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6. OS LAÇOS BRASILEIROS E HAITIANOS

6.1 O Brasil nos governos petista

Para entender um pouco o papel do Brasil na migração haitiana, é necessário voltar brevemente na história, no que compete às questões econômicas e da geopolítica internacional, no período dos governos dos presidentes de Luiz Inácio “Lula” da Silva e Dilma Rousseff. Nesta seção, são apresentados dados econômicos e sociais brasileiros e será discutida, de forma inicial, a projeção da geopolítica internacional brasileira deste período.

O Brasil, que construiu ao longo do século XX uma autoimagem de país da imigração, vivência, nesse início do século XXI, um duplo movimento: desde os anos 1980, há um significativo movimento de brasileiros para o exterior e, por outro lado, um novo fluxo de coreanos, bolivianos e outros latino-americanos e caribenhos para o Brasil. Tais fluxos se intensificaram a partir da expansão econômica observada no país, e na ideia, propagada internacionalmente, de que o Brasil passa por um ciclo de desenvolvimento econômico e social inclusivo. Aqueles que migram dentro deste contexto são os novos migrantes internacionais do e para o Brasil. (ASSIS e SASAKI, 2001)

A partir de 2005, houve um crescimento exponencial da economia brasileira, como mostra o gráfico abaixo do Produto Interno Brasileiro – PIB de 1970 a 2014, com dados do Banco Mundial.

Gráfico 4: Brasil: Crescimento da economia entre 1970 e 2014.

Fonte: Banco Mundial, 2017 (extraído do Public Data – Google. Disponível em: < https://www.google.com.br/publicdata/explore?ds=d5bncppjof8f9_&met_y=ny_gdp_mktp_cd&idim=country:B RA:MEX:IND&hl=pt&dl=pt>. Acessado em: 03/02/2017).

O ano de 2011 tem o maior registro do Produto Interno Bruto do Brasil em toda a série histórica, coincidentemente foi o ano em que se inicia o processo migratório haitiano para o Brasil com aumento nos anos subsequentes.

Entre 2014 e 2015, o Brasil estava ocupando, respectivamente, a sétima e a nona posição de maior economia mundial, segundo a lista da Organização das Nações Unidas e do Banco Mundial e, com isso, mantinha projeção e visualização internacional. Entre 2011 e 2013, podia considerar-se um país com “pleno emprego”, segundo o IBGE. Neste período,

o Brasil possuía uma taxa de desemprego de 5% a 6%. Ao final de 2014, foi registrada a menor taxa de desemprego de toda a série histórica até então, correspondendo a 4,7% da População Economicamente Ativa – PEA.

Segundo Patarra (2012, p. 7):

O crescimento e a estabilidade econômica do Brasil têm atraído imigrantes de todo o mundo. Em 2011, o Ministério da Justiça registrou 1,466 milhão de estrangeiros regulares vivendo no país. Em 2010, eram 961 mil. Esse contexto demanda que órgãos governamentais e entidades que lidam com o tema trabalhem na elaboração e implementação de ações visando à proteção dos direitos fundamentais aos migrantes, com vista à integração social.

Segundo as entrevistas realizadas para este trabalho, quando indagados sobre os motivos pelos quais os haitianos escolhem o Brasil para se estabelecer, existe um consenso em relação à visita do presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva ao Haiti, logo após o terremoto, no dia 26 de fevereiro de 2010. Lula permaneceu no país por aproximadamente seis horas e proferiu um discurso oferecendo apoio ao Haiti, defendendo a anistia da dívida externa do país caribenho, que, segundo ele, era de 1,3 bilhão de dólares ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e ao Banco Mundial (BM) e, principalmente, oferecendo acolhimento aos que quisessem ir ao Brasil fixar moradia. Essa notícia correu o país e o Brasil começou a ser visto como uma nova possibilidade migratória. A seguir, trechos das entrevistas que expressam este argumento.

O presidente Lula foi também, não sei. Mas você pode ir e ver e essas viagens, o que elas influenciaram na chegada dos haitianos aqui. E a presença do exército brasileiro no país, o que isso tem a ver com a chegada dos haitianos no Brasil. Essa política, porque agora o Brasil está ocupando um lugar na ONU [...] (S.)

As declarações de Lula foram enfáticas nesta visita, prestando solidariedade aos afetados pelo terremoto, às vidas perdidas e a todos os habitantes de lá, demonstrando preocupação com a intervenção internacional de ajuda humanitária com a frágil democracia haitiana. Ele pronunciou as seguintes palavras:

O governo brasileiro estará disposto a fazer tudo o que tiver ao nosso alcance e o mais importante: fazer junto com o governo do Haiti [...] O Brasil já tem feito uma política de solidariedade muito forte [...] Depois de ver com os meus próprios olhos o que está acontecendo no Haiti... Nós iremos fazer muito mais do que vínhamos fazendo até agora [...] Esse país tem um governo legitimamente eleito pelo voto popular e tudo será feito pelo governo.(O Globo, 2017)11

Durante esta visita, foram assinados acordos complementares nas áreas de segurança alimentar, com compra de alimentos de produção haitiana e não mais envio de alimentos do exterior, formação profissional, monitoramento de programas sociais e de construção de cisternas para captação de água de chuva. Lula autorizou, por meio de medida provisória, o envio de R$ 375 milhões para reconstrução do Haiti, na época.

