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Houve um tempo em que a rua era um lugar temido por ser um espaço de desgoverno e de ácratas. Nela circulavam os perigosos e os revoltados, os que não cabiam na casa, na família, na fazenda, na senzala, na fábrica, no orfanato, nas instituições de correção. A rua era o espaço do possível, onde ocorriam brigas, encontros inusitados, diversões, sexo, confrontos e desacordos com os poderes, insurreições, greves e possibilidades de revoluções. Espaço dos chamados desajustados, desviados, perigosos, revolucionários, incorrigíveis, degenerados, subversivos,

outsiders, rebeldes, insurretos, insurgentes. Mas também, havia os que até se prestavam a acordos, conformidades, conservadorismos, a gente assujeitada.

No Brasil, a partir da segunda metade do século XIX, as cidades iniciam sua expansão e consolidação e, ao mesmo tempo, suas ruas são tomadas por negros fugitivos das senzalas, revoltosos dos quilombos, guerreiros capoeiristas com seus

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dorsos nus e sua dança-luta perigosa25. Pelas ruas, espalhavam-se as possibilidades de revoltas, com histórias vindas do nordeste brasileiro de quilombos formados desde o final do século XVI, como o mais conhecido deles, o Quilombo dos Palmares, na serra da Barriga, onde hoje ficam os estados de Alagoas e Pernambuco (Péret, 1956). Assim, as casas de zungus faziam a passagem, na cidade, dos escravos revoltosos, que rumavam para o quilombo em áreas rurais (Batista, 2003). No final do Império, não só nas ruas do Rio de Janeiro, o perigo e o medo estavam associados à presença dos negros, apontados como vadios, mendicantes, arruaceiros, revoltados e violentos (Idem). Simultaneamente à criação de leis que regulavam o tráfico de escravos até sua abolição, os negros fugidos, evadidos, alforriados ou libertos, eram alvo de investimentos governamentais e privados, que iam do exercício da caridade cristã nas casas de misericórdias destinadas às crianças negras da rua e os bebês enjeitados das famílias burguesas à repressão policial e regulação por meio de políticas sanitaristas, com o objetivo de higienizar a capital e as modernas cidades que surgiam entre o final do século XIX e o começo do século XX (Góes & Florentino, 1999).

Foi o Código Penal de 1890 que identificou, pela prática da capoeira, a presença

perigosa dos negros nas ruas. Estabeleceu, pela primeira vez, as fases da infância para efeito de responsabilidade penal. Se o Código de 1820 isentou da criminalidade os menores de 14 anos, que não provassem o discernimento, para recolhê-los em casas de correção até completarem 17 anos, o novo Código regulamentou que as crianças com até 9 anos de idade, passassem a ser consideradas inimputáveis; as crianças entre 9 a 14 anos, que apresentassem discernimento, deveriam ser recolhidas, e os jovens com idade entre 14 e 21 anos, receberiam atenuantes, quando surpreendidos em ato de violação do código. Enfim, esse período da legislação penal brasileira, relativo às crianças e jovens, é também conhecido por compreender uma “etapa penal indiferenciada”, sem discriminar crianças e jovens de adultos, e os encarcerava nas mesmas instituições austeras utilizadas para prender os classificados como criminosos comuns (Shecaira, 2008a: 28-33). Ao mesmo tempo, o alvo da seletividade do sistema penal eram os negros libertos, as crianças e os jovens tidos como pobres, e os classificados pela legislação apenas como “criminosos comuns”.

25 “Durante o Império, os adeptos da capoeiragem lotaram as prisões, assim como fugiram dela e

enfrentaram a polícia. Com a proibição da capoeira com o Código Penal de 1890, as maltas desapareceram”. (Simões, 2007 em http://www.nu-sol.org/artigos/ArtigosView.php?id=24).

