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O 14 ◦ viajante e o início para a escrita de um relato de viagem

1. Passeios por uma França do século XVIII: entre o navio de Bougainville e a

1.2 A volta ao mundo de Louis Antoine de Bougainville

1.2.3 O 14 ◦ viajante e o início para a escrita de um relato de viagem

É possível observar todo o trajeto feito pelo viajante Louis Antoine de Bougainville e sua tripulação a partir do mapa a seguir, o qual ilustra o primeiro capítulo, no primeiro volume, de seu relato original.

42 O trajeto também é explicado pela personagem B à personagem A, nas primeiras páginas do texto filosófico Supplément au voyage de Bougainville, de Diderot. É no momento de apresentação da leitura do relato de viagem Voyage

autour du Monde, que A e B conversam sobre a viagem de Bougainville :

[...]

A.— Seu curso foi longo?

B. — Tracei-o sobre este globo.24 Estais vendo esta linha de pontos vermelhos?

A. — Que parte de Nantes?

B. — E corre até o estreito de Magalhães, entra no oceano Pacífico, serpenteia entre essas ilhas que formam o imenso arquipélago que se estende das Filipinas à Nova Holanda, roça Madagáscar e o cabo da Boa Esperança, prolonga-se até o Atlântico, segue as costas da África, e une uma de suas extremidades àquela de onde o navegador embarcou. [...] (DIDEROT, 1972, p. 143)

O viajante e toda a tripulação partiram em 1766 com dois navios, La

Boudeuse e L'Étoile. Saíram de Brest, em 5 de dezembro de 1766 com as

embarcações, tendo o retorno de La Boudeuse em Nantes, em 6 de março de 1769, enquanto L’étoile retornou para Rochefort em 24 de abril de 1769.

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43 O navegador parte da França passando pelo oeste do Cabo Verde, rumando, primeiramente, ao Rio de Janeiro, Montevidéu e Ilhas Malvinas. A sequência da viagem passa pelo Estreito de Magalhães, Terra do Fogo, em direção ao Taiti. Ainda no oceano Pacífico, passa pelo arquipélago de Cyclades, posteriormente pela Bretanha, Moluques e Batávia, depois pelo arquipélago de Bourbon, passando ao sul de Madagascar e contornando o cabo da Boa Esperança, passando ainda pela Ilha de Santa Helena. E, em seu rumo ao Atlântico Norte, cruza o Cabo Verde por oeste e o Açores por leste.

Sobre parte do objetivo de sua viagem, Bougainville escreve:

Em fevereiro de 1764, a França havia começado a se estabelecer nas ilhas Malvinas. A Espanha reivindicou essas ilhas, como sendo uma dependência do continente da América meridional; e como seu direito foi reconhecido pelo rei, recebi ordens de devolver nossas instalações para os espanhóis e de me dirigir, em seguida, para as Índias Orientais, atravessando o mar do Sul entre os trópicos. Para tal expedição, deram- me o comando da fragata la Boudeuse, com vinte e seis canhões de doze libras e, nas Ilhas Malvinas, eu devia me unir ao navio l’Étoile, destinado a trazer os alimentos necessários para a nossa longa viagem e a me seguir durante o resto da campanha.25 (BOUGAINVILLE, 1989, p. 21)

Ele também esteve no Rio de Janeiro em 1767, quatro anos após a guerra dos sete anos26, e reuniu dados sobre as fortificações, administração e comércio. Mas não foi o Brasil, nem o Rio de Janeiro, a “menina dos olhos de ouro” do relato do viajante. Pelo contrário, no Rio de Janeiro, de início, recebeu boa acolhida das

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Dans le mois de février 1764, la France avait commencé un établissement aux îles Malouines. L’Espagne revendiqua ces îles, comme étant une dépendence du continent de l’Amérique mériodionale; et son droit ayant été reconnu par le roi, je reçus l’ordre d’aller remettre nos établissements aux Espagnols, et de me rendre ensuite aux Indes orientales, en traversant la mer du Sud entre les tropiques. On me donna pour cette expédition le commandement de la frégate la Boudeuse, de vingt-six canons de douze, et je devais être joint aux îles Malouines par la flûte l’Étoile, destinée à m’apporter les vivres nécessaires à notre longue navigation et à me suivre pendant le reste de la campagne. (BOUGAINVILLE, 1989, p. 21) (Trad. Sandra Regina Guimarães)