A visita da presidente Dilma Rousseff ao país também foi apontada como motivo de visibilidade brasileira no Haiti.

Para além das oportunidades que o Brasil exerceu, fronteiras abertas que depois de 2010 e 2011, que as pessoas estavam vindo para cá bem timidamente, a partir de 2012, depois que a presidente Dilma foi lá e falou que as portas do Brasil são abertos, são abertas para os haitianos, então, o Brasil virou uma oportunidade para os haitianos. Então, os haitianos viram no Brasil uma possibilidade de uma vida melhor. Eu acho que é isso. (M.)

A visita ocorreu no primeiro dia de janeiro de 2012, quando visitou as tropas brasileiras da MINUSTAH e representantes das organizações não governamentais (ONGs) brasileiras que estão em solo haitiano. Em seu discurso, Dilma reiterou a cooperação com o Haiti e anunciou a redução do contingente brasileiro na força de paz da ONU (diminuindo o contingente para 1.900 homens, voltando ao índice anterior ao terremoto), a cooperação com a Polícia Nacional para treinamentos e a cooperação no âmbito do sistema de saúde (Brasil e Cuba enviaram médicos) para a criação de um sistema comunitário de atendimento, combate à cólera e a vacinação. Na ocasião, listou os projetos em que o Brasil estava envolvido para a reconstrução de infraestrutura, como rodovias, estradas e na

11 Extraído de <http://oglobo.globo.com/mundo/lula-visita-haiti-diz-que-situacao-pior-do-que imaginava-

produção de energia, além das áreas de agricultura, que incentiva a produção agrícola local com a compra de alimentos para distribuição, justiça, educação, segurança e esporte. Citou também um fórum criado de investidores do setor privado brasileiro que investissem no país. No que compete à moradia, prontificou-se a criar um programa que ajudasse na reconstrução das casas para que os haitianos não mais precisarem viver em tendas.

O tema migração foi uma das pautas principais em seu discurso. No princípio, reiterou que o Brasil está comprometido a ajudar na reconstrução do país para que os habitantes fiquem e tenham uma boa qualidade de vida. Nas palavras da ex-presidente eleita:

Como é da natureza dos brasileiros, estamos abertos a receber os cidadãos haitianos que optem por buscar oportunidades no Brasil [...]. Neste processo, devemos combater as redes criminosas de intermediários, os chamados coiotes que se aproveitam das vulnerabilidades dos trabalhadores e suas famílias [...]. Reafirmo nossa dupla proposta das novas medidas de visto adotadas pelo Brasil, garantir o acesso ao nosso país em condições segurança e dignidade dos haitianos que lá escolham viver. [...] Concordamos em trabalhar juntos, governos do Brasil e Haiti, para dar divulgação às novas medidas brasileiras. Por meio delas, o governo brasileiro, sensível às dificuldades sociais, econômicas e humanitárias enfrentadas pelo Haiti, criou a categoria adicional de visto permanente, exclusiva para haitianos, cuja concepção não fica subordinada à condição de vínculo empregatício no Brasil e isso por um prazo de cinco anos. Poderemos receber, nessa categoria, até 1.200 famílias haitianas, do mesmo modo, legalizaremos as que já estão vivendo no Brasil. (DILMA ROUSSEFF, 2012. Transcrito pelo autor)

De acordo com estudantes entrevistadas, quando indagadas pelos motivos pelos quais os haitianos estão vindo em maior número para o Brasil e fazendo pactos institucionais, como a criação do Programa educacional Pró-Haiti, as estudantes responderam:

Como eu posso explicar isso? Nós, haitianos, quando eu cheguei em 2011, não tinham muitos haitianos, foi em 2012, 2013 que começaram a chegar muitos. Pelo que eu to ouvindo foi um acordo pelo ex-presidente, não foi o Lula, a Dilma, que foi lá falar com o ex presidente do Haiti dizendo que tem bastante trabalho que o Brasil está de portas abertas para os haitianos e foi de repente que surgiu muitos vistos também, e vem pra cá. (N.)

As pessoas estão procurando uma boa qualidade de vida, um trabalho. Nestes últimos tempos que os haitianos estão chegando no Brasil, e a direção deles sempre foram os EUA, Canadá e também algumas ilhas do Caribe que vão muitos haitianos, e também na França. São essas destinações, destinos, que eles pegavam antes. Aí nesses últimos tempos, acho que eu não sei muito bem, você pode pesquisar, a

presidente Dilma foi para o Haiti depois do terremoto e eu já estava aqui, com essas viagens pode perceber o que foi dito, e também por causa da Copa do Mundo. Tudo isso pode ter a ver com essa chegada em massa da migração. (M.)

