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A prisão é uma criação moderna, a imagem do medo. Michel Foucault em Vigiar

e punir (2002) elaborou a genealogia da penalidade moderna a partir de uma história- política da suavização das punições corporais na Europa. Forjou uma noção filosófica que ultrapassou o que se passou em torno das prisões, para enfrentar as tecnologias de poder nas sociedades modernas. Todavia, não realizou com isso uma teoria do poder, ao contrário, subverteu o que se conhecia até então como Ciência Política Moderna, Filosofia Política ou História das Idéias. Quando escrevia sobre o poder, referia-se ao “nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada” (Foucault, 2001: 89). Tornou impossível definir um estatuto do poder, ou mesmo dizer o que é o poder ao propor com suas análises ampliar as possibilidades da genealogia do poder de procedência nietzschiana.

Para a análise genealógica importa a história-política das práticas e das lutas, ela se interessa pela batalha e pelas batalhas. Não há um objeto sobre o qual o pesquisador aplica conceitos, mas um conjunto de forças que atuam segundo táticas e estratégias móveis que se enfrentam, justapõem-se, excluem-se e se mesclam, atraindo também o pesquisador para o interior de inesperadas batalhas. A genealogia é cinza; interessa-se pelas fissuras, as rupturas os cortes, o que está acontecendo e que pode repercutir adiante. Ela está atenta muito mais ao que escapa, ao que insurge e provoca enfrentamentos e lutas intermináveis; busca um efeito de insurgência às tecnologias do poder.

Não subestima as análises das instituições como formas que estão hermeticamente fechadas, com suas funções determinadas e bem estabelecidas como regra, mas busca o como, não da funcionalidade, mas de como foi possível isso e não

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aquilo, ou como a partir de um determinado momento e sob especiais condições passou a se interessar por essa ou aquela estratégia de uso da força ou de exercício do poder. Enfim, é passar por fora das instituições, não lidar com um objeto pronto, mas tomá-lo pelo ponto de vista externo das estratégias e das tecnologias de poder (Foucault, 2008: 157). Sobre as tecnologias de poder, comenta em um curso de 1978, que elas “não são imóveis: não são estruturas rígidas que visam imobilizar processos vivos mediante sua própria imobilidade. As tecnologias de poder não cessam de se modificar sob a ação de numerosos fatores” (Idem: 161).

Ouvir o ronco surdo da batalha é a afirmação que encerra Vigiar e punir (Foucault, 2002b), um livro bomba não sobre as prisões, mas que incide, como uma faca amolada, na moderna tecnologia de poder e seu exercício disciplinar, provocando cortes sobre um exercício de poder que tem como objetivo a produção de corpos politicamente dóceis e economicamente úteis. Assim Foucault descreve os efeitos das disciplinas, cujo exercício é mais escancarado nas prisões, para ordenar a normalização de pessoas em instituições como a escola, a fábrica, o exército, a caserna.

Desde o século XVII surgem investimentos em uma disciplina do corpo. Mas é durante o século XIX que assistimos à generalização das disciplinas como uma arte de adestramento dos corpos relacionada à ascensão da pena de encarceramento. “A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício” (Foucault, 2002b: 143). Objetiva separar, analisar, diferenciar, esquadrinhar. A régua, a medida, a referência que fabrica esse indivíduo é a norma, que pelos processos do exame, combinando vigilância hierárquica e sanções normalizadoras, promove a separação, a classificação, e enfim, realiza a extração das forças e os efeitos de saber que se espera de cada um.

É pelo que ele não deve ser ou pelo que deve deixar de ser, que se diz e se fabrica o que é um indivíduo normal. “Num sistema de disciplina, a criança é mais individualizada que o adulto, o doente é antes homem são, o louco e o delinqüente mais que o normal e o não-delinqüente. [...] Quando se quer individualizar o adulto são, normal e legalista, agora é sempre perguntando-lhe o que ainda há nele de criança, que loucura secreta o habita, que crime fundamental ele quis cometer” (Idem: 161). Assim,

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disciplina e ciências humanas, combinadas, colocam em funcionamento uma tecnologia de poder como uma “anatomia política do corpo”.

No funcionamento de uma tecnologia de poder disciplinar, essa individualização é descendente. Ela se ocupa do que há de mais baixo, tornando possível a emergência das ciências do homem pela preocupação com o que contraria o que se define, cientificamente, como o homem em geral. As ciências humanas, como a psicologia, a antropologia, a sociologia, constrói a narrativa do Homem em geral, para que se possa, por meio de comparações, fiscalizações, observações, identificar o que desvia ou o que ainda não é esse Homem geral. A criança deve ser alvo das disciplinas, na família e na escola, para tornar-se esse homem geral; o louco é encerrado no manicômio, no hospício, por que se desviou das características fixadas, pelas ciências humanas, de homem normal; o delinqüente é enviado às prisões, após os saberes médico, jurídico e psicológico, definirem o que há nele de desvio e o que o distanciou do comportamento de um homem de bem, a ser corrigido para voltar a conviver em sociedade, para ser reintegrado.

