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4 ECOS DE UMA POLIFONIA UNÍSSONA SOBRE O NOIADO

4.6 BREVE REMATE [IN]OPORTUNO

A situação especial do estigmatizado é que a sociedade lhe diz que ele é um membro do grupo mais amplo, o que significa que é um ser humano normal, mas também que ele é, até certo ponto, "diferente", e que seria absurdo negar essa diferença. A diferença, em si, deriva da sociedade, porque, em geral, antes que uma diferença seja importante ela deve ser coletivamente conceitualizada pela sociedade como um todo (GOFFMAN, 2008, p. 106).

Dentre tantos aspectos problemáticos associados ao debate acima iniciado, incorremos, enquanto coletividade, no risco da profecia autorrealizável sintetizada nas palavras de Frank Tannenbaum (1938 apud MISSE, 2010, p. 23): “the person becomes the thing he is described as being”. Nunca visto enquanto um indivíduo digno, o noiado é marcado por uma trajetória incessante de desrespeito e não reconhecimento ético-político (BAHIA, 2017) 69, o que, a meu ver, limita de forma cruel seus meios de reverter quadros de estigmatização e rotulação, assim como sua trajetória de exclusão e miséria moral. Como bem disse Bahia (2017, p. 50) em estudo recente sobre prostitutas no Recife, o desrespeito moral “aparece não como desencadeador de luta, mas como uma constante experiência paralisante”. Uma trajetória de rupturas, abandono e desafetos, associadas a humilhações de todo gênero, via de regra, não pode dar vida a experiências de autoconfiança e autoestima, não pode dar ao sujeito a sensação mínima de segurança ontológica.

69 Assim como as prostitutas recentemente estudas por Vitor Tavares Bahia (2017), amigo e companheiro de mestrado. Não por coincidência, mas por lógicas societais cruéis, meu trabalho e o de Vitor se aproximam em vários sentidos, não apenas do ponto de vista teórico, mas empírico: mesmo que estudando grupos diferentes de desviantes, encontramos trajetórias de desrespeito, de miséria moral e exclusão.

Neste ponto, creio ser profícuo resgatar mais diretamente a leitura de Jessé Souza (2003, 2004) sobre uma gramática moral do Brasil, esta em acordo com a leitura de Misse (2010) sobre a acumulação social de desvantagens. Já expliquei anteriormente que, para Souza, haveria no país um cenário de produção em massa de subcidadãos, historicamente marginalizados e inadaptados a uma forma de ser que o autor denomina, com base em Pierre Bourdieu, de habitus primário. Essa produção em massa reafirma, cultural e estruturalmente, uma hierarquia moral de pouca ou nenhum mobilidade, na qual o noiado ocuparia a base, fazendo parte da “ralé da ralé”. E esse processo, como foi possível perceber ao longo da minha argumentação, fruto de um acumulação de desvantagens (pobreza, estilo de vida, hexis corporal), dá margem a processos outros de estigmatização e rotulação cruéis, algo semelhante ao que Misse (2010) colocou como “incriminação preventiva”. Já nos preveniu Goffman (2008):

A posse de um traço desviante pode ter um valor simbólico generalizado, de modo que as pessoas dão por certo que seu portador possui outros traços indesejáveis presumivelmente associados a ele (p. 43).

Potencializada por um contexto de extrema desigualdade social e privação de recursos de existência, a identidade degradada do noiado se sobrepõe, no imaginário dos meus usuários interlocutores – mas não só –, a todos os demais papéis sociais que os indivíduos rotulados de noiado assumem/poderiam assumir. Essa rotulação, por sua vez, como já sugerido, aciona expectativas de ação e previsões de identidade. Mais uma vez como no caso do bandido de Misse (2010), o noiado vive um processo de sujeição. Tal sujeição, quando vivida de forma extrema, ao

constituir um tipo de sujeito-limite ou um sujeito-em-ruptura com a ordem legítima dominante, aprofunda sua individuação e sua desafiliação numa direção que o torna passível de vivenciar, muitas vezes de forma radical, a incomunicabilidade dessa experiência social (ibidem, p. 30).

