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3 ARTESANATO INTELECTUAL: CAMINHOS, MÉTODOS E TROCAS

3.2 CAMPOS DE POSSIBILIDADES

Ao que tudo indicava, para realizar a pesquisa, entraria no universo dos usuários de crack por meio da equipe de consultório de rua que atuava na Ponte do Limoeiro, no centro do Recife, uma realidade bastante distinta daquelas de minhas experiências de pesquisa anteriores, nas quais adentrei numa comunidade terapêutica. Tal comunidade terapêutica, de cunho evangélico e evangelizador, atuava com base no afastamento geográfico do consumidor de seu local de origem, na sua reclusão temporária, no suporte medicamentoso e na abstinência total de drogas (MACHADO, 2011; COSTA, 2014). Já o consultório de rua, por sua vez, no território do consumo, trabalhava com base em uma política de redução de danos, uma abordagem não-proibicionista que partia do princípio do cuidado e da proteção do consumidor em sua própria realidade (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004). Para mim, essa mudança representaria também uma aproximação de um campo político da Reforma Psiquiátrica, com o qual eu me identificava.

O primeiro contato para ajustar essa possibilidade tinha sido feito em meados de janeiro, por telefone, no qual conversei com José, psicólogo social que trabalhava na Secretaria de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas da Prefeitura do Recife. José mostrou grande interesse pela pesquisa e colocou-se a disposição para criar a ponte entre mim e a equipe do consultório,

23 Apesar disto, cito a importância de três obras sensacionais da literatura internacional que coadunam com os achados de minha pesquisa, quais sejam, Crack em busca de Respeito, de Philippe Bourgois (2003), Um preço muito alto, de Carl Hart (2014) et Crack in America: Demon Drugs and Social Justice, editado por Craig Reinarman e Harry Levine (1997).

afirmando que era de total interesse da secretaria apoiar pesquisas sobre drogas e fomentar a aproximação entre a universidade e o poder público. Esse contato preliminar, no entanto, não tomou contornos práticos: após algumas tentativas frustradas de encontrar o então ocupado coordenador da equipe, decidi, levando em conta o calendário da pesquisa e o meu afastamento físico do campo – em consequência de um intercâmbio na Universidade de Caen, na Normandia francesa –, tomar outra direção: entraria, sem atrasos, em contato com uma amiga redutora de danos que trabalhava em um CAPs-Ad do Recife.

A frustração inicial foi certa. Tal guinada do ponto de partida da observação implicaria outras formas de olhar, interpretar e reconstituir a “realidade”, bem como colocaria questões muito diferentes a serem apresentadas ao longo do estudo. Uma instituição, embora, em geral, um campo de pesquisa seguro e estável – ideal para cronogramas mais justos –, era um espaço muito diferente daquele da rua que me instigava: segundo DaMatta (1986), um espaço de movimento, de contradições, de surpresas, de tentações; com todo o “negro do asfalto”, o “calor da caminhada”, o “desagregado de gente”, o “tempo que voava”, o “nervosismo”, a “confusão”... Como colocou o antropólogo em sua famosa obra O que faz do Brasil, Brasil? , a rua era um “abismo de anonimato, de insegurança, de leis e polícia”, assim, um campo de pesquisa instigante e desafiador. Sendo ainda Recife uma das maiores metrópoles do Brasil, sua rua seria um espaço que desafiaria, como já havia me sugerido Simmel (1967), minhas percepções de uma vida mental específica.

As tantas etnografias e outras pesquisas que tinha lido, dentre eles os inúmeros trabalhos de Heitor Frúgoli Jr., realizadas em espaços públicos de consumo, no “vuco-vuco” da vida cotidiana dos usuários, haviam me despertado um desejo de ali me aventurar, enquanto uma jovem socióloga (MELOTTO, 2009; FRUGOLI JR & SPAGGIARI, 2010; SILVA, 2000; RAUPP & ADORNO, 2011; GOMES & ADORNO, 2011; FRÚGOLI JR, 2012; FRÚGOLI JR & CHIZZOLLINI, 2012; RUI, 2012; ADORNO et al., 2013; FRÚGOLI JR & CAVALCANTI, 2013; SOUZA, 2016). Naqueles universos, geradores de um pânico social (ROCHA & SILVA, 2016), seria possível, segundo o imaginário popular e a mídia, me confrontar com aquilo que buscava sociologicamente: um mundo “cheio de miséria”, “perigoso”, “sujo”, “sinistro”, com sua “procissão de viciados” etc. (RUI, 2012; ROCHA & SILVA, 2016; RODRIGUES, 2016). Mesmo que soubesse de todo o

debate em torno de uma “ficção jornalística” sobre o crack, colocado, por exemplo, por Igor de Souza Rodrigues (SOUZA et al., 2016), eu tinha honestamente a sede de me lançar para ver tudo aquilo com os meus próprios olhos. No CAPs, por sua vez, não tinha polícia, não tinha traficante, etc.; no CAPs não tinha, teoricamente, emoção.

