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O BRASIL DE PORTINARI: A TERRA E O HOMEM

Portinari, em missiva para o escritor Mário de Andrade, rememorou a sua vida de pintor:

Creio ter pintado fotograficamente o mundo que me rodeia – gente pobre com olhos doentes com a cara estragada com o corpo deformado – essa gente se divertindo – se casando tendo filhos e morrendo. Algumas dessas pessoas também com alguma saúde – Contrastando fiz gente bonita com pele tratada e bem maquiada com produtos da Rubinstein. Crianças ricas e crianças pobres velhos ricos e velhos pobres.Fiz tudo isso também com algum comentário.

Procurei fazer tudo que via desde menino. Tomei partido em tudo que fiz não na maneira mexicana mas na minha maneira de Brodowski [...]. Acho que em Arte ou política o que vale é a ação e não as simpatias de grupo. Sei que não gozo de muita simpatia em certos grupos que deviam ter simpatia. Desde 1939 começaram a fazer um retrato meu bastante falso – dizendo que fiquei rico que fiquei besta que só recebo pessoas que me convém que vivo favorecido pelos meios oficiais e isso tudo é bem mentira1.

Essa carta mostra a dimensão da brasilidade na obra portinariana e a posição defensiva do pintor em face das polêmicas que se criaram em torno das “encomendas oficiais” (leia-se dos painéis e murais do Ministério da Educação) e da homenagem da “Revista Acadêmica”, bem como o identificavam como caudatário dos muralistas mexicanos, especialmente de Diego Rivera.

Portinari foi um dos pintores brasileiros que melhor soube captar a essência da terra e do homem brasileiros, precedido somente pelo pintor ituano José Ferraz de Almeida Júnior (1850-1899), que pintou o homem brasileiro personificado nocaipira, com destaque para “O Derrubador” (1871), “Caipira picando fumo” (1893) e “O Violeiro” (1899). A

análise que Gilda de Mello e Souza empreendeu sobre os precursores da pintura brasileira contemporânea constatou que:

Coube a Almeida Júnior surpreender a verdade profunda de uma nova personagem; não apenas a aparência externa, os traços do rosto ou a maneira peculiar de se vestir, mas a dinâmica dos gestos – aquilo, que Marcel Mauss descreveu com tanta perspicácia num ensaio célebre, designando como as técnicas do corpo. Essa acuidade de observação já reponta numa tela de mocidade como O Derrubador. Pintada em Paris em 1871, trai, na presença do rochedo a concepção grandiosa do Realismo; mas nos demais elementos, nos coqueiros, na natureza tropical do pequeno trecho de paisagem, nas feições mestiças da figura, exprime a nostalgia da pátria distante. É nosso, sobretudo, o jeito do homem se apoiar no instrumento, sentar-se, segurar o cigarro entre os dedos, manifestar no corpo largado a impressão de força cansada, a que Cândido Portinari parece não ter sido insensível. Nas telas posteriores, principalmente as pintadas a partir de 1890, Almeida Júnior aprofunda a análise do comportamento corporal do homem do campo. Apreende a sua maneira canhestra de caminhar, sem nobreza, mantendo os joelhos meio dobrados enquanto apóia os pés no chão. Fixa-o em várias posições e nas diversas tarefas diárias, amolando o machado, arreiando o cavalo, empunhando a espingarda, picando fumo; ou nas horas de folga ponteando a viola. Surpreende-o na caça, acocorado e à espreita ou olhando de banda e esgueirando-se cautelosamente entre os arbustos, enquanto com a mão livre pede cautela ao companheiro2.

Mário de Andrade aponta Tarsila do Amaral como “a primeira que conseguiu realizar obra de realidade nacional”. O autor de Macunaíma prossegue com sua análise:

O que a distingue dum Almeida Júnior por exemplo, é que não é a inspiração dos seus quadros que versa temas nacionais [...]. Em Tarsila, como aliás em toda a pintura de verdade, o assunto é apenas mais uma circunstância de encantação; o que faz mesmo aquela brasileirice imanente dos quadros dela é a própria realidade plástica: um certo e muito bem aproveitado caipirismo de formas e de cor, uma sistematização inteligente do mau gosto que é dum bom gosto

excepcional, uma sentimentalidade intimista, meio pequenta, cheia de moleza e de sabor forte3.