“O indivíduo é sem dúvida o átomo fictício de uma representação ‘ideológica’ da sociedade; mas é também uma realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama ‘disciplina’. Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele ‘exclui’, ‘reprime’, ‘recalca’, ‘censura’, ‘abstrai’, ‘mascara’, ‘esconde’. Na verdade o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção” (Idem: idem). Este poder individualizante se realiza em relações ascendentes e descendentes de seu exercício; isto ocorre a partir do momento em que cada um se oferece ao exame e responde: “eu sou isso”, “eu desejo ser isso”, “minha condição é essa”, “eu sou assim e assim”. Se a disciplina se exerce por meio da vigilância no interior da fábrica, da escola ou da prisão, ela só é possível na medida em que o operário, o aluno e o prisioneiro criam uma relação de identidade com sua condição no interior da instituição e respondem como é esperado, sabedor que é sujeito às sanções normalizadoras corretivas. Cada um se coloca na condição de assujeitado que responde, submisso, obedientemente, aos comandos do pai, do professor, do contra- mestre ou do carcereiro.

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Na prisão o exercício do poder disciplinar tem sua expressão terminal. A prisão é o lugar em que ele não se mascara e atua efetivamente. Porém, antes de um indivíduo chegar à prisão, uma série de instituições de adestramento atuou para produzir esse indivíduo normal, e se ele vai para prisão ele falhou. Isso confere uma “legitimidade” ao poder de punir, que aponta para o apenado como o que fracassou na escola, no exército, enfim, fracassou na vida, e, por isso, deve se submeter a uma cura/tratamento que só é possível na medida em que seja posto atrás das grades e permaneça sob cuidados especiais, destinados ao seu corpo e sua alma de desviado reconhecido. Encarcerar apresenta-se como uma ação social necessária e, ao mesmo tempo, parte de uma rigorosa economia da pena, que opera o poder disciplinar como exercício indispensável para a extração de docilidade política e produtividade econômica; um sinistro caminho que acopla liberdade e prisão.

Ao descrever o abandono do espetáculo público do suplício, que por seu excesso dava provas do poder do rei, Foucault chama atenção ao fato de que as práticas de confinamento, decorrentes do encarceramento como forma universal da penalidade moderna, não se restringem à prisão. A característica desse poder individualizador moderno é precisamente o combate que se trava na, pela e em torno da prisão, e que se dão por meio de múltiplos dispositivos de encarceramentos que vão da escola à prisão, da família à prisão, da fábrica à prisão, do quartel à prisão, do hospício à prisão, das ruas, direto para a prisão! A cidade, essa que também é uma criação moderna, passa a ser a cidade carcerária. É no entroncamento entre as diversas instituições que compõem a cidade e no continum dos indivíduos que passam de uma instituição a outra, que se desenrolam a batalhas e compõe-se a “repartição estratégica de elementos de diferentes naturezas e níveis” (Foucault, 2002b: 254).

Os perigosos que vagam pela cidade carcerária identificados pelo saber das ciências do homem como a criança indisciplinada ou o jovem operário rebelde, o louco ou delinqüente (este, produto dobrado da própria prisão), devem passar de um espaço fechado ao outro; eles são, a um só tempo, o produto e o alvo das técnicas disciplinares, assim como o exemplo negativo do que as crianças educadas e os cidadãos de bem não devem ser e evitar. É sobre a alma e o corpo de cada indivíduo-cidadão que as técnicas disciplinares — como uma rede que interliga discursos, muros, prédios, instituições — agem, desfazendo a concepção de poder moderno como reunião das vontades celebradas

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em um contrato fictício que sucedeu a concepção do antigo regime como expressão da vontade do rei.

As disciplinas colocam em funcionamento redes de regulações que atuam sobre os corpos moldando gestos, comportamentos, condutas, ações, decisões, mecânicas repetições. No entanto, esse sujeito da disciplina não é um ser inanimado a ser moldado pelas técnicas que lhe são aplicadas, mas responde, positivamente, a comandos, realizando, assim, a amálgama entre a função anunciada de um prédio e de seus agentes e técnicos e o que se espera dos que estão encerrados em seu interior. No limite, eles sonham estar dentro da escola, da fábrica, do hospital. Deste modo, sentem-se seguros, produtivos, integrados, salvos. Aos desviados, cabe a prisão, para trazer à sociedade o sentimento de estar salva, protegida, defendida. E desse outro confinamento, também se extrai a produtividade esperada dos corpos que lhe são destinados. Nessa economia da pena, o prisioneiro se reconhece como tal e, nas relações entre pares e com policiais e carcereiros, alimentam a prisão e sistema penal por meio do que Foucault chamou de regime dos ilegalismos.

É desta maneira que a disciplina, como uma tecnologia de poder é exercida para fabricar tanto o indivíduo normal, como o anormal e produz ilegalismos dentro e fora da sociedade livre. A fabricação do indivíduo engendra a fabricação dos delinqüentes controlados em um meio fechado em si mesmo. A prisão é a imagem do medo que colabora para manter os cidadãos de bem conformistas e conformados em suas acomodações, livres de serem tomados como delinqüentes. Ela justifica-se como sanção normalizadora sobre os desviantes, acionando sobre eles um dispositivo de vigilância corretivo (o panopticon) que insere um princípio de transparência total, e que acopla o regime dos ilegalismos, produzindo sua clientela e reserva de poder necessárias para sua alimentação sistêmica e contínua. A diferenciação e o esquadrinhamento das disciplinas, ao lado da concepção de homem criada pelas ciências humanas, produz identidades dobradas (louco/são; delinqüente/homem de bem; criança/adulto) como maneira eficaz de exercício de poder sobre cada pessoa como indivíduo no interior da instituição: escola, fábrica, prisão, hospital, caserna... no vaivém de ilegalismos a legalismos.

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