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Pitadas de outros gêneros – em especial, a comédia

2. Contando histórias no Brasil – telenovelas

2.1. Melodias e drama nas telenovelas

2.1.1. Pitadas de outros gêneros – em especial, a comédia

Se a telenovela for vista enquanto territórios de ficcionalidade21, como elemento de mediação entre produtores e cotidiano dos receptores – possibilitando reconhecer histórias, textos, mensagens e sinais –, percebe-se que, desde a década de 1970, há um “entrelaçamento das fronteiras entre os territórios de ficcionalidade” (Borelli, 2000, p. 6) no Brasil, proporcionando a reciclagem dos gêneros ficcionais. Dessa forma, a matriz do melodrama se vê mesclada a outras, como o fantástico e o erotismo, havendo ainda a possibilidade de mesclas em que “personagens do mocinho, do típico cowboy, da vamp erótica, do bufão e da fada bondosa possam compor uma mesma narrativa de características também melodramáticas” (p. 6). Para a autora,

as matrizes dos territórios de ficcionalidade diversificam-se porque transformam-se, com o processo de modernização, as referências simbólicas que conformam o imaginário coletivo; mas modificam-se, ainda, em função dos apelos de um mercado

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Este trabalho usa “territórios de ficcionalidade” como sinônimo de gêneros ficcionais, sendo fundamentais no processo de produção e formatação de padrões nas variadas indústrias culturais.

de bens simbólicos, que se amplia com a consolidação das indústrias culturais no Brasil dos anos 70 (p. 6).

Isso claramente se dá com a comédia, que tem seus traços incorporados ao padrão tradicional do melodrama, misturando humor, sátira e farsa aos enredos sobre amor e ódio, justiça e injustiça, ricos e pobres. O crescimento da comédia deu novo fôlego ao melodrama, permitiu a popularização de conflitos e da contextualização das ações. Sobre a comédia, Frye (1973) trata do cômico como a “integração da sociedade: toma usualmente a forma da incorporação, nela, de uma personagem fundamental” (p. 49) – são histórias relacionadas à aceitação e adequação. Ainda que suas ações tenham sido honestas ou vis, tolas ou sensatas, o herói cômico triunfa, angariando a simpatia do público com a sua zombaria. Ele aponta ainda a identificação entre o “arquétipo de Cinderela” e os desejos do público que enseja a incorporação “numa sociedade a que ambos aspiram, numa sociedade acompanhada por um rugitar feliz de vestidos de noiva e notas de dinheiro” (p. 50).

Mendes (2008) destaca também a perpetuação da fórmula “de embate entre a autoridade moral e poder financeiro do pai (ou de variantes da figura paterna) contra os impulsos românticos do filho (ou de jovens em geral)” (p. 191). A autora aponta que a telenovela brasileira não deixa de lado a luta entre as paixões amorosas e a figura da autoridade paterna e as desigualdades sociais – seja na trama principal ou em um dos núcleos secundários. Aguinaldo Silva é um dos autores que não abrem mão desse recurso, encaixando em suas histórias tramas amorosas que enfrentam dificuldades com desfecho positivo, como a de Júlia (Débora Falabella), que vai morar na Favela da Portelinha com Evilásio (Lázaro Ramos) e o filho ao ser expulsa da casa do pai em

Duas Caras, ou como Duda (Débora Fallabella), que frustra os planos dos pais de um

futuro promissor ao lado de um deputado estadual para se casar com o suburbano Viriato (Marcello Antony) em Senhora do Destino.

Talvez a associação mais rápida ao gênero da comédia seja a ideia de final feliz a que o público se acostumou. No entanto, a culminância em um final feliz ao término da história não implica necessariamente se tratar de uma comédia. Estruturalmente, ao contrário da tragédia, que apresenta uma situação irreconciliável para seus personagens, a comédia é marcada pelas saídas que encontra para superar uma situação irreconciliável, procurando fazer com que a vida prossiga – é a reviravolta que surge quando se cria a expectativa de um final trágico. De alguma forma, “haveria, na tradição cômica, a inversão sistemática de “situações arquetípicas angustiantes”, transformadas

em fantasias de triunfo” (p. 138). Finalizar com a situação em que as personagens parecem ter encontrado a felicidade eterna implica finalizar a história com a esperança de que os conflitos tenham sido resolvidos de uma vez e é preciso que a narrativa seja encerrada nesse ponto, pois, caso contrário, a fragilidade do equilíbrio feliz seria exposta, desfazendo a impressão de solução para uma vida nova sem obstáculos.

A comédia joga com palavras e ideias para brincar com as alterações dos tabus sociais ao longo da história, colocando e retirando da pauta determinados temas, lidando com a atração e a repulsa que provocam. É imprescindível que o público escolha um lado, tome um partido, para compartilhar o efeito cômico. Aliás, para os diferentes tipos de humor – a sátira, a farsa e a ironia –, ao abordar os modos de viver em sociedade, o que conta primeiramente é o pacto entre comediante e público, além de

uma certa conformação inventiva, da capacidade artística de usar o humor e a ironia, o absurdo e o grotesco para sublinhar, naquilo que é diferente em cada tempo e lugar, um certo padrão de comportamentos que o espectador julgue dignos de censura num vicioso repertório: o político corrupto, o marido enganado, o “douto” ignorante, o fanfarrão pedante e outros (p. 190).