Em outra ocasião, Mário de Andrade insiste na questão entre “nacionalizar a pintura e pintar o nacional”, em que afirma que Tarsila equaciona essa questão:

Até então os pintores que pretendiam abrasileirar a sua pintura, mesmo Almeida Júnior, confundiam pintura com assunto, e se preocupavam exclusivamente com o pintoresco do país, com nossos usos e costumes e com a reprodução, na tela, na cor e do caráter da paisagem. Tarsila ajuntou a esse pintoresco assunto, uma verticalidade nova que consistia em buscar, dentro do fenômeno humano do país as suas tradições profundas de cores e de formas, especialmente circunscritas até então nas obras do povo e nas manifestações objetivas da nossa religiosidade4.

Apesar do entusiasmo de Mário de Andrade com a pintura da fase “Pau-Brasil”, de Tarsila do Amaral com “bananas, laranjas, abacaxis polpudos feito fruta do norte, apanhados na hora, no pomar ... da imaginação, não dão vontade da gente come-los mas dinamizam molemente a companhia. Tem sol lá fora. Tem cheiro forte de terra e de flor”5,

coube à geração modernista a procura por temas nacionais e também por soluções estéticas para a nacionalização da pintura, a que Portinari não ficou alheio.

A terra e o homem brasileiros são recorrentes na obra portinariana, seja com a numerosa retratística, na qual pintou escritores, poetas, artistas, músicos, políticos, socialites e burocratas, alguns “com um leve ar de Modigliani, com pescoços compridos”, como sugere o crítico de arte Flávio de Aquino6, seja com a série “Retirantes”, composta

de três painéis pintados a óleo sobre tela, “Retirantes”, “Enterro na Rede” e “Criança Morta” (vide gravuras n.º 27, 28 e 29), em que a questão social é retomada com vigor, e os críticos o comparam com “Guernica” (1937)7, de Pablo Picasso. Entretanto, esta questão social pode ser considerada como fruto da sua vivência em Brodósqui, cidade que recebia levas de migrantes nordestinos em busca de trabalho na lavoura, com as representações sobre os tipos regionais, o gaúcho, o jangadeiro e o sertanejo pintados para o Pavilhão do Brasil na Feira Mundial de 1939, em New York, com as telas “Morro” (1933), “Mestiço” (1934), “Despejados” (1934), “A Colona” (1935), em que a terra e o homem são a verdadeira face do Brasil-real, cuja população compunha-se de negros, índios e mestiços, cujas mazelas sociais transcendiam o perímetro urbano da então capital da República, com

seus morros e favelas. Portinari interioriza o Brasil mostrando o “homem do campo” com impaludismo, com verminose, com amarelão, despejado da terra, excluído socialmente por força das políticas públicas que naquele momento visavam ao trabalhador urbano.

A iconografia modernista compreendia temas brasileiros, com incidência da terra e do homem brasileiros. Euclides da Cunha, em “Os Sertões”, dividiu sua obra-prima em “A Terra” e “O Homem”, antecipando em três décadas a recorrência do tema. Essa temática foi “apropriada” pelo projeto nacionalista do governo Vargas, do qual emergiram as imagens da brasilidade. No afã da construção da nacionalidade, “Tal esforço era fundamentalmente uma tarefa integradora de nossa realidade física – de nossa terra – e de nosso homem, ambos abandonados e incompreendidos. Retornar à tradição do país significava identificá-la em dois fatores cruciais: a natureza e a cultura brasileiras, síntese da realidade indestrutível presente no inconsciente nacional”8.

A política cultural encetada pelo governo Vargas (1930-1945) permitiu vislumbrar num artista plástico como Portinari “uma linguagem e uma imagística brasileiras”, como sugere Annateresa Fabris. A brasilidade de Portinari ganha visibilidade e notoriedade com o óleo sobre tela “Café”9, obra que foi premiada na Exposição Internacional do Instituto Carnegie de Pittsburgh, no Estado da Pensilvânia, nos Estados Unidos, e posteriormente adquirida para compor o acervo do MNBA, na cidade do Rio de Janeiro.

Pela análise de Luciene Lehmkuhl, o “Café”, desde o ano de 1935, vinha sendo alçado à categoria de “obra-símbolo do Brasil”, depois da segunda Menção Honrosa de Pittsburgh: “o ‘Café’ deixou de ser um mero quadro para se tornar uma peça representativa do potencial de criação e construção da modernidade brasileira”, porque passou a ser exibido sistematicamente em várias exposições individuais do artista, bem como na mega- exposição de 1939, promovida pelo Ministério da Educação, compondo o Stand de Arte do Pavilhão do Brasil da Exposição do Mundo Português de 194010.

