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2. DE QUAL DEMOCRACIA ESTAMOS TRATANDO? UM ESTUDO DAS TEORIAS

2.5 Bobbio e a teoria da democracia

Norberto Bobbio (2004: 20), ao reunir alguns textos que havia escrito sobre as chamadas transformações da democracia, definiu a democracia como dinâmica e que o futuro deve considerar:

as transformações da democracia sob a forma de promessas não cumpridas ou de contraste entre a democracia ideal tal como concebida por seus pais fundadores e a democracia real em que, com maior ou menor participação, devemos viver cotidianamente.

Bobbio (2004) preocupava-se em estudar a democracia surgida após a formação dos Estados modernos48 diferenciando-a do regime existente na Antiguidade Clássica. Apesar de

48 O conceito de Estado possui uma ampla discussão na literatura específica, objeto de análise do próprio pesquisador

definir os atenienses como fundadores da democracia, demonstrou que a complexidade assumida pelas sociedades deu origem ao que chama de democracia real. Escreveu que, se perguntassem “se a democracia tem um porvir e qual ele é, admitindo-se que exista, responderia tranquilamente que não sei” (p. 30).

Segundo o autor, na mesma obra, uma definição mínima de democracia seria aquela

segundo a qual por regime democrático entende-se primariamente um conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados.

Bobbio afirma, ainda, que

o único modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras que estabelecem quem está autorizado a tomar decisões coletivas e quais os procedimentos.

Afirmando ser esta a definição mais clara, inclui no conceito geral “a estratégia de compromisso entre as partes através do livre debate para a formação de uma maioria”, diferenciando a realidade da democracia representativa da realidade da democracia direta.

A regra fundamental da democracia é a da maioria, base para considerar as decisões coletivas, sendo a unanimidade possível apenas em grupos restritos ou homogêneos. Para que a democracia ocorra, é necessário que as pessoas chamadas a decidir ou a eleger os que decidirão sejam postas diante de possibilidades reais e em condição de optar por uma delas, sendo-lhes garantidos os direitos de liberdade, de opinião, de expressão, de reunião, de associação.

A sociedade democrática, em seu modelo ideal, era uma sociedade centrípeta. Já as sociedades contemporâneas são centrífugas, policêntricas e pluralistas, características para as quais a resposta seria a democracia representativa.

Para Bobbio (2004: 36) o princípio sobre o qual emerge a representação política é: “a antítese exata do princípio sobre o qual se funda a representação dos interesses, no qual o transformações operadas na Europa na Idade Moderna. Outros autores reconhecem a existência do Estado vinculada ao exercício do poder em outras sociedades.

representante, devendo perseguir os direitos do representado, está sujeito a um mandato vinculado”.

Ao definir mandato vinculado como típico de contrato privado, que prevê sua anulação por excesso de mandato, caracteriza, ainda, a democracia representativa a partir da proibição dos mandatos imperativos. Nessas condições, a premissa seria a negação dos interesses particulares, uma renúncia ao princípio de liberdade como autonomia.

O indivíduo considerado em seu papel geral de cidadão surgiu do nascimento da democracia moderna como método de legitimação e controle das decisões políticas.

O sufrágio universal seria um dos maiores pilares da extensão do processo de democratização; a ampliação desse processo estaria na passagem da democracia política para a democracia social49, cujo desenvolvimento se dá com o aumento não do número daqueles com direito de participar nas decisões, mas nos espaços nos quais podem exercer esse direito.

Ao fazer referência ao desejo pela democracia direta, Bobbio (2004: 54) escreveu: “[...] se por democracia direta se entende literalmente a participação de todos os cidadãos em todas as decisões a eles pertinentes, a proposta é insensata”.

Exatamente ao verificar a impossibilidade da aplicação daquela democracia direta, o autor sugere a ampliação do processo em outras bases, em especial naquilo que chama de democracia social.

Para ele, democracia representativa significa genericamente que as deliberações coletivas sejam tomadas não diretamente, mas por pessoas eleitas para esse fim. Existindo diferentes formas de representação, pode haver o representante como delegado ou fiduciário. O representante delegado seria apenas um porta-voz de seus representados com mandato extremamente limitado e revogável. Por sua vez, o representante fiduciário tem o poder de agir com certa liberdade em nome e por conta dos representados, gozando da confiança deles, interpretando com discernimento próprio os seus interesses, não existindo um mandato imperativo.