Não é que a ação cômica retrate apenas os comportamentos ou posições de poder eticamente inferiores, mas, sim, uma questão de privilegiar a falta de estabilidade do mundo que deixa entrever a tudo e a todos sem as máscaras sociais, expostos como de fato são. É dessa forma que a comicidade pode ser vista “como uma força que ‘puxa para baixo’, que instala a crise, que divide, faz rachar, estalar a superfície de toda imagem solene, fechada em sua gravidade, polida, monolítica” (p. 86).

Mendes (2008) destaca quatro tipos éticos de personagens cômicas, tendo em vista os vícios, seja por falta ou excesso: o impostor/fanfarrão (alazón), marcadamente confiante e otimista em demasia, antes de tudo um impostor para si mesmo; o ironista/auto-depreciador (eíron), que, desconfiado de tudo, faz críticas a todos, especialmente a si mesmo; o bufão (bomolóchos), exageradamente espirituoso; e o camponês/rústico/parvo (ágroikos), o tolo simpático através do qual o espectador ri (p. 154).

Na prática, a interação entre esses tipos gera uma dinâmica tal em que variantes do impostor são geralmente o pai autoritário, o sábio pedante, a megera e a mulher-fatal – ou seja, personagens com finalidade obstrutora; o ironista toma a forma do herói/da heroína inocente falsamente caluniado, quando há autocensura; o bufão, também chamado de bobo, para quem é permitido transgredir regras em um misto de loucura e

malandragem; o parvo, alvo fácil de deboche em sua inocência. Fato é que uma boa história precisa mesclar doses, em uma mesma personagem ou em uma oposição de personagens, desses contrastes clássicos.

Ainda sobre os bobos – ou bufão –, eles geralmente são vinculados ao herói, visto que “são dinâmicos do ponto de vista da linguagem, pois fazem intervenções pitorescas, e são igualmente ativos do ponto de vista comportamental, uma vez que interferem no desenrolar dos fatos” (Huppes, 2000, p. 85). Ao bobo cabe desempenhar os papeis de “produzir situações cômicas com o fito de atenuar a tensão exagerada, de aliviar o tom grave da história” (p. 88) e de dar “um toque de realismo que aumenta a verossimilhança da história, ao mostrar que o mundo não é feito apenas de suspiros, de vênias e de gestos sublimes ou criminosos” (p. 88-89) – ele se aproxima das pessoas reais ao ostentar sua fragilidade ao invés de coragem invencível ou amor sem limites.

Outro ponto que pode ser desenvolvido a partir da comédia é a ironia, figura da retórica com que se diz exatamente o contrário do que as palavras significam. Ela pede o conhecimento prévio compartilhado tanto de quem fala como de quem a ouve para que a reação desejada seja alcançada. Comumente, é usada como um recurso que visa denunciar, criticar ou censurar algo, sendo que, àquele com quem se fala, é solicitada a tomada de uma atitude ativa em que se propõe uma reflexão sobre a qual se deve escolher uma determinada posição.

Ela surge como um efeito da conivência coletiva nas situações em que os fins não estão dados, enquanto o sentido do acontecimento se esvai, admitindo um sentido contrário àquele que estava previsto. Ela não é mais, portanto, um assunto exclusivo da linguagem, ela não mais deriva de uma posição adotada, mas manifesta-se por si mesma impondo-se à coletividade. [...] Ela se impõe como o momento de uma liberdade radical a respeito de nossas representações da realidade (Jeudy, 1998, p. 53).

Muitas vezes confundida com o simples humor, a ironia distancia quem fala do que é comentado, como se a pessoa se colocasse na posição de observador perspicaz, sem, no entanto, estar provida se “intenções reformadoras” (Mendes, 2008, p. 197) – como se dá com a sátira, com seu objetivo de provocar mudança. Ironia e humor se distanciam ainda visto que a primeira surge do orgulho e do ódio, enquanto o segundo surge do amor e da cumplicidade com as fraquezas humanas (p. 195).

Do ponto de vista da economia do roteiro, a ironia diz respeito à quantidade de informação que são disponibilizadas para personagens e espectadores, onde “um ou

mais personagens percebem apenas o significado aparente de um incidente e o espectador percebe tanto o significado aparente quanto o real” (Campos, 2007, p. 244). A diversão experimentada pelo espectador deriva, nesse caso, a partir da expectativa ao acompanhar como a personagem reage ao descobrir o que desconhece.

Aguinaldo Silva é um autor roteirista que usa a ironia como uma característica de grande destaque para suas vilãs: elas podem matar, mentir e procurar sempre ter vantagem, mas o público ri de suas maldades porque, muitas vezes com um sorriso nos lábios, elas têm sempre um comentário irônico. Um único objetivo as move, o desejo de ter mais poder que os demais, e, enquanto procuram alcançá-lo, elas distribuem comentários maldosos contra as demais personagens. À ironia soma-se um tom de loucura, pois essas mulheres não só fazem o que é considerado socialmente inaceitável, como dizem tudo o que pensam, independente do que rege a conduta social do politicamente correto.