O “Café” passou a ser identificado como símbolo da brasilidade/modernidade, porque permitiu apontar para aspectos da formação da nacionalidade brasileira: o trabalhador braçal representado pelo negro e pelo mestiço; para o campo em oposição à cidade11, com a valorização do trabalhador nacional e do café como principal produto de

exportação.

A brasilidade na obra pictórica de Portinari é indiscutível, entretanto as “cartas de Paris” permitem vislumbrar sob o ponto de vista das práticas de escrita a sua percepção da terra e do homem brasileiros. As “cartas de Paris” são as missivas que Portinari escreveu para Rosalita Cândido Mendes, com destaque para a “carta Palaninho”, datada de 12 de

julho de 1930, para a carta datada de 3 de setembro de 1930, na qual transcreve uma entrevista que concedeu a Plínio Salgado, em Paris, em 30 de agosto de 1930, e que foi publicada no jornal “O Paiz”12, de 5 de outubro do mesmo ano, e para a carta de 18 de

setembro de 1930. Tal como as cartas, a entrevista é eivada de um profundo “sentimento de brasilidade”: a busca do Brasil-real representado pela paisagem do seu torrão natal e pelo homem do interior, seja o caipira/caboclo, o gaúcho ou o nordestino/retirante.

As cartas foram escritas num mundo em profunda transformação, com a renovação das artes e da literatura, o que merece uma análise.

Primeiramente, cabe esclarecer que Portinari foi a Paris com o prêmio de viagem concedido pela 35ª edição do Salão Anual de Belas Artes, de 1928, com o retrato do poeta Olegário Mariano Carneiro da Cunha (1889-1958), que se encontrava “no auge do seu prestígio literário, mundano e institucional”. O “poeta das cigarras”, como era denominado, foi membro da ABL e também agraciado com o título de “Príncipe dos Poetas Brasileiros”, honraria promovida pelas revistas ilustradas de quem era assíduo colaborador13.

Segundo, foi em Paris que Portinari “redescobriu” o Brasil, representado por seu microcosmo, Brodósqui, sua terra natal, situada no Estado de São Paulo, localizada numa zona cafeicultora, que compreendia a região da Alta Mogiana. Ou seja, foi na capital francesa que aflorou o seu “sentimento de brasilidade”: o desejo de identificação com a sua terra, com o seu povo, com os seus usos e costumes, com as suas tradições.

Terceiro, a produção intelectual e artística das décadas de 1920 e 1930 refletiu a preocupação de conhecer a realidade brasileira. Na perspectiva de Sérgio Buarque de Holanda, “só quando você está longe, é que consegue ver seu próprio país como um todo”, a partir da premissa de que a distância permite um melhor conhecimento sobre o Brasil. O ponto de partida é a viagem, como acentuou Antônio Callado: “toda a nossa civilização é marcada por um ciclo de viagens”14.

Então, entender o Brasil significava “olhar” do exterior, viajar pelo interior e viajar introspectivamente, incluindo os estados psicológicos próprios do viajante: medo, curiosidade, espanto e deslumbramento. No afã de “redescobrir” o Brasil, a geração que vivenciou o “modernismo” realizou experiências com viagens, como a “caravana paulista”, que passou o carnaval no Rio de Janeiro e a Semana Santa de 1924 percorrendo as cidades históricas de Minas Gerais, ou como o escritor Raul Bopp, que percorreu a Amazônia na busca dos seus mitos e lendas. Daí nasceu o poema “Cobra Norato”. A mesma experiência

de “turista aprendiz” de Mário de Andrade encontra-se em Raul Bopp, inclusive com o “olhar” etnográfico.

Tal qual Oswald de Andrade, foi em Paris que Cândido Portinari “(re)descobriu” deslumbrado a própria terra. Paulo Prado, ao prefaciar o livro de poesias “Pau-Brasil”, de Oswald de Andrade, apontou o caminho da criação poética dessa fase do nacionalismo literário:

[...] Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, do alto de um ateliê da Place Clichy – umbigo do mundo –, descobriu deslumbrado, a sua própria terra. A volta à pátria confirmou, no encantamento das descobertas manuelinas, a revelação surpreendente de que o Brasil existia. Esse fato, de que alguns já desconfiavam, abriu seus olhos à visão radiosa de um mundo novo, inexplorado e misterioso. Estava criada a poesia “pau-brasil15.