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Na história-política do Brasil, o investimento para conter, encarcerar e tirar das ruas crianças e jovens indesejáveis foi esboçado na preocupação cada vez mais acentuada com os filhos de escravos, nascidos no Brasil e, por isso, chamados de

crioulos. Essas crianças, segundo Góes & Florentino (1999), criadas nas fazendas e adestradas pelo suplício diário dos senhores de escravos, eram, inicialmente, uma saída para esses senhores. Eram as mais valiosas no mercado de escravos para tráfico interprovincial. Primeiro, porque já nasciam trabalhando e, assim, eram mais adaptadas ao trabalho nas fazendas que os negros trazidos da África; isso fazia com que “o preço do escravo crioulo [fosse] sempre superior ao preço do escravo africano, mesmo quando crescia, em muito, o desembarque de africanos, esta diferença entre o preço de ambos apenas se atenuava” (Idem: 188). A segunda vantagem dos senhores ao comercializarem crianças negras nascidas no Brasil, a partir da proibição legal, em 1850, com a lei Eusébio de Queirós, foi que as crianças escravas tornaram-se a solução mais viável, sem oferecer riscos à oligarquia das fazendas de terem que prestar contas ao governo do Império. No entanto, “há um outro aspecto interessante no adulto em que se transformava a criança escrava: a impaciência” (Idem: idem). Essa impaciência como potência de liberdade das crianças nascidas escravas em terras brasileiras, não demorava a se explicitar como revolta. Isso explica, em parte, que o fim da abolição da escravidão não decorreu apenas das pressões internacionais, da influência de liberais humanistas e da transformação do modo de produção, mas, sim, também, dos riscos políticos que corriam os senhores de escravos e o governo, diante da potência de revolta dos escravos, diminuindo os lucros econômicos da produção escravocrata. Há uma metamorfose nas estratégias de contenção desse contingente de miseráveis que, gradualmente, insinua-se, na medida em que vão se tornando trabalhadores livres e acoplam-se outras práticas de regulação e contenção. Com a Lei do Ventre Livre de 1871, segundo Lima & Venâncio (1991: 61-75), mesmo com bonificações oferecidas pelo governo para que os fazendeiros da capital Rio de Janeiro mantivessem nas fazendas os filhos dos escravos, passa a ser mais lucrativo — frente aos problemas com fugas e altas taxas de mortalidade entre as crianças negras — entregá-los à roda dos expostos da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, fundada em 173826, e alugar suas mães como amas de leite negras.

26 “Em 1738, seguindo uma antiga tradição portuguesa, é fundada, na Santa Casa de Misericórdia do Rio

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A partir desse momento, as crianças negras que escapam da morte no abandono, passam a ser um problema para a filantropia religiosa, caracterizando a primeira forma de conter a potência de liberdade das crianças soltas nas ruas. Os que não ficam nas fazendas ou não morrem, ocupam as ruas da capital, gerando problemas para a ordem pública, com a prática de pequenos furtos, as estratégias de sobrevivência e o desacato às autoridades que cuidavam das ruas, os policiais. Não demoram a surgir as críticas dos reformadores, como André Rebouças, ao sistema caritativo apontado como forma de alimentar o “parasitismo mendicante”. “Para superar essa situação, o autor [Rebouças] propunha a criação de orfanatos-escolas rurais, geridas por famílias que cuidariam dos abandonados e teriam ‘propriedade direta e imediata da terra’. Com efeito, desde a década de 1870, começam a surgir, no Rio de Janeiro, instituições voltadas para o atendimento dos menores abandonados” (Idem: 70). Para conter o potencial de revolta dos negros, que passam a ser trabalhadores livres, surge a primeira aproximação entre a filantropia privada e ação do governo desdobrada das críticas de moderados reformadores.

Esses orfanatos-escolas rurais pretendiam ocupar-se do excedente de crianças expelido pelo sistema escravista e sem possibilidade de absorção na produção pelo trabalho livre. Destes enjeitados filhos-pretos extrai-se uma positividade, já na passagem do Império para chamada República Velha, como mão-de-obra rural e alvo da expansão das regulações sanitárias e das instituições filantrópicas. No governo, crescem as propostas de políticas sanitaristas para a cidade ao mesmo tempo em que surgem as primeiras colônias rurais para tratar desse novo contingente de trabalhadores livres e desocupados. Nesse momento, a preocupação era a de limpar as ruas dos indesejáveis em oposição à repressão no governo do Império (Batista, 2003); uma questão de exercício da filantropia para os fazendeiros, que por meio da ação da Igreja, financiavam as casas de misericórdias que recolhiam das ruas essas crianças que poderiam vir a ser potencialmente perigosas, porque eram simplesmente os efeitos e rescaldos das revoltas de escravos vindos dos quilombos.