Esse aspecto nos leva ao pior dos cenários, o da invisibilidade e silêncio completos. Não meramente por minha escolha, há interlocutores protagonistas nas linhas que escrevi. Enquanto alguns entrevistados encontravam-se ainda, apesar de sua desfiliação, equipados emocionalmente

para um diálogo mais estruturado, outros encontraram uma grande dificuldade de me expor suas experiências e perspectivas de maneira “articulada”, o que fez com que suas falas fragmentadas construíssem meu texto de outro modo, que não o da citação direta. Assim eles tornaram-se até aqui quase, ou mesmo, invisíveis. A meu ver, esse foi o caso daqueles que empiricamente melhor incorporavam o imaginário social do noiado – também segundo as sugestões dos servidores, os usuários mais “desorganizados” da casa. Aqui não terei espaço para uma análise direta sobre suas trajetórias e histórias, que nos levaria, provavelmente, a outras direções de análise, mas endosso a importância de nós, sociólogos e sociólogas, nos debruçarmos sobre essas trajetórias fragmentadas – ditas incomunicáveis. Isso não apenas para que possamos aprender mais sobre a realidade radical do sujeito-limite, mas também para que possamos colaborar para a reversão do quadro de invisibilidade que figuram. Já havia me advertido Martins:

Ao situar-se no fundo do abismo social que marginaliza e exclui é que o pesquisador pode ver e interpretar os significados da crise e as irracionalidades e contradições da sociedade contemporânea. Porque desse lugar ele pode ver na perspectiva dos que padecem, na dimensão reveladora do que é limite e de quem está no limite (MARTINS, 2002, p. 24).

Gostaria ainda de assinalar um dos mais cruéis elementos que me insurgiram desse empreendimento interpretativo. Mesmo partilhando de elementos comuns com o noiado que implicariam, em teoria, certa solidariedade entre semelhantes, os usuários de crack com os quais dialoguei reafirmaram hierarquias morais entre indivíduos, negando, mais uma vez na esteira de Souza (2003, 2004), o princípio da igualdade tayloriano. “É noiado mesmo. Não tem dignidade”. Apesar de também desviantes, estigmatizados, mesmo considerados tantas vezes como noiados pela “audiência” em suas vivências cotidianas, os usuários que entrevistei possuíam um imaginário cruel sobre esse sujeito abjeto, justificando práticas e cursos de ação violentos e excludentes para com ele. Misse (2010) já questionou a tese de que a sujeição daria origem, como muitos tentaram supor, a um sujeito necessariamente revolucionário, igualitário ou democrático. Os sujeitos que emergem no caso da rotulação do noiado, também como no caso do bandido, são sujeitos que subordinam e subjulgam outros moralmente, produzindo outros assujeitamentos.

Neste ponto reside também, paradoxalmente, a eficácia da ideologia, da moralidade corrente incorporada em um habitus primário. Mesmo enquanto desviantes, há certo sucesso em sua socialização que os permitiram adquirir as fontes morais para julgar aqueles que não as respeitam. Como Becker (2008), Goffman (1988) já havia assinalado que o estigmatizado não vive em um mundo à parte, e costuma compartilhar as expectativas sobre identidade e comportamento social com os ditos “normais”. Ele aprende e incorpora, desde as mais tenras fases de interação, a perspectiva da normalidade, adquirindo, portanto, as crenças da sociedade mais ampla.

As reflexões de Taylor e sua incorporação por Souza me parecem fundamentais para compreender mais a fundo esta questão. A “ideologia espontânea” de um self pontual, inarticulada e na sua versão periférica, reafirma sua força, sua eficácia. É também ao buscar retirar os véus dessas lógicas opressoras internalizadas que a Sociologia pode ser mostrar uma ferramenta de transformação social. Evidenciar imaginários de miséria moral e exclusão como o do noiado significa, em diversos sentidos, evidenciar lógicas avaliativas e classificatórias da nossa sociedade, assim como seu fundo moral; é, como disse Souza,

perseguir a ressignificação de sentidos e escolhas valorativas cristalizadas e naturalizados, é tornar de novo visível o reprimido e o esquecido na vida social, é tornar de novo criação cultural contingente e precária o que já havia de tornado, mais uma vez, natureza e invisibilidade (SOUZA, 2003, p. 80).