Nessa busca do Brasil-Moderno, as raízes, os retratos e as viagens de “descoberta” marcaram uma perspectiva cosmopolita como característica do moderno. Daí a temática sobre as viagens e a figura do viajante exerceram papel central nesse processo de renovação formal, seja na literatura, nas artes visuais, na música ou no pensamento social brasileiro.

Quarto, a cidade de Paris, onde Portinari viveu no fim da década de 1920, não era mais a efervescente cidade dos “anos loucos” ou “les années folles”, descrita por William Wiser, ou a cidade mítica de Hemingway em “Paris é uma Festa”. A Paris que Hemingway narrou era a cidade para onde acorriam artistas e intelectuais preponderantemente do mundo ocidental, em busca de um ambiente estimulante para a criação literária e artística: com seus tipos populares, seus cafés, seus pescadores do rio Sena, seus bouquinistes da “rive gauche”, além da paisagem humana rica em contrastes, onde se poderia encontrar

Josephine Baker passeando com o seu leopardo pelas ruas e boulevares da cosmopolita capital francesa. Essa cidade vivenciada pela “geração perdida”, com Scott Fitzgerald, Gertrude Stein, Ezra Pound, John dos Passos, William Faulkner, Ernest Hemingway, Henri Matisse, Pablo Picasso, Georges Braque, Jean Cocteau, Erik Satie, Josephine Baker, entre outros16, não existia mais.

A cidade que o pintor conheceu no verão de 1929 “não era mais a capital da modernidade, e sim uma cidade dominada pela problemática da volta à ordem, por um

debate artístico e ideológico que revestia de negatividade o período anterior à eclosão da Primeira Guerra Mundial. A história da produção moderna entre 1905 e 1914 conhece uma espécie de obscurecimento, o que faz que as novas gerações deartistas não tenham acesso às contribuições do fauvismo e do cubismo, aqueles momentos de ruptura com as tradições clássicas, variavelmente representados por Matisse, Braque e Picasso”, como chama a atenção Annateresa Fabris17.

Devido a esse cenário, já em 1923, o editor da “Nouvelle Revue Française”, Jacques Rivière, advertiu ao poeta francês Louis Aragon (1897-1983)“sobre os perigos de envelhecer sem abrandar sua atitude de revolta. Ele corria o risco de se tornar apenas o chefe dos literatos dos cafés, do clã dos fracassados”18.

Finalmente, a estada em Paris para Portinari significou visitar museus para “observação do presente e do passado e à pesquisa das técnicas dos grandes mestres”, aí incluídos os pintores renascentistas, além do contato com diplomatas e intelectuais, como Caio de Melo Franco19, Sotero Cosme20, o violinista Oscar Borgeth21 e os escritores Raul Bopp22 e Plínio Salgado23, os dois últimos ligados ao nacionalismo literário a partir de 1924, em que se debatia a questão nacional ligada à “brasilidade modernista”.

No afã de “(re)descobrir” o Brasil, emerge um profundo “sentimento de brasilidade” das “cartas de Paris”, que apresentam o alter ego de Portinari: “o caipira” Palaninho ou Palanim.

Vim conhecer aqui o Palaninho, depois de ter visto tantos museus e tantos castelos e tanta gente civilizada... Aí no Brasil eu nunca pensei no Palaninho [...]. Eu me sinto caipira. Daqui fiquei vendo melhor a minha terra – fiquei vendo Brodowski como ela é. Aqui não tenho vontade de fazer nada... Vou pintar o Palaninho, vou pintar aquela gente com aquela roupa e com aquela cor. Quando comecei a pintar senti que devia fazer a minha gente e cheguei a fazer o “baile na roça”. Depois desviaram-me e comecei a tatear e pintar tudo de cór – fiz um montão de retratos. Eu nunca tinha vontade de trabalhar e toda gente me chamava de preguiçoso – eu não tinha vontade de pintar porque me botaram dentro duma sala cheia de tapetes, com gente vestida à última moda... A paisagem onde a gente brincou a primeira vez e a gente com quem a gente conversou a primeira vez, não sai mais da gente... Quando eu voltar vou ver se consigo fazer a minha terra.

