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Denis Diderot: apresentação do texto Supplément au Voyage de

1. Passeios por uma França do século XVIII: entre o navio de Bougainville e a

1.3 O filósofo Denis Diderot, leitor de Bougainville

1.3.1 Denis Diderot: apresentação do texto Supplément au Voyage de

Bougainville

Apesar de toda a produção, Diderot chama atenção pelas reflexões filosóficas, o que também lhe rendeu muitas perseguições e prisão. O seu principal pensamento é o da existência de uma organização na natureza, que a faz constituir um verdadeiro sistema, isto é, "um conjunto onde tudo está unido, constituindo uma cadeia contínua, desde as formas mais primitivas de organização da matéria até as mais complexas, nos domínios do humano."42 (DIDEROT, 1979, p.17)

A forma dele entender o ser humano explica-se pelo fato dos corpos não serem movimentados por forças exteriores, mas os próprios átomos conteriam forças internas. Teriam uma espécie de energia cinética43 ou potencial, responsável maior pelas transformações de toda a natureza.

De acordo com o seu pensamento: "a suposição de um ser qualquer situado fora do universo material é impossível. Não se deve jamais fazer semelhantes suposições, porque delas não se pode jamais inferir algo."44 (DIDEROT, 2000, p.

42

Diderot, Denis, 1713-1784. Textos escolhidos / Diderot ; traduções e notas de Marilena de Souza Chauí, J. Guinsburg. — São Paulo : Abril Cultural, 1979.

43

A energia cinética é a energia que está relacionada com o estado de movimento de um corpo e a velocidade que ele assume. Este tipo de energia é uma grandeza escalar que depende da massa e do módulo da velocidade do corpo em questão. Quanto maior o módulo da velocidade do corpo, maior é a energia cinética. Quando o corpo está em repouso, ou seja, o módulo da velocidade é nulo, a energia cinética é nula.

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DIDEROT, Denis. Princípios Filosóficos sobre a matéria e o movimento. In.: DIDEROT, Denis. Obras I – Filosofia e Política. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2000. p. 251.

61 251). A partir desse modo de entender o funcionamento da natureza, torna-se dispensável a existência de um criador ou qualquer ser sobrenatural para explicar os fenômenos materiais. Todas as transformações deveriam ser explicadas como interação de partículas materiais elementares. Ele também não admitia a existência de inspiração religiosa, principalmente a cristã, do dualismo que separa o corpo da alma. Segundo Todorov, "Para Diderot, [...] a natureza humana dependia apenas da biologia, ou mesmo da zoologia." (1993, p. 39)

Tais perspectivas filosóficas deístas preservam, segundo Paul Hazard, a ideia de uma adesão à uma lei : a lei da natureza. Ainda segundo o autor:

[...] verificavam depressa que a palavra estava tomada em toda espécie de sentidos e que, assim, causava "uma horrível confusão nos discursos, tanto dos ignorantes como dos sábios." A natureza é prudentissima. A natureza nada faz em vão. A natureza nunca excede seu fim. A natureza faz sempre o que é melhor. A natureza age sempre pelas vias mais curtas. A natureza não se mostra redundante no superfulo, nem desprovida no necessário. A natureza é conservadora por si só. A natureza cura os males. A natureza vela sempre pela conservação do universo [...] (HAZARD, 1961 ,p. 201)

Diderot não interpreta a natureza como um sistema puramente físico - como os demais materialistas de sua época -, mas como um sistema orgânico e biológico, dentro do qual é fundamental a hipótese de sensibilidade da matéria. Tanto a matéria inorgânica quanto a orgânica são vistas como capazes de sensibilidade.

Defendendo o movimento e a sensibilidade como inerentes a toda matéria, ele supunha que se poderia explicar toda a cadeia de fenômenos naturais, tanto físicos quanto mentais. Tudo que a natureza contém seria produto de matéria em movimento, submetida a processos de fermentação produzidos pelo calor. O filósofo soube integrar em sua visão do mundo os primeiros resultados de estudos científicos que dariam base para as teorias evolucionistas do século XIX, apontando que o ser se desenvolve pelo meio.

