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A arte de se fazer passar por outro alguém, demonstrando emoções aparentemente verdadeiras, tocou esses ingênuos espectadores no ponto mais delicado e sensível de suas almas, fazendo aflorar o interesse consciente pela complexidade da condição humana. O que se erguia diante dos olhos estupefatos do público era um mosaico das mais atormentadas e descontroladas paixões, que transitavam livremente entre o pranto e o riso, interpretadas no picadeiro, ou no palco, por gente feita de uma mesma matéria orgânica idêntica a dos que se sentavam na platéia.

Já dissemos que as pantomimas, no último quarto do século XIX, haviam se tornado um número obrigatório no repertório de todos os circos que percorriam as regiões interioranas. Essas companhias apresentavam, ainda que de maneira incompleta e até certo ponto distorcida, uma idéia do teatro convencional praticado nas cidades de maior porte e endereçado a um público que não se contentava com pouco e não poupava implacáveis críticas diante do que não lhe agradava.

O maior filão de público nessa época era o resultado de uma mistura indiscriminada de raças, credos e hábitos, apresentando um comportamento bem distinto das platéias européias ou americanas. Enquanto essas apreciavam as muitas variações das técnicas circenses, como um veículo de expressão artística, no Brasil o que mais prendia a atenção e emocionava a audiência eram (e ainda são!) os números perigosos, quando a vida humana está visivelmente em risco. As grandes atrações do circo nacional eram os vôos no trapézio e a doma de animais ferozes, submetidos a constantes maus tratos, para que, de forma ameaçadora, pudessem render mais no picadeiro.

O espaço cênico do circo brasileiro tradicional é uma réplica do europeu, fazendo do picadeiro central o ponto de convergência das atenções em torno do qual se distribuem os assentos. Até mesmo os circos mais pobres copiam esse modelo, convictos de que essa é a melhor maneira de apresentar suas atrações aos olhos do público. No momento em que o teatro foi introduzido no circo, para abrigar o novo formato de espetáculo, os artistas circenses reproduziram o modelo criado por Franconi em 1793, na capital da França, aproveitando uma parte da platéia, em frente ao picadeiro, onde se instalou um pequeno palco, italiano por excelência.

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A passagem do picadeiro, centralizado no espaço, com as arquibancadas à sua volta, para o palco no molde italiano, não se dá assim tão repentinamente. Observa-se que há um estágio intermediário, durante o qual se verifica uma redução considerável nas dimensões do picadeiro, preenchido agora por cadeiras especiais. Oferecidas a preços mais elevados, permitiam ver bem de perto os encantadores artistas.

Da arena central, coberta de serragem, antes desenhada para favorecer os volteios eqüestres e outras exibições tipicamente circenses, conservou-se apenas uma pequena porção do terreno, agora utilizado na primeira parte por números de menor porte. Após o intervalo, essa área destinava-se a receber os artistas-atores que, envergando outros figurinos, dramatizavam com intensidade situações que levavam o público ao delírio.

Em um primeiro momento, essa fração restrita do antigo picadeiro, encerradas as atrações circenses, era elevada com a ajuda de um tablado, providencialmente montado pelos casacas-de-ferro durante os entreatos. Esse praticável começa timidamente com apenas um palmo de altura, porém vai crescendo na mesma proporção em que aumenta o interesse do púbico pela segunda parte do espetáculo.

Conforme foram evoluindo em teatralidade, foram surgindo algumas necessidades específicas, que só poderiam ser atendidas se houvesse um espaço próprio para isso e que não mais ficasse marcado pelo caráter de improvisação. Foi então que surgiu um tablado bem mais robusto, com altura de aproximadamente um metro, intencionalmente levantado à frente do picadeiro, tendo ao fundo a cortina que vedava a comunicação da tenda com o exterior.

Esse modelo deve ter agradado durante algum tempo e dentro dessa proposta foi se desenvolvendo e se apropriando de elementos notadamente teatrais, sem os quais as comédias encenadas não poderiam apresentar os esperados efeitos especiais que, desde aquela época, enchiam os olhos da platéia.

Ainda dentro desses padrões, foram aparecendo alçapões, reinterpretando a melhor tradição do espaço elisabetano. Surgiram também cortinas superpostas, que garantiam a surpresa do que viria depois. Coxias para que os artistas-atores aguardassem a entrada faziam-se necessárias e

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faixas de tecido, vindas do alto, impediam que o público praticasse uma devassa visual na horizontalidade do palco.

Muito já foi escrito sobre uma provável origem para a estruturação do circo-teatro no Brasil, mas a maioria dos estudiosos credita esse mérito ao negro Benjamin de Oliveira (1870 – 1954), nascido na cidade de Pará de Minas. O inventor do circo-teatro, além de artista circense, era compositor, cantor, ator e palhaço e tudo indica que ele foi o primeiro a reunir essas habilidades em um mesmo espetáculo. A importância de Benjamin é sem dúvida bastante significativa, pois sabe-se que, na condição de negro forro, fugiu de casa ainda muito jovem para unir-se a uma trupe de circo com a qual aprendeu inicialmente as técnicas do trapézio e da acrobacia.