Como mencionado anteriormente, na democracia representativa, o representante deve ser um fiduciário, não um delegado, representando os interesses gerais, e não

49 Um discurso corrente na sociedade brasileira define a democracia social como mais voltada a direitos objetivos de

sobrevivência, ou seja, os de igualdade de oportunidades em habitação, educação, saúde. Para Norberto Bobbio, trata-se de algo diferente, como apresentado ao longo desta seção.

os particulares.

Apesar de estarem assentadas em bases distintas, a democracia representativa e a democracia direta aproximam-se quando os representantes são substituíveis, tratando-se de dois sistemas que podem se integrar reciprocamente. Sobre o assunto, Bobbio (2004: 65) escreveu: “Com uma fórmula sintética, pode se dizer que num sistema de democracia integral as duas formas de democracia são ambas necessárias, mas não são, consideradas em si mesmas, suficientes”.

O autor destaca o chamado processo de ampliação da democratização, com a passagem da democracia política para a democracia social. Na realidade, trataria da extensão da esfera das relações políticas à esfera das relações sociais50, passando para o campo da realidade civil: do bairro, do trabalho, da escola etc.

De acordo com Bobbio (2004: 98), “pode-se definir o governo da democracia como o governo do público em público”. O sentido de público possui dois significados diversos: em oposição a privado, de não pertencente à coisa pública ou ao Estado, e de manifesto, transparente, mais precisamente de visível. Deve, a democracia, configurar-se em um regime do poder visível; o caráter público é a regra, o segundo a exceção, “e mesmo assim é uma exceção que não pode fazer a regra valer menos, já que o segredo é justificável apenas se limitado no tempo, [...]”. (2004: 100)

A democracia representativa não negaria o caráter público do poder, entendido este como não secreto, como aberto ao público. Em paralelo e além do tema da representação, Bobbio (2004: 102) entende que a teoria do governo democrático teria desenvolvido outro tema ligado ao poder visível: o da descentralização, entendida como a valorização política da periferia com respeito ao centro – “o poder é tanto mais visível quanto mais próximo está”.

A forma de governo democrático nasce do acordo de cada um com todos os demais, representada como tipo ideal de relação simétrica. Para Bobbio, Rousseau foi o grande primeiro escritor democrático, com a República idealizada no Contrato social, ou, ainda, ao afirmar que se é livre quando se está submetido às leis, mas não quando se deve obedecer a um homem, pois, ao obedecer às leis, acata-se apenas a vontade pública51.

Destarte, a democracia seria o governo das leis por excelência, entendida, no

sentido definido por Rousseau, como vontade geral. Para definir a democracia, ainda, seriam necessárias duas negações que, nas palavras de Bobbio (1999: 28), seriam: “a negação do poder autocrático, em que consiste a participação, e a negação do poder monocrático, em que consiste o pluralismo”.

O regime democrático não se fundaria apenas no consenso nem no dissenso, mas na presença, ao mesmo tempo, de consenso e dissenso, de um consenso que não exclua o dissenso, dentro das regras de jogo. O dissenso que não admite debates com os que pensam de maneira diferente não seria legítimo, tampouco democrático. O dissenso que respeita as regras do jogo é legitimado pela democracia, convivendo no interior do sistema. É exatamente nesse sentido que qualquer regime democrático pressupõe a existência de oposição.

Bobbio (2004: 196) destaca, dentre outras, duas condições necessárias para que haja um pacto democrático:

[...] a) que o poder soberano [...] não se estenda sobre todas as liberdades e todos os poderes [...] e, portanto, respeite aquelas liberdades e aqueles poderes que são considerados [...] direitos naturais e enquanto tais não são nem suprimíveis nem restringíveis; b) que sejam estabelecidas regras para as decisões coletivas, vinculatórias para toda a coletividade, de modo a permitir que tais decisões coletivas sejam tomadas com a máxima participação e o máximo consenso dos próprios contraentes [...].

No conceito de democracia em Bobbio há a definição da chamada extensão do processo de democratização, a necessidade apontada de existência da democracia política e da democracia social.

A introdução da distinção entre democracia formal (referindo-se precisamente à forma de governo) e democracia substancial (conteúdo da forma) relaciona-se ao processo de expansão. Ao discutir a distinção, Bobbio (1997: 158) afirma:

[...], o único ponto sobre o qual um e outro poderiam concordar é que uma democracia perfeita deveria ser ao mesmo tempo formal e substancial. Mas um regime desse gênero, pertence, até agora, ao gênero dos futuríveis (1997: 158).