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A guerra dos sete anos durou de 1756 a 1763. Foi um conflito ocorrido durante o reinado de Louis XV e envolveu países da Europa. França, Áustria e seus aliados (Saxônia, Rússia, Suécia e Espanha) constituíam um grupo e a Inglaterra, Portugal, a Prússia e Hanôver, outro. Muitos foram os motivos que serviram para desencadear a guerra. Destacamos: a preocupação das potências europeias com o crescente prestígio e poderio de Frederico II, o Grande, Rei da Prússia; as disputas entre a Áustria e a Prússia pela posse da Silésia, província oriental alemã, que passara ao domínio prussiano em 1742 durante a guerra de sucessão austríaca; e a disputa entre a Grã-Bretanha e a França pelo controle comercial e marítimo das colônias das Índias e da América do Norte.

44 autoridades locais, mas, incidentes no sul, envolvendo portugueses e espanhóis, por causa do domínio das terras meridionais, em especial o controle das margens na Foz do Rio da Prata, provocaram mudança na atitude do vice-rei em relação aos franceses. Bougainville e seus oficiais foram proibidos de permanecer nos arredores da cidade, que se tornou capital da colônia em 1763, por ser considerada ponto estratégico para os interesses do ouro das Minas Gerais.

A zona de conflito criada pela disputa entre portugueses e esponhóis ocasionou o encurtamento do período de estadia dos franceses no Brasil, o que também prejudicou a pesquisa sobre as espécies de vegetais, pelo naturalista Philibert Commerson27, o qual assegurou sobre o Brasil que "esse país é o mais rico em plantas que eu já conhecera e que tinha encontrado tesouros para a botânica."28.

Apesar do pouco tempo em terras brasileiras, Bougainville expressa um encantamento ao contemplar a paisagem local.

Durante a nossa estadia no Rio de Janeiro , havíamos gozado da primavera dos poetas. A vista dessa baía sempre proporcionará um enorme prazer aos viajantes, especialmente àqueles que, como nós, estiveram por muito tempo privados da visão da vegetação, das casas e que viveram em climas onde a calma e o sol são raros. Nada é mais rico do que vislumbrar as paisagens disponíveis em todos os lugares e teríamos tido uma grande satisfação em desfrutar desse país encantador. Seus habitantes demonstraram , da maneira mais leal, o desgosto que lhes causou o mau procedimento do seu vice-rei em relação a nós. Também nós lamentamos não poder permanecer por mais tempo com eles. Tantos outros viajantes já descreveram o Brasil e sua capital que eu não diria nada que não fosse uma repetição enfadonha. O Rio de Janeiro, uma vez conquistado pelas armas da França, é bem conhecido por ela. Contentar-me-ei a entrar aqui em alguns detalhes acerca das riquezas do mercado dessa cidade e sobre a renda que o rei de Portugal retira dele.29 (BOUGAINVILLE, 1989, p.46- 47)

27

Philibert Commerson foi um naturalista que acompanhou a expedição de Louis Antoine de Bougainville.

28 “(...) ce pays était le plus riche en plantes qu’il eût jamais rencontré et qu’il y avait trouvé des trésors

pour la Botanique.” (BOUGAINVILLE, 1989, p. 47) (Trad. Sandra Regina Guimarães)

29

Nous avions joui pendant notre séjour à Rio de Janeiro du printemps des poètes. La vue de cette baie donnera toujours le plaisir le plus vif aux voyageurs, surtout à ceux qui, comme nous, auront été longtemps privés de la vue des bois, des habitations, et qui auront vécu dans des climats où le calme et le soleil sont rares. Rien n’est plus riche que le coup d’oeil des paysages qui s’offrent de toutes parts, et c’eût été pour nous une vraie satisfaction de jouir de cette charmante contrée. Ses habitants nous avaient témoigné de la façon la plus honnête le déplaisir que leur causaient les mauvais procédés de leur vice-roi à notre égard. Aussi regrettâmes-nous de ne pouvoir rester plus longtemps avec eux. Tant d’autres voyageurs ont décrit le Brésil et sa capitale que je n’en dirais rien qui ne fût une répétition fastidieuse. Rio de Janeiro, conquis une fois par les armes de la France, lui est bien