Graças a uma entrevista concedida ao jornalista Brício de Abreu, em 1947, Benjamin relata as condições nas quais encontrou o primeiro circo que lhe deu acolhida, por volta de 1885:

“Em Mococa, encontrei um grupo trabalhando. O chefe do elenco se chamava Jayme Pedro Adayme. Era um norte- americano(...)trabalhávamos em ranchos de taipa, cobertos com panos velhos. Cada vez que mudávamos de cidade, vendíamos a parte da madeira e levávamos apenas a parte do pano em lombos de burro(...)Andávamos por terra de cidade em cidade, de vila em vila. Raramente conseguíamos um carro de boi. Quase sempre em lombo de burro." (RUIZ,1987,p.30)

Hoje sabemos que Benjamin não foi o primeiro negro a entrar no picadeiro. Muito antes dele os circos apresentavam entre seus componentes uma mistura variada de etnias que falavam entre si uma língua própria, resultante da fusão do idioma português com outros tantos dialetos, que só se fazia compreensível dentro do próprio grupo que a praticava.

Benjamin de Oliveira foi alçado à condição de palhaço porque em uma determinada ocasião o "titular" não estava bem de saúde e não havia mais ninguém disponível para substituí-lo, sem que se interrompesse o espetáculo, frustrando as expectativas da platéia. Certamente abençoado por Dioniso, o palhaço negro agradou em cheio, dando início a uma carreira ascendente de muito sucesso, chegando até mesmo a ser homenageado pelo Marechal Floriano Peixoto, presidente da República, então recentemente proclamada.

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Não é difícil imaginar a polêmica que situações desse tipo eram capazes de despertar. A celeuma provocava opiniões contrárias, vindas das mais diferentes fontes. Todas eram igualmente inflamadas na defesa de pontos de vista favoráveis (ou não), no que diz respeito à integração do circo com o teatro. Era algo assim como se o plebeu estivesse contraindo núpcias com a rainha. Essa mistura não era muito bem vista por um grande número de observadores, enquanto que outros tantos saudavam e festejavam o caráter da própria brasilidade que reúne extremos e com eles obtém harmonia e equilíbrio.

O que não se pode ignorar é que o circo-teatro, desde o seu surgimento no panorama cultural, foi em busca de seu público nos pontos menos nobres das cidades, onde certamente não havia nenhum teatro edificado. Era para a população das periferias que ele se dirigia e tentava alcançar, estabelecendo um processo de identificação entre artistas e espectadores. É preciso levar em consideração que a gente do circo sempre tinha sido vista como a fatia da classe artística mais próxima ao povo que, certamente, não tinha acesso aos “foyers” das elegantes casas de espetáculos. Beneficiado por essa natural proximidade, o circo-teatro captou com delicadeza e sensibilidade o que havia de mais essencial no espírito dos habitantes menos afortunados dos aglomerados urbanos e com eles criou laços de cumplicidade, falando uma mesma língua e comungando de um mesmo sonho que era o de transformar a áspera realidade em alguns momentos de rara magia.

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“A vinda dos primeiros circos parece que estimulou muitos mais lá por fora, correndo mundo a notícia de que havia bastante dinheiro a ganhar por aqui e, assim, eles foram vindo e formando as grandes famílias circenses que iriam construir o circo brasileiro. Sucessivamente eles foram chegando e ficando: Albano Pereira, português (1833); o citado Alexandre Lowande, americano (1861); Manoel Fernandes, chileno (1887); Tomás Landa, peruano (1887); os Nelson, ingleses (1872); José Rosa Savala, peruano (1887); Julio Seyssel, francês (1887); os Palácios, argentinos (1884); os Ozon, franceses (1887); Leopoldo Temperani, italiano (1884); João Bozan, argentino (1881); Franck Olimecha, japonês (filho do patriarca Torakiche Haytaka) (1888); Takasawa, também japonês (1887); Francisco Azevedo, português (1874); José Ferreira da Silva Polidoro, português (1873); os Alciati, italianos (1893); Francisco Stringhini, italiano (1892); e Antônio das Neves, português (1889)...” (RUIZ, 1987, P. 21)

Segundo RUIZ, esses grupos contribuíram de forma notável para a criação de uma magnífica arte circense genuinamente brasileira, que nada mais era do que a soma de todas as tendências e características específicas desta arte, provenientes de cada uma das regiões de onde tinham vindo essas famílias.

Antônio das Neves, aportado em 1889, assim que chegou, constituiu uma nova família casando-se com Benedita Elvira, com quem teve a

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