovens, que surgiram nas favelas cariocas, e se espalharam pelas

periferias de grandes cidades como São Paulo. Estão organizados para realização de festas e bailes funks e para manter o domínio sobre as mulheres, e sobre a escola e/ou certa região do bairro onde habitam. Seus integrantes identificam-se com bonés coloridos que levam o nome do grupo ao qual pertence. Dentre as muitas reportagens, publicadas na imprensa escrita de São Paulo, sobre o crescimento desses grupos, especialmente na região norte da cidade, destaco “Grupo de jovens da Zona Norte brigam por território em escola”. Aiuri Rebelo In Diário de São Paulo, 03 de outubro de 2008, p. A3.

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(bioplítica) e provocando metamorfoses, como mostra Passetti (2003), é no interior das relações entre legalismos e ilegalismos que se reativa e se expande o poder soberano de matar como prática social racista, que visa eliminar os que não prestam, os membros da sub-raça, o lixo humano, os pilantras, os traidores, o sangue-ruim. “A especificidade do racismo moderno [...] não está ligado a mentalidades, a ideologias, a mentiras do poder. Está ligado à técnica do poder, à tecnologia do poder” (Foucault, 2002a: 309), e por se tratar de uma técnica, é passível de apropriações, trocas, usos e atualizações.