Uso sapatos de verniz, calça larga e colarinho baixo e discutoWilde mas no fundo eu ando vestido como Palaninho e não compreendo Wilde. Tenho medo da polícia e ando sempre com os papéis sempre em dia e tenho medo de gente que tem emprego vitalício. Tenho saudades de Brodowski – pequenina... duzentas casas brancas de um andar só, no alto de um morro espiando para todos os lados...com a igreja sem estilo – uma torre no meio e uma pequena de cada lado, com o altar que eu fiz e Santa Cecília [...]24.

Essa missiva dá a dimensão do sentido memorialístico ou autobiográfico da obra portinariana. Portinari não se identificava com o cosmopolitismo da capital francesa, nem com o dandismo de Oscar Wilde; o dândi e o flâneur são personagens egressas da modernidade, descritas por Charles Baudelaire em “O pintor da vida moderna”.

O pintor faz das “cartas de Paris” um exercício de prospecção da memória no sentido proustiano (o da memória involuntária), inclusive com a memória olfativa: “Quando eu era mais pequeno eu ia com os outros meninos ‘catar gabiroba’ no campo, um campo muito grande muito cheiroso onde a gente passava férias...eu me lembro de tudo” ou “as magnólias da nossa rua perfumavam tudo – belas e grandes árvores”. Para o escritor Marcel Proust, “não importa o lugar onde um grande homem nasce ou morre, e sim as paisagens que ele ama”.

Portinari evocou nessa carta uma Brodósqui mítica, aquilo que Raoul Girardet denominou de mito da “idade de ouro” com toda a sua carga simbólica. Para ele, o campo aparece em oposição à cidade: o campo representado pelo seu torrão natal – Brodósqui e arredores, e a cidade representada pelo cosmopolitismo da moderna metrópole – Paris, repleta de contrastes humanos, incluindo o flâneur e o dândi.

As “cartas de Paris” revelam o “fenômeno de nostalgia” da sua infância, vivida entre os municípios de Brodósqui e Batatais, mas também criam uma obra genuinamente brasileira sem o divórcio do Brasil-real. No afã de escrever as suas memórias, Portinari situa o campo como o “melhor refúgio”. O pintor descreveu essa bucólica paisagem assim:

Além dos frutos silvestres que havia sempre, durante todo o ano, conhecíamos todos os recantos, todas as árvores, nas maiores subíamos para espiar o panorama, era agradável. Armávamos arapucas; bem me lembro quando, pela primeira vez, apanhei um sangue-de-boi vermelho como indica o nome. Nunca encontramos cobras, creio que não havia. O

gado manso, moroso, e que já nos conhecia. As manhãs eram belas quando o sol surgia e seus raios através dos troncos das árvores do campo iluminavam tudo, as cores se avivavam dando magnífica impressão25.

O sentido memorialístico ou autobiográfico da obra de Portinari pode ser percebido na sua produção, principalmente com a presença do bauzinho, da moringa, da cabaça ou porongo e do espantalho. No interior do Brasil, as pessoas costumam guardar as coisas importantes, como documentos (papéis pessoais) em bauzinhos. O bauzinho de folha-de- flandres é a chave para entender o universo memorialista do pintor, inclusive “era quase que uma assinatura, pois ele punha em todo o lugar”, como revelou D. Maria Portinari26.

A pintora Tarsila do Amaral, em crônica para o jornal Diário de São Paulo de 16 de junho de 1936, ressaltou que “Portinari pinta seus quadros inspirado em reminiscências infantis”. E asseverou que:

Todas as telas dessa última fase são paradoxalmente coloridas na ausência quase absoluta de cores, vendo-se apenas aqui, ali, uma fita vermelha na cintura da mulatinha ou o azul do baú postado no primeiro plano, junto a um grupo de figuras plantadas em bloco na planície sem fim: sensação de vago, de infinito no céu crepuscular, escuro, prateando com a luz do horizonte o grupo moreno de vestido branco, fixado no campo imenso, naquele mesmo campo em que o artista na infância empinava papagaios coloridos, caudas de fitas de papel retorcidas pelo vento amigo27.

O significado desses objetos que pertencem ao universo portinariano é o seguinte: a cabaça ou porongo servia para beber água. Segundo o “Vocabulário Sul-Rio-Grandense”, de Luiz Carlos de Moraes, porongo é fruto de uma planta da família das cucurbitáceas,

Lagenaria Vulgaris, que depois de seco e vazio das sementes se presta para depósito

d’água, depósito de farinha e para outros misteres domésticos. É o que no Norte do país se