Embora essa construção coletiva de perigo e da austeridade me cativasse enquanto pesquisadora, foi em um ambiente “seguro” e acolhedor, também do ponto de vista metodológico, que terminei por desenvolver boa parte da pesquisa. Esse aspecto não significou, ao contrário do imaginado, uma empreitada menos instigante ou com poucos desafios. Muito ao contrário. As instituições (BERGUER & BERGUER, 1968), enquanto entes quase metafísicos, dotados de autoridade moral, coercibilidade, objetividade e uma historicidade particular, são campos complexos de atuação que exigem, como descobri, muita habilidade do sociólogo, não só para entende-la, como para se mover dentro dela. Precisei também superar um olhar apressado para apenas posteriormente compreender que, ao que concernia ao CAPs, quem ali estava, estava, em outros momentos, na rua, o que não me impedia de encontrar o tipo de usuário de crack que desejava, aquele mais vulnerável. E que mesmo a dicotomia CAPs-Rua era, por mim, construída, forjada, mesmo paradoxal, ainda que complementar. Isso também pela atividade do Consultório de Rua CAPs-Ad, do qual vim a atuar como observadora participante. Foi no percurso da pesquisa, neste sentido, que pude tomar conhecimento, aos poucos, de uma “[...] masse d’observations ordinaires que nous faison tous sur le monde social, avec son lot de fauses observations et de fausses déductions”24 (BEAUD & WEBER, 2010).

Retomando o fio da história, através daquela minha amiga, peguei o contato da gerente clínica do CAPs-Ad, psicóloga, que, após uma ligação, algumas mensagens e poucos dias, me recebeu na sala de técnicos, onde passaria muitas horas nas semanas seguintes. Expliquei o que queria, levei uma cópia do projeto. Conversamos, dividimos impressões. Fui convidada para participar, na quinta-feira seguinte, da reunião de equipe, que acontecia em meio aos impasses e calafrios de uma greve, por sorte, em vias de reconciliação. Nos poucos minutos que me foram

24 Tradução nossa: "[...] Uma massa de observações ordinárias que nós todos fazemos sobre o mundo social, com seu lote de falsas observações e deduções”.

dados para me apresentar e falar da pesquisa para os presentes na pequena sala lotada, após a apresentação da equipe e algumas questões pontuais, a porta para começar estava aberta. No meio de uma pauta acalorada pela realidade da negociação de salários e condições de trabalho, expressões soltas diante de todos como “bem-vinda”, “bom trabalho”, “estarei disponível para te ajudar, caso precise”, “podemos conversar com prazer”, expressaram a aceitação da minha presença; eu me tornara, como colocaram Beaud & Weber (2010), uma participante autorizada.25 Frases semelhantes mostraram também seu interesse de me apresentar a realidade que viviam. Algumas das tantas motivações desse desejo foram se tornando mais claras a cada visita.

A greve chegou, numa sexta-feira, ao fim, e o serviço, que estava parado, por sorte e impossibilidade de uma melhor negociação salarial, voltou. Antes havíamos vivido o Carnaval, simbólico no imaginário brasileiro e na literatura de DaMatta (1986). Como um período extraordinário para se esbaldar e liberar o corpo, o Carnaval, tempo de desordem, é por nós vivido “como ‘liberdade’ e como possibilidade de viver uma ausência fantasiosa e utópica de miséria, trabalho, obrigações, pecado e deveres. Numa palavra, trata-se de um momento onde se pode deixar de viver a vida como fardo e castigo” (p. 49). Também para usuários de substâncias psicotrópicas, ele é uma oportunidade de “viver e ter uma experiência do mundo como excesso” (ibidem). A demanda, nesse sentido, quando da minha chegada, era relativamente grande: entre usuários novos e retornos, a vida no CAPs-Ad retomava a pulsação. Coube-me, então, nesta situação oficializada de mudança de campo, compreender o que era, de fato, o CAPs, quais eram as suas dinâmicas.

25 Sobre este processo de negociação, afirmaram Beaud & Weber (2010, p. 108): “Essa obrigação de negociar a entrada e a manutenção no campo funciona como uma revelação do funcionamento do grupo estudado. O momento da negociação é um momento de experimentação: ele força os entrevistados a explicitar normas implícitas; ele também mostra que tipos de recursos são necessários para ganhar a confiança”. No original: “Or cette obligation de négocier l’entrée et le maintien sur le terrain fonctionne comme un révélateur du fonctionnement du groupe d’interconnaisance étudié. Le moment de la négotiation est un moment d’expérimentation : il force les enquêtés à expliciter des normes implicites ; il montre aussi quels types de ressources sont nécessaires pour gagner la confiance”.