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Bons pés, bons olhos e bons ouvidos : Bougainville e Diderot, agentes

1. Passeios por uma França do século XVIII: entre o navio de Bougainville e a

1.4 Bons pés, bons olhos e bons ouvidos : Bougainville e Diderot, agentes

O escritor-viajante e o filósofo faziam parte de segmentos distintos dentro da sociedade francesa no período do Século das Luzes. Como apresentado anteriormente, o país tinha sua população dividida em setores e cada repartição representava partes de uma pirâmide.

A base da pirâmide representa exatamente a classe que sustentava toda a sociedade francesa e os luxos da nobreza. O Terceiro Estado era composto por burgueses, trabalhadores e camponeses – que, apesar de estarem juntos na base da pirâmide, ainda apresentavam uma organização também hierarquizada entre si - e eram eles que pagavam altos impostos, dos quais as duas primeiras partes da pirâmide – topo e centro – tinham o privilégio de isenção. Segundo os irmãos Arno e Maria José Wehling:

O clero, ou primeira ordem, tinha por finalidade, como diziam os tratados teológicos, orientar a vida cristã da comunidade e preparar-lhe o caminho da salvação eterna, combinado, de acordo com a tradição vinda de Santo Agostinho (354-430), a cidade dos homens com a cidade de Deus[...] A nobreza, ou segunda ordem, representava a espada e tinha por obrigação a defesa dos bons cristãos contra os hereges e os tiranos. Naturalmente, ela nem sempre correspondia a esses ideais da cavalaria medieval, mesmo porque também possuía inúmeros segmentos, variando segundo o tempo e o lugar a que pertenciam. Ela se dividia entre uma nobreza rural, que vivia em suas próprias terras[...] ou mesmo entre uma nobreza de sangue (de espada), originada em séculos anteriores, e chamada nobreza de toga, no caso da França, de origem burocrática, também a serviço do rei.[...] O povo compunha a terceira ordem. Estatisticamente, representava mais de 90% da população. Compreendia três grandes segmentos – burgueses, artesãos e camponeses – que, por sua vez, comportavam inúmeras subdivisões. Burgueses eram os comerciantes, os funcionários empregados na administração pública e privada e os profissionais liberais: médicos, contadores, professores, advogados. Os artesãos eram arregimentados nas corporações fundadas nas cidades medievais: sapateiros, ferreiros, marceneiros, serralheiros, músicos, calafates. Os camponeses, em geral, 2/3 da população, subdividiam-se por sua vez em numerosas categorias, conforme sua vinculação, econômica e jurídica, à terra, indo de proprietários plenos ou foreiros até arrendatários e diaristas (jornaleiros). (WEHLING, 2012, p. 39-41)

67 Diderot percebia que a antítese dessa França era o luxo de Versailles, do qual a nobreza, liderada por Louis XV, usufruía.

É durante o Século das Luzes que ele vai criticar esse absolutismo opressor, que faz burgueses e trabalhadores rurais trabalharem e pagarem esse luxo, sem ao menos terem direito a uma parcela dele. Ele próprio sofreu duras punições por manter ideias oposicionistas sobre o controle do rei em relação à política, economia e, até, religião da sociedade francesa.

Considerado subversivo e agitador para a população da época, Diderot não poupou esforços para tratar a vida em sociedade como instrumento natural que permite ao homem, de maneira mais fácil, lutar pela sobrevivência e bem-estar. Seu objetivo era levar conhecimento, tirando a população da ignorância e apresentando a essa mesma população o direito ao livre arbítrio, retirando qualquer carga de divindade ou “ser superior” na figura de qualquer um que queira dominar.

No mesmo período, Bougainville se prestava à navegação, a fim de ampliar território de poder francês e, tendo possibilidade de gerar mais “súditos”, colonizando novos povos e os vinculando aos poderes do rei, aculturando e impondo a eles a mesma dinâmica da fome e da miséria pela qual passava parte da população francesa.

É na vida em sociedade que Diderot apresenta a convivência entre os homens como uma busca natural. É o próprio autor quem relata Nas observações

sobre o Nakaz:

[...] os homens se reuniram em sociedade por instinto, assim como os animais mais fracos se reúnem em rebanhos [...] os cães selvagens associam-se e caçam juntos. O homem isolado não teria podido vigiar a cabana, preparar alimentos, cuidar dos rebanhos etc. Cinco homens fazem e fazem bem todas estas coisas [...] (DIDEROT, 1963, p. 403)

A mesma sociabilidade como algo inscrito na própria natureza do homem também aparece em alguns dos verbetes presentes na Encyclopédie ou dictionnaire

raisonné des sciences, des arts et des métiers, idealizada e editada por ele em

colaboração com o físico e matemático Jean le Rond d’Alembert.

Nesse mesma perspectiva aparece, no verbete "direito natural", a ideia de ruptura com a doutrina da desigualdade natural, a qual defendia que alguns homens,

68 naturalmente, foram destinados ao comando e ao poder e outros, naturalmente, foram destinados apenas à submissão. E, caso esses últimos se opusessem às ordens dos primeiros, poderiam ser aniquilados.

No verbete "direito natural", escrito por Diderot para o quinto volume da Enciclopédia, podemos perceber o quanto a sociabilidade era encarada como indispensável para a vida em sociedade : "o homem que só escuta a sua vontade particular é o inimigo do gênero humano"48

Ao mesmo tempo em que o filósofo levantava bandeiras contrárias ao absolutismo, Bougainville, homem de muitas formações e habilidades, incluindo a produção, em 1752, com apenas vinte e oito anos de idade, de um Tratado de Cálculo Integral, sob orientação de Jean de Rond d’Alembert, corrobora com o modelo absolutista que ainda reinava na França no início do século XVIII.

Um contraponto importante na relação entre Bougaingville e Diderot está em torno da ideia de civilização, que imperava na França do século XVIII. Segundo Norbert Elias:

Civilisé era, como cultivé, poli ou policé, um termo, não raro usado quase como sinônimo, com os quais os membros da corte gostavam de designar, em sentido amplo ou restrito, a qualidade específica de seu próprio comportamento, e com os quais comparavam refinamento de suas maneiras sociais, seu “padrão”, com as maneiras de indivíduos mais simples e socialmente inferiores. Conceitos como politesse ou civilité tinham, antes de formado e firmado o conceito de civilisation, praticamente a mesma função que este último: expressar a auto-imagem da classe alta europeia em comparação com outros, que seus membros consideravam mais simples ou mais primitivos, e ao mesmo tempo caracterizar o tipo específico de comportamento através do qual essa classe se sentia diferente de todos aqueles que julgavam mais simples e mais primitivos. (ELIAS, 1990, p. 54)

Nesse caso, enquanto o navegador se aproximava do grupo defensor dessa ideia de civilização, que para ser civilizado o homem deveria se conduzir conforme os moldes da nobreza francesa, por outro lado, o filósofo propunha a quebra desses valores da nobreza, dessa civilização normativa que conduz os “corretos” moldes para a vida em sociedade.

48 Enciclopédia, verbete “direito natural”

69 Porém, nas páginas a seguir, veremos o quanto Bougainville nos surpreende ao escrever sobre o Taiti e a população taitiana, rompendo, em parte, com a construção cristalizada do que é ser civilizado e se deslumbrando com toda a liberdade natural da qual goza aquela sociedade.

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2. O candelabro e o Sol: Diderot e