A prática filantrópica sobre as perigosas crianças negras na cidade do Rio de Janeiro passa por transformações quando uma nova situação política se insinua, fazendo com que a infância, no caso dos filhos de escravos e ex-escravos, ganhasse uma

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projeção social inédita. Esta nova situação política está relacionada com a emergência das cidades modernas, e, concomitantemente, os ideais de ordem, progresso, eugenia, higienismo e profilaxia social que acompanharam a passagem do Império para a formação da República Velha. Com a finalidade de operacionalizar esses ideais dois dispositivos de governos foram importantes: os controles sanitários e a polícia. E um dos alvos, privilegiados, desses dispositivos, que cuidarão da saúde da população como maneira de promover o progresso e a prosperidade do Estado e da nação, é a criança pobre e preta.

Da revolta contra os senhores, nasceram crianças livres, jovens astutos e adultos decididos a não mais servir. Essa potência de liberdade, esse ato de recusa a ser tratado como mercadoria comercializada pelos senhores marca a emergência de novas tecnologias de poder na fundação da República no Brasil. Mas foi a impaciência dos escravos já nascidos aqui, que abriu a possibilidade de revoltas, pois, sabemos que apenas aos trabalhadores livres é dada a possibilidade de agenciar potências de revolta e de transformação. Como argumenta Albert Camus em seu ensaio sobre o homem revoltado: “o escravo aceitava todas as exceções anteriores ao movimento de insurreição. Muito freqüentemente havia recebido, sem reagir, ordens mais revoltantes do que aquela que desencadeia sua recusa. Usava de paciência, rejeitando-as talvez, dentro de si, já que se calava, mais preocupado com seu interesse imediato do que consciente de seu direito. Com a perda da paciência, com a impaciência, começa ao contrário um movimento que pode se estender a tudo o que antes era aceito. Esse ímpeto é quase sempre retroativo. O escravo, no instante em que rejeita a ordem humilhante de seu superior, rejeita, ao mesmo tempo a própria condição de escravo” (Camus, 2003: 26). Da impaciência dos escravos e da atitude de recusa individual e resoluta dessa condição, nasce a revolta.

Na passagem do Império para República a revolta dos escravos se depara, nas ruas, com a revolta de operários imigrantes anarquistas. Não há exatamente um encontro, uma associação, mas talvez uma soma de possibilidades, uma multiplicação de revoltas: espaços de aproximação entre homens e mulheres anônimos, escravos ou trabalhadores livres, lutavam e lutaram contra a dominação de fazendeiros, industriais e governantes. Se o negro foi construído como o perigoso alvo a ser combatido e banido das ruas no Império, os anarquistas serão o terror das ruas na República.

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Muitos desses imigrantes que aqui chegaram, no final do século XIX, fugiam da insuportável miséria — condição incontornável no capitalismo —, e muitos deles, anarquistas, escapavam das perseguições dos governos europeus intensificadas após a Comuna de Paris, em 1871, e a onda de atentados violentos do final do século XIX que corria a Europa (Passetti & Oliveira, 2006). A partir de então, para o Estado, aos escravos libertos, somam-se os imigrantes anarquistas, como alvo da seletividade de seu sistema penal de então.

Os anarquistas imigraram para trabalhar nas lavouras, principalmente nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, configurando a formação de uma parcela de trabalhadores livres no campo, que, gradualmente, substituiriam o trabalho de escravos. Do campo para cidade, onde a oligarquia agro-exportadora iniciava o investimento nas indústrias, essa primeira geração de trabalhadores livres difundia a revolta e a anarquia fundando jornais, escolas modernas, ateneus e centros de cultura; faziam das lutas dos operários por libertação, firmes experimentações de liberdade como disseminação de uma cultura libertária (Passetti & Augusto, 2008). Nas ruas, agitavam greves, comícios e passeatas que provocavam o encontro de experimentados militantes (alguns imigrantes e outros já formados aqui pelas lutas que se avolumavam) com novos interessados em lutar contra a exploração do trabalho nas fábricas que era ainda mais brutal com as mulheres e as crianças.