Pautado na explicação a partir das ciências, ele afirma que a vontade e o livre arbítrio seriam, rigorosamente, determinados pelo sistema natural de que o homem faz parte. Sua defesa é a de que a boa lei é aquela que segue a natureza. Também acredita que a boa conduta é aquela que respeita os aspectos de nossa natureza.

62 Da mesma forma, as noções de justiça e injustiça seriam relativas e a conduta justa ou injusta, assim como os atos da vontade, teriam como fundamento causas físicas. Portanto, conceber a conduta moral como negação das necessidades naturais mais profundas seria um erro.

Ainda segundo o autor, o erro tem como responsável as convenções sociais, que, sem necessidade, restringem as bases biológicas da conduta humana. Um século antes de Freud, Diderot já mostrou em suas obras os perigos da repressão sexual. Temos, por exemplo, os temas apresentados em "A Religiosa", que retratam o enclausuramento contra a prórpia vontade e um regime que vai contra a ordem da natureza.

Toda filosofia que tente retirar do homem prazer e felicidade seria contrária à natureza e, portanto, algo absurdo de ser admitido. O esplendor das ciências, das artes liberais45 e das artes mecânicas, em suma, o grau de desenvolvimento mental de uma nação, dependeria de uma legislação que favorecesse o desejo e a liberdade de fruir.

Como já mencionado anteriormente, todas essas reflexões não eram bem vistas na cultura do país ao qual pertencia Diderot, pois apresentavam um caráter revolucionário. Sobre essa suposta civilização é necessário compreendermos esse conceito na França do século XVIII. Segundo Norbert Elias,

A estrutura social francesa tornou possível que a oposição moderada, que veio crescendo lentamente desde meados do século XVIII, se fizesse representar com certo sucesso nos círculos mais internos da corte. Seus representantes, porém, ainda não formavam um partido. [...] O conceito francês de civilisation, exatamente como o conceito alemão correspondente a kultur, emergiu nesse movimento de oposição na segunda metade do século XVIII. Seu processo de formação, função e significado foram tão diferentes dos implícitos no conceito alemão como as circunstâncias e costumes da classe média nos dois países.[...] (ELIAS, 1990, p. 53-54)

É justamente por não concordar com essa postura de civilização francesa que o escritor e suas obras eram considerados polêmicos para a sociedade francesa do

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As artes liberais eram consideradas as disciplinas próprias para a formação de um homem livre. Eram disciplinas, desligadas de toda preocupação profissional e técnica. As artes liberais se contrapõem às artes mecânicas, as quais são disciplinas relacionadas a interesses estritamente técnicos, voltados à produção de utilidades que sirvam às necessidades cotidianas do homem.

63 século XVIII, e foi isso que fez com que uma grande parte de seus textos tivesse publicação proibida. Dessa forma, o público-leitor de Diderot começa a se formar e tomar contato com toda a dimensão de suas ideias somente nas gerações seguintes.

Foi o caso da obra a ser analisada neste trabalho, Supplément au voyage de

Bougainville. O diálogo foi criado por ele em 1772, um ano depois da publicação do

relato de viagem de Bougainville, em 1771. Mas, a publicação póstuma do texto só ocorreu em 1796, após o período do terror.46

Segundo o título do texto filosófico, esse diálogo é uma análise do Voyage

autour du monde, publicado pelo almirante Bougainville, como já mencionado no

subtítulo 1.1 deste capítulo, no qual o autor relata sua viagem e a chegada ao Taiti, além do contato que teve com os taitianos, entre eles Oru. O diálogo entre o almirante e o nativo é fortemente marcado por uma visão iluminista do bon sauvage, cuja narrativa é acentuada por cores exóticas da cultura polinésia estranha à realidade europeia.

É a partir dessa distinção cultural e do tom lírico dado à realidade taitiana que se desenvolve o diálogo entre as personagens diderotianas « A » e « B ». Ao observarem a narrativa e a possibilidade de distorção das informações apresentadas por Bougainville, as personagens questionam a moral da sociedade europeia, que se sobrepõe aos instintos da natureza, vinculando tais discussões à crítica contra o absolutismo monárquico, o poder da igreja e os moldes nos quais a política ultramarina se desenvolveu.

