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Brasil contado em telenovelas – reconhecer e ser reconhecido

2. Contando histórias no Brasil – telenovelas

2.3. Brasil contado em telenovelas – reconhecer e ser reconhecido

Talvez a melhor forma de compreender a maneira como a telenovela contribua para que os brasileiros se reconheçam e sejam reconhecidos, pensando na tradição de narrar a história e os fatos do país em suas tramas, seja através da definição do produto enquanto gênero televisivo, apresentando características, demandas produtivas e expectativas por parte do público diferenciadas. O primeiro passo, então, deve ser o de esclarecer o que se entende aqui por gênero televisivo.

Preocupado com o papel das mídias na nova cena de mediação e reconhecimento social, Martín-Barbero (2004) aponta que

se começa a assumir a comunicação como espaço estratégico de

criação e apropriação cultural, de ativação da competência e da

experiência criativa das pessoas, e de reconhecimento das

diferenças, ou seja, do que culturalmente são e fazem os outros,

as outras classes, as outras etnias, os outros povos, as outras gerações. (p. 227)

Dentro desse espaço de criação e apropriação cultural, a televisão tem se destacado ao se apresentar como um meio de comunicação de grande alcance, que está incorporado ao cotidiano das pessoas em diferentes países, sendo, muitas vezes, a principal fonte de entretenimento e informação. Ao se lançar luz sobre os gêneros televisivos, há ainda que se considerar a maior relevância que alguns têm para a compreensão do conjunto de identidades que formam a nação – como a telenovela, no caso da América Latina.

Muitas vezes, associa-se a ideia de “fórmula” ao conceito de gênero televisivo em reconhecimento às marcas recorrentes que permeiam determinados produtos, permitindo que, dessa forma, seja possível identificá-los como um grupo e construir expectativas que norteiem tanto o processo de produção como o de recepção. No entanto, não se pode deixar que a ideia de fórmula – entendida como uma espécie de “receita” que pode ser repetida buscando-se sempre produzir determinados efeitos – engesse o conceito de gênero televisivo – este, transitório, em constante alteração, visto

que tem relação com a partilha de vínculos em um momento histórico de uma dada sociedade.

Os gêneros televisivos devem ser pensados, pois, segundo Martín-Barbero (1997), como “momentos de uma negociação, os gêneros não são abordáveis em termos de semântica ou sintaxe: exigem a construção de uma pragmática, que pode dar conta de como opera seu reconhecimento numa comunidade cultural” (p. 302). Ao que Itania Gomes (2002), concordando com o autor, reconhece que “o gênero é, igualmente, um modo de situar a audiência televisiva, em relação a um programa, em relação ao assunto nele tratado e em relação ao modo como o programa se destina ao seu público” (p. 19). É, portanto, com este raciocínio que a autora conduz ao seguinte pensamento: “colocar a atenção nos gêneros implica reconhecer que o receptor orienta sua interação com o programa e com o meio de comunicação de acordo com as expectativas geradas pelo próprio reconhecimento do gênero. Os gêneros funcionam como uma espécie de manual de uso” (p. 18).

Na América Latina, Martín-Barbero (1992) nos lembra que o gênero televisivo telenovela associa o melodrama, sendo capaz de “hacer de una narrativa arcaica – que al activar matrices culturales interpela a las grandes masas – el albergue de propuestas modernizadoras de algunas dimensiones de la vida” (p. 71). Para além do desejo de se ver retratada, bem como de estabelecer uma identidade com a qual se relacionar, as massas populares latino americanas encontram no melodrama o movimento de transformação e diversificação que a telenovela introduziu ao trazer entremeados em suas tramas novos conteúdos, temáticas e dimensões direcionados a uma nova ordem familiar, a novos ofícios e profissões, ao novo relacionamento entre classes e a novos mundos de vida – indicadores de modernização.

Sobre o modelo de fazer telenovela no Brasil, Martín-Barbero ainda coloca que o esquema melodramático incorpora um realismo que permite deixar a narrativa próxima ao cotidiano, onde

los personajes se liberan del peso del destino y abandonando su reducción a símbolos se hacen permeables a las rutinas de la vida cotidiana ganando así capacidad referencial, esto es capacidad de conectarse con las costumbres y hablas de las regiones que conforman un país. En la telenovela brasileña esa capacidad referencial a los espacios culturales del país, a los diversos momentos de su historia y su transformación industrial, es puesta en imágenes (p. 64-65).

Hamburger (2005) destaca que “embora a indústria de televisão brasileira tenha surgido sob a égide da indústria norte-americana, ela demonstrou a possibilidade de autonomia nacional”, com o surgimento de “uma indústria autônoma, alimentada por critérios de produção, gêneros e recursos locais”, salientando, até mesmo “o caráter emancipatório do folhetim eletrônico brasileiro” (p. 23).

Um dos fatores que ajudam a compreender a função de mediação cultural da telenovela é o conjunto de profissionais que atuam na produção e na criação desse gênero televisivo. Os profissionais que atuaram no início da empreitada aprenderam como conduzir a teledramaturgia voltada para as especificidades de seu público. Dentre os profissionais, é válido ressaltar o trabalho dos autores roteiristas, aqueles a quem se credita a história – não é à toa que, nas chamadas, antes da estreia de uma telenovela, o locutor insista em anunciar que ela é “escrita por tal autor”. Essa informação inicial cria certas expectativas em relação ao que se pode esperar da novela, como, por exemplo, se terá conteúdo político (como costumam ser os trabalhos de Dias Gomes), se será uma trama urbana com enfoque nas questões femininas (como os trabalhos de Manoel Carlos), ou se a trama se passa no meio empresarial (caso dos trabalhos de Gilberto Braga).

