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Diderot e Bougainville: entre camponeses e marinheiros

2. O candelabro e o Sol: Diderot e Bougainville em suas leituras de mundo

2.2 Diderot e Bougainville: entre camponeses e marinheiros

Como vimos no primeiro capítulo deste trabalho, Denis Diderot foi grande representante do Século das Luzes, inserindo-se no movimento iluminista francês. Mas, antes disso, ele foi leitor de outros filósofos que iniciaram, na metade do século XVII, o que se denomina a crise da mente europeia. Antes dela, tinha-se como boa regra e objetivo da idade clássica:

Aguentar; evitar qualquer transformação que possa destruir um equilíbrio miraculoso: eis a aspiração da idade clássica. São perigosas as curiosidades que solicitam uma alma inquieta; perigosas e loucas, visto que o viajante que corre até ao fim do mundo não encontra nunca senão o que traz consigo: a sua condição humana.(...) O espírito clássico, na sua força, ama a estabilidade: quereria ser a própria estabilidade. Depois do Renascimento e da Reforma, grandes aventuras, chegou a época do recolhimento. Subtraíram-se a política, a religião, a sociedade, a arte, às discussões intermináveis, à crítica insatisfeita; o pobre navio humano encontrou o porto: oxalá pudesse aí permanecer muito tempo, ficar para sempre! A ordem reina na vida; para que tentar, fora do sistema fechado que se reconheceu como excelente, experiências que, de novo, tudo poriam em causa? Receia-se o espaço que contém as surpresas; e desejar-se-ia, se possível fosse, parar o tempo. (HAZARD,1961, p. 15)

Porém, não foi possível manter a ordem e a passividade. Os hábitos europeus começam a mudar, pelo fim do século XVII, começo do XVIII. O fato é que nesse período:

(...) o humor dos Italianos tornava-se novamente viageiro; e que os Franceses eram móveis como azougue: e, a crer um observador contemporâneo, gostavam tanto da novidade que faziam os possíveis por não conservar muito tempo um amigo; que inventavam todos dias modas diferentes; e que, aborrecendo-se no seu país, partiam, quer para a Ásia, quer para a África, a fim de mudarem de lugar e de se divertirem. (...) A Europa, com efeito, nunca mais acabava de trabalhar para descobrir e para explorar o mundo; o século XVII continuava a tarefa que o XVI lhe tinha legado. Desde 1619, um obscuro escritor, o P.e Bergeron, desde 1636 Thommaso Campanelle, professavam isto: a exploração do globo, contraditando alguns dos dados sobre que repousava a filosofia antiga, deve provocar uma nova concepção das coisas. Esta ideia, que a princípio caminhou lentamente, acelera-se à medida que os Holandeses, não apenas organizam o comércio das Índias Orientais, mas também descrevem as coisas estranhas que lá encontram; à medida que os Ingleses, não só fazem flutuar o seu pavilhão sobre todos os mares, mas

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também a mais copiosa literatura de viagens que há no mundo; à medida que Colbert propõe à actividade dos Franceses as ricas colônias e as longínquas feitorias, e que chegam descrições, "feitas à ordem do Rei"! O Rei mal sabia que destas mesmas descrições nasceriam ideias capazes de abalar as noções mais caras à sua crença e as mais necessárias à manutenção da sua autoridade. (HAZARD, 1961, p. 15-19)

Com tantas mudanças no comportamento e consciência dos europeus, a crítica à moral e a busca pela ordem natural estavam instauradas na Europa. Descartes, Espinosa e Bayle foram, sem dúvida, nomes de fundação para o Iluminismo, considerado radical, e que compunham as leituras de Diderot, fazendo com que o mesmo corroborasse com tais ideais ou fosse contra, criando outras reflexões filosóficas.

É também durante meados do século XVII que a Europa conhece uma profunda e decisiva mudança rumo à racionalização, com o surgimento do Cartesianismo. Daí para a efetivação das ideias iluministas não demorou mais de meio século.

No século XVIII, há a efervescência de diversas ideias em torno das reflexões iluministas ao redor do mundo, principalmente na França e na Philadelphia, que culminou na independência dos Estados Unidos.

Apesar da existência de várias correntes criadas a partir do Iluminismo, o objetivo deste movimento, segundo Jonathan Israel:

[...] aspirava conquistar a ignorância e a superstição, estabelecer a tolerância e revolucionar idéias, educação e atitudes por meio da Filosofia, mas de forma a preservar e salvaguardar o que se julgava serem os elementos essenciais das velhas estruturas, efetuando uma síntese viável do velho e do novo, da razão e da fé. (ISRAEL, 2009, p. 39)

Na introdução de um novo paradigma, Denis Diderot, como outros pensadores iluministas, critica o absolutismo, incumbindo à política o dever de eliminar diferenças, e o poder da Igreja como uma instituição social influenciadora da sociedade, e não apenas como campo de formação do comportamento humano.

Algumas dessas críticas já ficam sugeridas em parte do título dado à obra aqui analisada: Supplément au voyage de Bougainville, ou dialogue entre A et B

85 sur l’inconvénient d’attacher des idées morales à certaines actions physiques qui n’en comportent pas61

. O inconveniente de fixar ideias morais em certas ações humanas que não as comportam é o tema central tratado por ele em seu texto filosófico.