45 A passagem do relato de viagem mencionada acima talvez explique o porquê das poucas páginas dedicadas ao Brasil, sobretudo ao Rio de Janeiro. Além do pouco período que estiveram no local referido, Bougainville demonstra ter sido leitor dos relatos de viagens produzidos por outros viajantes e, por isso, recusa-se a exercer o papel de mero repetidor do que todos os outros viajantes já disseram sobre as terras brasileiras. Ele sabia o quanto já se tinha falado em muitos outros relatos sobre o clima, a paisagem, a terra, a fauna e a flora do Brasil. Apenas para exemplificar, começamos pelos comentários de Vespúcio, em sua obra Novo Mundo

– As cartas que batizaram a América30

, ao destinatário Lorenzo di Médici: “ali o ar é

muito temperado e bom e, pelo que pude conhecer (...), nunca houve peste ou outra doença oriunda da corrupção do ar” (VESPÚCIO, 2003, p.45). E continua:

A terra daquelas regiões é muito fértil e amena, com muitas colinas, montes, infinitos vales, abundante em grandíssimos rios, banhada de saudáveis fontes, com selvas amplíssimas e densas, pouco penetráveis, copiosa e cheia de todo o gênero de feras. Ali principalmente as árvores crescem sem cultivador, muitas das quais dão frutos deleitáveis no sabor e úteis aos corpos humanos [...]. Se quisesse lembrar de cada coisa que ali existe e escrever sobre os numerosos gêneros de animais e a multidão deles, a coisa se tornaria totalmente prolixa e imensa [...]. Ali todas as árvores são odoríferas e cada uma emite de si goma, óleo ou algum líquido cujas propriedades, se fossem por nós conhecidas, não duvido de que seriam saudáveis aos corpos humanos. Certamente, se o paraíso terrestre estiver em alguma parte da terra, creio não estar longe daquelas regiões, cuja localização [...] é para o meridiano, em tão temperado ar que ali nunca há invernos gelados nem verões férvidos. (VESPÚCIO, 2003, p. 46)

Em 1663, outro visitante, o marujo inglês Edward Barlow comentou: “No que se refere ao clima, o inverno daqui é o nosso verão. E mesmo durante esse inverno, excetuando os dias de chuva, o clima é mais quente do que aquele que temos durante o verão”31

. Ainda sobre o clima, podemos ressaltar as palavras utilizadas por

connu. Je me contenterai d’entrer ici dans quelques détails sur les richesses dont cette ville est le débouché et sur les revenus que le roi de Portugal en tire. (BOUGAINVILLE, 2001, p.46-47) (Trad. Sandra Regina Guimarães)

30

VESPÚCIO, Américo. Novo Mundo – As cartas que batizaram a América. São Paulo: Planeta do Brasil, 2003.

31

Citação extraída da obra: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. A Construção do Brasil na Literatura de Viagem dos séculos XVI, XVII E XVIII. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.

46 Jean de Léry (1980, p. 111): “(...) bom clima da terra, sem geadas nem frios excessivos que perturbam o verdejar permanente dos campos e da vegetação (...)”

Muitos são os trechos que poderíamos utilizar para exemplificar quantos navegantes e aventureiros já descreveram a natureza das terras brasileiras, mas encerramos nossas passagens ilustrativas com um relato de Flecknoe, um inglês, que em sua coleção de cartas intitulada Narrativa de dez anos de viagens na

Europa, Ásia, África e América, a respeito do Rio de Janeiro, comenta:

As aves são tão belas que poderíamos afirmar que a natureza aprendeu aqui os seus matizes antes de pintar as nossas. Conquanto os pássaros da Arábia sejam chamados aves do Paraíso, merece o Brasil o nome de Paraíso das aves. (FRANÇA, 1999, p. 38-39)

Bougainville era conhecedor de todos esses comentários e, por esse motivo, dispensa repetir tais descrições. Por isso, o grande tesouro e o que chama atenção na sua obra é a visita à ilha de Taiti, em abril de 1768, e por pouco o viajante perdeu a oportunidade de se tornar seu descobridor, desconhecendo a visita anterior de Samuel Wallis, menos de um ano antes. De qualquer modo, ele se destaca por circular pelo oceano Pacífico.

Em março de 1769, a expedição completou sua circunavegação e chegou em Saint-Malo, com a perda de apenas sete dos 200 homens que compunham a tripulação, fato excepcional naquela época, e um crédito extra ao bom comando da expedição de Bougainville. Sua viagem foi também excepcional pelo fato de ter sido a primeira a incluir uma mulher, Jeanne Barret32, governanta e amante do naturalista da expedição, Philibert Commerçon.

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