Cabe aqui trazer a ideia de estilo para caracterizar melhor o trabalho desenvolvido pelos autores roteiristas, uma vez que, imersos no campo da telenovela, eles precisam operar certas escolhas – a partir do habitus internalizado – que os permitam desenvolver certas características em seus trabalhos que possibilitem o seu reconhecimento diante de um contexto de produção industrial de telenovelas. Destarte, “tomada de empréstimo à teoria da arte e aplicada ao conjunto de uma cultura, a noção de estilo designa, então, um valor dominante e um princípio de unidade, um ‘traço familiar’, característico de uma comunidade no conjunto de suas manifestações simbólicas” (Compagnon, 2001, p. 172).

A partir do século XVIII, estilo passa a ser associado a uma escala de valores e prescrição, ou seja, passa a ser encarado como um conjunto de índices que permitem determinar quem fez, onde e quando, atrelado a um preço de mercado. A partir daí, busca-se assemelhar os temas e os modos de se referir a eles – inovar dentro do conhecido – como uma estratégia para agradar o público e os anunciantes quando se apresenta um novo produto.

E, por estar tão emaranhado com a instância receptora, com o que agrada em um dado momento histórico, o estilo altera de tempos em tempos. É interessante perceber,

por exemplo, que, da mesma forma que ocorreram mudanças na maneira de representar as relações amorosas, o papel da mulher e a estrutura familiar, o mesmo aconteceu com os valores e a forma como esse confronto entre lados opostos é apresentado na televisão. Possivelmente, o mais marcante seja como a linha que separa a caracterização do Bem e do Mal se tornou cada vez mais tênue pela maior complexidade da construção das personagens, agora mais ambíguas, – o que foi possível com o aumento da relevância do figurino, maquiagem, cenografia, trilha sonora, a composição do ator e outros fatores25 – e o aumento de tramas.

Na prática, isso quer dizer que um autor roteirista de telenovelas como Aguinaldo Silva precisa adequar-se de alguma forma à demanda por novidade sem, no entanto, deixar de lado os traços que permitem reconhecer a sua obra e associá-la a sua trajetória dentro do campo da telenovela.

25 Talvez o melhor exemplo dos últimos anos tenha sido em A Favorita (2008-2009), quando o público

foi levado a crer que Flora, interpretada por Patrícia Pillar, era a vítima da história e Donatela, interpretada por Cláudia Raia, era a vilã. Durante todo o primeiro ato da novela, o público, acostumado a ver Patrícia como mocinha, foi levado a pensar que Cláudia (com uma personagem mais rústica e exagerada) era a vilã. Todos se surpreenderam com a virada no segundo ato, quando foi revelado que Flora era a assassina. Somente a partir do terceiro ato Donatela conseguiu angariar aliados e se dirigir ao seu final feliz ao lado do homem que amava e dos filhos.

3. O SENHOR E A SENHORA DO DESTINO – AUTOR E OBRA

A partir do momento em que as redes de televisão tomam para si a responsabilidade pela produção das telenovelas, antes em poder dos anunciantes e das agências de publicidade, elas passam a serem detentoras dos direitos de suas produções, podendo determinar as cotas de venda de espaço de propaganda e adquirindo, consequentemente, maior autonomia para determinar o que é exibido. As redes de televisão passam, então, a gerenciar um conjunto de profissionais de diferentes áreas artísticas que passam a lhe conferir determinado status de consagração a partir da própria consagração conquistada por eles dentro do campo da telenovela.

Portanto, dentro dessa lógica, não há dúvidas de que pensar sobre os autores roteiristas de telenovelas produzidas pela Rede Globo de Televisão implica levar em consideração a posição dela na lógica de disputas, restrições e consagração diferenciada em relação aos seus concorrentes no espaço social de produção de programas televisivos. Graças aos investimentos feitos pela emissora desde o início de suas operações – tanto para a teledramaturgia quanto para o telejornalismo – que acabaram colocando-a no posto de líder de redes de televisão abertas no país. Ao fazê-lo, a Rede Globo foi capaz de gerar uma possibilidade de escolhas, na criação e produção de seus programas. Manteve-se, por exemplo, sempre preocupada com a qualidade artística da obra, associada à preocupação com a audiência e seus anunciantes, equilibrando os momentos de ousadia (estética, temática, de formato etc.) com as ações que garantem bons resultados econômicos.

E é dentro desse contexto produtivo que autores roteiristas como Aguinaldo Silva procuram, em um primeiro momento, se inserir para, em seguida, buscar se manter nele com alguma liberdade criativa para, enquanto atrai o público e alcança a meta almejada de audiência, narrar histórias. Senhora do Destino e Nazaré representam apenas um momento da trajetória do autor roteirista que segue recorrendo a determinadas estratégias (vingança por parte dos mocinhos, loucura dos vilões, revelação de identidade, ironia, corrupção política, limitação de um espaço para que as ações ocorram etc.) em seus trabalhos – sejam eles ambientados em cidades do interior ou em grandes centros urbanos.