Tais questionamentos já são apontados na epígrafe e compõem o texto filosófico.

At quanto meliora monet, pugnantiaque istis, Dives opis Natura suae, tu si modo recte Dispensare velis, ac non fugienda petendis Immiscere! Tuo vitio rerumne labores, Nil referre putas?

46

Ocorreu após a instauração da República Francesa no século XVIII. Foi marcado por um tribunal de exceção que teve à frente, nos anos mais sangrentos, a figura de Robespierre. Muitas pessoas acusadas de serem contra o pensamento republicano eram sumariamente executadas sem maiores investigações sobre o caso. Foi o período no qual a França viveu uma intensa mortalidade de seus prisioneiros. Para maiores informações em Dicionário crítico da Revolução Francesa de François Furet.

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Ah! quão melhores, quão opostos a tais princípios são os avisos da natureza, bastante rica em seu próprio fundo, se apenas quiseres bem dispensar os seus recursos e não misturar o que se deve evitar e o que se deve procurar. Crês que seja indiferente que sofras por tua culpa ou pela culpa das coisas? (Horácio, Sát., liv. I, sát. 11. v. 73 e ss.) (DIDEROT, 1972, p. 141)

No texto, fica claro o emprego dos ideais iluministas, que surgiram após o período do Renascimento, influenciados pelo mesmo. Os renascentistas, ao romperem com o modelo intelectual da Idade Média, elevam os valores materiais acima dos valores espirituais, buscam estilos artísticos da antiguidade clássica Greco-romana, que também se refletem na arquitetura e literatura da renascença.

Também não podemos esquecer do método utilizado pelo inglês Thomas Morus, em sua obra Utopia, que criou o universo imaginário da Ilha da Utopia para tecer críticas contra a Inglaterra do século XVI.

[...] a utopia aparece como um discurso sobre o passado e suas origens. O futuro do passado, como foi definida. Pois sua especificidade reside no ato que a cria _a de Utopus na Utopia (1516) de More, de Sévarius em L’histoire des Sévarambes, de Vairasse d’Alais (1702), ou de Victorin em La découverte australe [A descoberta austral], de Rétif de La Bretonne (1781) – e a instala num tempo sem história. Como signo secundário de sua perfeição, a sociedade utópica organiza as relações de seus membros conforme as regras de uma vida comunitária (...) Os jovens do Taiti do Supplement ... chegam a copular em público, vivamente estimulados em seus embates pelos espectadores. As casas da Utopia não têm nem janela nem porta para que nada se esconda aos olhares dos outros. (GOULEMOT, 2009, p. 377-378)

Os iluministas franceses, em seus pensamentos filosóficos, também buscaram referências na antiguidade clássica. Temas em torno do direito natural e civil, dos conceitos de democracia, da questão da cidadania e do republicanismo foram pautas de discussão entre esses pensadores.

Diderot, ao escrever Supplément au voyage de Bougainville, não só se aproximou de tais temáticas, mas também, metodologicamente, se aproximou da filosofia grega clássica, ao utilizar o método da maiêutica socrática47 na criação do

47 A maiêutica (em grego, “parto”) é assim denominada, pois, segundo Sócrates, enquanto sua mãe, que era parteira, fazia o parto de corpos, ele “dava à luz” ideias novas. O objetivo principal desse

65 diálogo entre duas personagens como meio de reflexão filosófica, tal como podemos lembrar da clássica alegoria do mito da caverna de Platão, assim como toda a filosofia platônica, no classicismo grego.

método é acabar com o saber meramente opinativo e, em diálogo com seu interlocutor, dar início à procura da definição do conceito, de modo que o conhecimento saísse “de dentro” de cada um. E é bom lembrar que, no final, nem sempre se chegava a uma conclusão definitiva.

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1.4 Bons pés, bons olhos e bons ouvidos : Bougainville e Diderot,