Pode-se identificar que a realização da Copa do Mundo de 2014 no Brasil e as Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016, deram espaço para o Brasil ser mostrado internacionalmente, fazendo com que contribuísse para a construção do imaginário do Brasil no Haiti e o consequente fluxo migratório. Sabe-se que a mão de obra haitiana foi utilizada para a construção da vila olímpica no Rio de Janeiro e dos novos estádios e arenas espalhados pelo Brasil (a construção civil é uma das maiores empregadoras de mão de obra haitiana, seguido pela cadeia produtiva do agronegócio).

De acordo com as entrevistas realizadas, a percepção no imaginário dos estudantes haitianos do Brasil perpassa as novelas, a Copa do Mundo, as Olimpíadas e o samba. Foi possível identificar que o referencial brasileiro lá, para além do que já foi mencionado, é o futebol. O esporte faz parte da cultura haitiana e a seleção brasileira é um dos times para o qual eles torcem. O documentário de 2005, “O Dia que o Brasil esteve aqui”, de Caíto Ortiz e João Dornelas, retrata muito bem a paixão do(a) haitiano(a) pelo futebol e pela seleção brasileira de futebol. O documentário exibe o dia em que o Brasil foi jogar no Haiti pelo “Jogo da Paz” promovido pelo então presidente da república, Luis Inácio Lula da Silva, e pela Confederação Brasileira de Futebol – CBF. O jogo foi realizado em 18 de agosto de 2004. Tinha como principal intuito promover o desarmamento no país, distribuir medicamentos e, principalmente, construir a imagem do Brasil e suas tropas como simpáticas e amigáveis, porém, revelou também o frenesi do povo em assistir à partida e poder ver os jogadores brasileiros ao vivo, deixando nítida a paixão pelo futebol.

Abaixo, relatos das entrevistas com os estudantes haitianos.

Foi com o futebol, porque no meu país tem a seleção brasileira, a seleção argentina, que são duas seleções que é tem a maioria dos torcedores do meu país. O primeiro contato foi no futebol e o segundo foi com as novelas. (S.)

[...] porque lá no Haiti o Brasil é muito presente... futebol! (J.)

Antes de vir pra cá? Eu não sabia nada do Brasil. Eu só conhecia o Brasil pelo futebol. (N.)

Outro ponto de convergência histórica entre Brasil e Haiti é que ambos os países foram colônias de exploração, tiveram um longo período de exploração de mão de obra escrava e tráfico de pessoas. A matriz africana negra está fortemente presente na cultura brasileira e haitiana. Para o ex-ministro Antônio Patriota, pode-se fazer um paralelo do candomblé com o vodu (religião oficial do Haiti). Daí o reconhecimento destes dois povos e, por consequência, a migração. Para Marandola e Gallo (2008, p.5):

A fixação do migrante no local de destino tem algumas restrições ou condições em termos de identificação sociocultural e espacial. O envolvimento de um indivíduo com o lugar é um processo complexo que não ocorre aleatoriamente. Alguns fatores encorajam/ incentivam esse envolvimento, enquanto outros repelem qualquer tentativa ou interesse em fazê-lo.

Entre os fatores de encorajamento, a identificação com o lugar é crucial. O estabelecimento de laços e a sensação de pertencimento ocorrem em um lugar cujas características sociais, culturais e a organização espacial não sejam de todo desconhecidas. É o chamado place attachment (envolvimento com o lugar), que é um dos aspectos dos efeitos de lugar, ou senso de lugar.

A partir do segundo semestre de 2014, o cenário econômico brasileiro e mundial mudou. Assim como a economia, a imigração haitiana acompanhou o recuo. Em 2015, o IBGE registrou uma queda de 3,8% em relação ao ano anterior e, em 2016, a queda foi de 3,6%. Somados estes dois últimos anos, a queda foi de 7,2%, retomando o patamar econômico de 2010. Aglutinadas as quedas consecutivas, pode-se afirmar que foi a maior recessão econômica do Brasil desde 1948, quando o IBGE iniciou a série histórica com a atual metodologia12. Foi a primeira vez, em 70 anos, que tivemos dois saldos negativos

anuais segundo Rebeca de La Rocque Palis, coordenadora de Contas Nacionais do IBGE. Todos os setores da economia foram afetados com o PIB de 2016, como a indústria (-3,8%), agropecuária (-6,6%), serviços (-2,7%) e investimentos – como a Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), com queda de 10,2%. Somado à queda econômica, o preço do dólar aumentou substancialmente. Isso para os haitianos é de extrema importância, pois a grande maioria envia remessas em dólares para o Haiti.

12 Fonte: IBGE, 2015 – Rebeca de La Roque Palis. Disponível em: < http://g1.globo.com/jornal-

O jornal Folha de São Paulo fez uma reportagem documental, publicada em 8 de maio de 201613 , em que identificou a evasão de imigrantes haitianos, dominicanos,

bolivianos e senegaleses do Brasil para o Chile devido à crise econômica e política que se estabeleceu após segundo semestre de 2014, no Brasil. As principais causas apontadas são os preços dos produtos e aluguéis, causados pela inflação e aumento dos impostos, e o aumento do dólar, que dificulta o envio de dinheiro para suas famílias nos países de origem. Vale ressaltar que a relação migração/economia não é a causa única para o processo migratório, porém é importante para o entendimento dos fluxos de atração e expulsão dos territórios.