Diderot acreditava na razão, que tem a capacidade de duvidar das verdades estabelecidas, rompendo com o dogmatismo que o próprio filósofo tentou combater. Utilizando-se da razão, a filosofia deve analisar os fatos e deles tirar "verdadeiros" conhecimentos. Mesmo as verdades racionais da matemática, aquilo que parece o mais lógico, devem tentar entender os fatos reais e explicar as experiências humanas.

Esse procedimento pode ser observado quando, através da experiência humana vivida por Bougainville, o filósofo procurou entender e explicar a relação entre colonizados e colonizadores, através da criação do conto Supplément.

Parece ser exatamente isso que incomoda Diderot na obra do viajante Bougainville. “Ele não explica nada; atesta o fato” (DIDEROT, 1972, p. 270). E é exatamente essa a posição adotada pelo viajante ao afirmar em seu discurso preliminar, na carta ao rei: "É a história dos nossos esforços que ouso apresentar a VOSSA MAJESTADE; sua aprovação fará o seu sucesso." (BOUGAINVILLE, 1989, p.6)62. A aprovação da qual fala Bougainville é a aprovação de seu relato de viagem como verdade estabelecida.

O comentário de Diderot também nos faz pensar, na discussão desenvolvida por Walter Benjamin no ensaio O narrador. Segundo Benjamin, estamos perdendo a capacidade de contar histórias. Isso faz com que haja a classificação de bons e maus narradores. Como afirma Diderot, Bougainville parece estar inserido entre esses últimos.

Narrar para informar, ou melhor, constatar – verbo utilizado por um dos personagens de Diderot para criticar Bougainville – parece fazer parte dos maus narradores. Já a forma da boa “narrativa” existiu como um meio “artesanal” de comunicação que não resistiu às mudanças da modernidade. Na perspectiva de

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Complemento à viagem de Bougainville, ou dialogo entre A e B sobre o inconveniente de colocar ideias morais em certas ações humanas que não as comportam. (Negrito a fim de destacar o que de fato evidencia questionamentos e críticas já no próprio título do texto filosófico.).

62 “C’est l’histoire de nos efforts que j’ose présenter à VOTRE MAJESTÉ; votre approbation en fera le succès.” (BOUGAINVILLE, 1989, p. 6) (Trad. Sandra Regina Guimarães)

86 Benjamin existem incompatibilidades inconciliáveis entre a narrativa e a informação. A primeira oferece reflexão, espanto e nunca se exaure; a segunda surge de forma efêmera e somente tem validade enquanto novidade.

O autor diz ainda que o “narrador” tem como sua matéria a vida humana e estabelece com ela uma relação artesanal, incluindo a sua própria vida.

A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão – no campo, no mar e na cidade -, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. (BENJAMIN, 1987, p. 205)

Esse “narrador” sabe, por isso, dar conselhos como um sábio, podendo basear-se na experiência de toda uma vida, de uma vida de todos. Porém, sua experiência já terá marcas e impressões de sua própria vida; de sua própria história. Apesar da teoria construída por Walter Benjamin não ser contemporânea63 ao relato de viagem de Bougainville e ao conto filosófico de Diderot, podemos estabelecer relações entre suas ideias e nossos dois “narradores”, colocados aqui em questão. Segundo Benjamin:

A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. Entre estes, existem dois grupos, que se interpretam de múltiplas maneiras. A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses dois grupos. “Quem viaja tem muito que contar”, diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair de seu país e que conhece suas histórias e tradições. (Grifo meu) (BENJAMIN, 1987, p.198)

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87 Benjamin fala de dois modelos de narradores: o camponês e o marinheiro. O primeiro vive experiências e conhece as tradições da região onde vive e o marinheiro, por visitar lugares distantes, vivencia diferentes experiências. Cada um desses tipos de narradores representa um tipo de narração, sendo que o camponês representa a experiência acumulada pela memória, pelo tempo, e o marinheiro, a experiência que advém do contato com espaços diferentes.

Assim, temos, em nossa análise, Diderot na figura do camponês e Bougainville como o marinheiro. Enquanto um está em terra firme, observando tudo que se passa no local onde vive, o outro traz experiências vividas em terras distantes. A forma de narrar é bem diferente, cabendo aqui recuperar a crítica, já mencionada anteriormente, feita por Diderot a Bougainville: “Ele não explica nada; atesta o fato” (p. 270), para percebermos como a visão de camponês e marinheiro é bem diferente em relação à construção de uma narrativa de relato de viagem, principalmente porque, como aponta Roger Chartier:

A problemática do mundo como representação, moldado através das series de discursos que o apreendem e o estruturam, conduz obrigatoriamente a uma reflexão sobre o modo como uma figuração desse tipo pode ser apropriada pelos leitores dos textos (ou das imagens) que dão a ver e a pensar o real. (CHARTIER, 1999, p. 152)

Por ser uma viagem encomendada com interesses políticos e econômicos, Bougainville teria a obrigação de relatar “fielmente” tudo que se apresentasse a sua frente, por isso pouco vemos em seu texto comentários reflexivos sobre o que ele experimenta. A fidelidade também deveria ser garantida, pois, antes de sua partida, o próprio Louis XV, em 26 de outubro de 1766, assinalou algumas instruções. Foi o próprio Bougainville quem redigiu a versão definitiva apresentada na introdução do seu relato de viagem.

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